Olhos da perdição

Para Celly.

Aqueles olhos enfeitiçaram-me desde a primeira vez que os vi. Uma deliciosa mistura de tons verdes e azuis os tornavam únicos, especiais, capazes de parar os corações mais fracos, e danificar seriamente os mais fortes.

Ainda lembro a primeira vez que os vi, parados contemplando algo que não me dei ao trabalho de ver o que era. Descansavam suavemente, transmitindo uma tranqüilidade que há muito não experimentava. Por algumas horas fiquei fitando-os, admirando-os, até que partiram, rumo a um lugar desconhecido. O estado hipnótico o qual eu me encontrava impediu-me de qualquer atitude; só pensei em segui-los horas mais tarde, quando já estavam bem longe.

A noite foi tumultuada, com um ataque de insônia e uma febre que teimava em aumentar a cada minuto. Ao fechar os olhos, a única coisa que via eram aqueles imensos globos azuis-esverdeados – ou verde-azulados, até hoje me é difícil encontrar a definição exata – parados tranquilamente, emanando tranqüilidade e exercendo seu poder dominador. O suor encharcou minhas roupas e a cama, tornando o sono ainda mais difícil, piorado pelas minhas constantes mudanças de posição na cama. Resisti o quanto pude, até que o dia amanhecesse novamente.

Sem hesitar, retornei ao mesmo lugar aonde os vi pela primeira vez, na esperança de que novamente eu os encontrasse. Para a minha felicidade, lá estavam eles, delicados e suaves, enfeitiçando os incautos que inadvertidamente olhassem para eles. Fitei-os, admirei-os, amei-os, odiei-os, e mais uma mistura incontável de sentimentos, pelo tempo que estive ali. Meu corpo parecia leve e minha alma parecia ter encontrado a salvação eterna. Era isso, só podia ser isso, aqueles olhos eram os portais do paraíso, o bilhete de salvação da condenação eterna! Eis que pairam aqui, na minha frente, dominando-me, torturando-me ao mesmo tempo em que me salvam. Desta vez, não os perderia de vista, eu precisava da salvação, eu precisava encontrar a paz, e tinha certeza de que ali estava o que eu procurava.

Segui-os durante horas por ruas escuras e becos fétidos, chutando ratos e esmagando baratas, passando qualquer coisa que se pusesse em meu caminho. Se eles me viram ou perceberam a minha presença, eu não sei, mas tentei ser o mais discreto possível – não podia perdê-los novamente. Ao entrarmos em um novo beco, eles pararam e olharam para mim. Protegi meus olhos com a mão, evitando que um novo encantamento fosse lançado sobre mim e impedissem que eu continuasse a minha busca. Quando eles viraram, percebendo a inutilidade de seu ato, correram. Sem hesitar, corri desesperadamente atrás deles, e felizmente consegui alcança-los, para ouvir um grito melancólico e desesperado – claro que concluí que era apenas a minha imaginação, ou talvez uma nova tentativa de me enganar, já que olhos não gritam.

***

Acordei na manhã seguinte coberto de sangue e com as roupas rasgadas. As tentativas de recuperar de minhas memórias o que havia acontecido foram inúteis, mas, de alguma forma, eu sentia a paz e a tranqüilidade percorrendo minha essência. Foi então que olhei para a mesa e encontrei o motivo de minha serenidade: dentro de um pote de vidro estava a minha salvação, o purificador de minha alma. Hoje, dezoito meses depois, ainda aguardo a hora em que serei chamado para pagar por meus pecados, para enfrentar o tribunal divino, com a certeza de que serei absolvido de qualquer acusação, pois tenho comigo a única coisa sagrada a existir na terra, a única coisa a garantir passagem livre para o paraíso.