O TREM

Abri os olhos, e levei um certo tempo para me acostumar com a luminosidade excessiva daquele ambiente. Eu estava sentado no chão, com as costas apoiadas em uma pilastra de concreto armado. Uma queimação intensa consumia o meu peito. Não trazia uma mala, nem ao menos uma simples bolsa ou mochila, apenas as roupas do corpo me acompanhavam. Não havia ninguém ali, o silêncio era absoluto, o que era estranho, a julgar pelo lugar onde estava.

Parecia uma estação de metrô, pois ali notei um amplo vão entre duas plataformas, onde trilhos seguiam por um túnel, numa linha reta, até se perderem de vista.

No entanto, achei estranho o fato de não existir ali, uma bilheteria ou coisa do tipo, nem as famosas máquinas de refrigerante, nem mesmo uma escada ou rampa que levasse para um outro nível. Não havia nada. Apenas uma parede lisa atrás de mim, e outra no sentido oposto. Nelas não era possível perceber publicidade ou orientação de linhas.

Eu não lembrava qual seria o meu destino, na verdade, nem mesmo como eu havia parado ali.

Uma agonia sem fim me dominava, eu corria de um lado para o outro, e o desespero se alastrou quando percebi que seria impossível sair dali. Sentei novamente, e com as mãos na cabeça, tentava recordar de algo. Em vão. Nem um sopro de lembrança circulava em minha mente, a única coisa que era perceptível, era a dor em meu peito.

Um ruído metálico me tirou da espécie de transe em que eu havia entrado. Realmente era um trem, cujo revestimento dos vagões era de um tom prateado reluzente. Olhei para a porta que se abriu diante de mim, naquele momento eu começava a desconfiar se aquilo era de fato real.

Como se pudesse adivinhar meus pensamentos, o homem alto e de vestes impecáveis que surgiu através da porta me disse:

- Sim.

Olhei diretamente em seus olhos, que eram de um negro profundo e, diria, amedrontador, antes que eu pudesse questionar qualquer coisa, ele continuou.

- Sim. Seu lugar está reservado. Por favor, me acompanhe.

Ele virou o corpo de lado, curvou-se levemente e apontou o caminho pelo qual eu deveria seguir.

Minha mente hesitou em pouco, mas meu corpo seguiu de forma involuntária pelo corredor acarpetado em vermelho. Várias pessoas ocupavam os assentos de aparência confortável. No entanto, os semblantes fechados e as cabeças que se abaixavam enquanto eu cruzava o caminho, me davam uma idéia de melancolia no interior daquele vagão.

O homem me conduziu até uma poltrona solitária no final do corredor. Seu olhar indicou que seria ali onde eu deveria ficar.

Diante de mim havia uma tela presa ao teto, e esta se apresentava negra. Ali dentro, o silêncio também era absoluto. O homem se distanciou sem olhar para trás, senti que a rotina de seu trabalho não lhe dava prazer.

O trem começou a se movimentar, e em seguida a luminosidade diminuiu de forma gradativa até desaparecer por completo. Logo a tela se acendeu, e um brilho azulado iluminou suavemente cada ponto ocupado naquele vagão.

De forma súbita, senti meus braços serem amarrados aos da poltrona por cabos que pareciam possuir milhões de filamentos afiados, pois senti minha carne ser violada e uma dor indescritível percorrer meu corpo, como uma onda que ativava a minha sensibilidade por onde passava.

Gritei e o som ribombou pelo espaço a minha frente, juntando-se a outros, produzindo uma sinfonia macabra, a qual somente o maior dos sádicos poderia apreciar.

Sentia o líquido pegajoso e quente escorrer pela minha pele. Imagens começaram a surgir na tela, e fizeram com que as lembranças esquecidas retornassem à minha mente. Não eram lembranças boas, talvez seria melhor se elas tivessem permanecido esquecidas. A realidade, que se apresentava em cores para mim, não me trouxe arrependimento, de fato, mas me fez ser invadido por uma profunda vergonha.

Não tenho como descrever as atrocidades que desciam como uma cascata diante de mim. Não era um filme, aquilo estava sendo mostrado para que eu pudesse entender os motivos pelos quais eu fora levado até aquele lugar. Um zumbido ensurdecedor ecoava como uma trilha sonora macabra, eu não conseguia virar a cabeça para os lados, nem fechar os olhos.

Eu ouvia mais gritos e lamentações, vindos de todos os lados, e os acompanhei quando fui perfurado por lâminas que cravaram-se em minhas costas.

Acredito que nem digno de verter lágrimas eu era, pois me sentia tão seco quanto uma folha de Outono.

A dor no meu peito aumentava mais e mais, uma imagem começava a se moldar em minha mente. Um lugar repleto de dor e punição, um lugar que me chamava e que eu classificaria como lar.

A dor era insuportável. Meu corpo tremia como se uma corrente elétrica me sacudisse. Sim. Era choque o que eu sentia. Vozes. Também ouvia vozes. Elas estavam nítidas agora.

- Ele está reagindo. Mais um agora. Um...dois...três...

O bipe da máquina começou a indicar o retorno à vida.

- Ele voltou. Ele voltou.

Meus olhos enxergavam várias pessoas vestidas com roupas em tons de branco e verde claro. Eram médicos. Eu estava salvo.

Dias se passaram e minha recuperação fora bastante acelerada. Tive uma parada cardíaca pelo envenenamento. No meu ramo de negócios, cada dia se mostrava como um desafio. Mas, em breve tudo retornaria à normalidade.

Mais medicamentos, não agüento isso.

A enfermeira empurrava um carrinho, e em poucos passos ela chegou até mim. Seus movimentos foram tão rápidos e precisos que não tive tempo de reação. O intervalo curto entre a retirada da tampa da travessa, a arma em punho, e o disparo certeiro que dilacerou o meu cérebro, não permitiu.

Minha morte fora tão silenciosa quanto a ação abafada pelo silenciador da arma, provavelmente meu segurança de plantão tivera o mesmo destino, certamente eu o encontraria logo.

Pois, nesse momento, sou obrigado a descer do vagão, sendo guiado por chicotadas que rasgam a minha pele e queimam a minha alma condenada. Meus olhos vermelhos olham para o homem alto que esboça um leve sorriso e me diz:

- Destino final!

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 26/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1508016
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