SACRIFÍCIO

As dimensões da abertura não eram maiores do que as de um poço artesiano comum. Talvez, as pedras de contornos arredondados que estavam dispostas em volta da entrada fossem o único diferencial.

Uma fumaça densa e de odor nauseante tornava o ar bastante pesado ao redor de todo o ambiente. Sua origem estava diretamente relacionada ao que estava contido no interior daquele fosso.

Não havia ninguém no lugar. Aqueles que poliram e arrumaram as pedras já estavam longe. O único som ouvido era um ruído abafado pela terra. No entanto, esse ruído, somado ao leve tremor no solo, indicava que uma mudança estava para acontecer naquele cenário.

Não muito longe dali, um furgão de tonalidade escura rondava as ruas vazias. Várias pessoas ocupavam o seu interior, discutiam sobre algum assunto importante, não conseguiam chegar a um acordo.

- Não temos tempo a perder. Não podemos escolher muito – dizia um homem de barba cerrada e fisionomia pouco amistosa.

- Mas não podemos tomar uma atitude que chame a atenção para o nosso círculo – replicava um outro, de aparência mais velha.

- Concordo, mas repito, logo será tarde demais, perderemos o momento certo.

- Vejam – apontava o motorista - precisamos ser rápidos.

A jovem estava sentava sobre o capô de um automóvel estacionado na calçada, em frente às instalações da universidade. Sabrina era o seu nome, tinha dezesseis anos de idade. Havia iniciado, de forma adiantada, seus estudos naquela instituição, a mesma onde sua mãe lecionava e acumulava funções administrativas. Mas, não estava ali para estudar, afinal, era um feriado, estava apenas aguardando sua mãe que fora buscar alguns documentos. A impaciência já a dominava, ela não conseguia entender a razão que levava uma pessoa a se deslocar até o local de trabalho, à noite, em um feriado, e o pior, obrigando-a a ir junto.

Em breve, suas preocupações seriam outras. O veículo parou de forma brusca, a porta lateral deslizou rapidamente, dois homens a agarraram e a arrastaram para o seu interior. Não tivera tempo de entender a situação, apenas gritou.

Os gritos da garota chegaram até os ouvidos de sua mãe, livros e papéis foram ao chão. A mulher saiu em um corrida desabalada, o desespero havia preenchido o seu coração, a visão daqueles homens jogando a sua filha dentro do carro a cegou completamente. Não se lembrou de pedir ajuda, não pensou na lógica, apenas um pensamento a dominava; ir atrás deles.

O furgão já estava longe quando a mulher conseguiu dar a partida no motor. Acelerou deixando marcas no asfalto. As ruas desertas permitiam que ela visualizasse o alvo da perseguição ao longe, nada a faria desistir.

Ao dobrar a longa curva, a mulher se viu diante de uma situação que a desencorajou, o carro que transportava a filha simplesmente havia desaparecido.

A mata fechada se apresentava nos dois lados ao longo da estrada, esta seguia através de uma imensa reta. Eles não haviam seguido em frente, isso era um fato, o que a levava a acreditar que os bandidos haviam se dirigido para dentro da mata, mas, para qual lado? Não existia qualquer vestígio de abertura na vegetação, pelo menos não um que permitisse a entrada de um automóvel.

A mulher sabia que quanto mais demorasse em tomar um decisão, mais sua filha correria perigo. Embrenhou-se de qualquer forma para onde seu instinto de mãe ordenava. Abria caminho por entre os galhos e moitas, sentia um leve tremor no solo, bem como um calor que subia da terra. Quanto mais caminhava, mais sentia que estava se aproximando, no entanto, um aperto no coração trazia-lhe lágrimas aos olhos, algo não estava certo naquele local.

Vozes em murmurinho, som de tambores em ritmo compassado. Ao conseguir acertar a visão, devido à névoa, seu sangue gelou. Um grito repleto de aflição escapou de sua garganta.

Pendurada em um tronco, amarrada pelos pulsos e tornozelos estava Sabrina, sua filha, a qual dedicara todo o amor que sua alma de mãe permitira. A garota apresentava vários cortes no corpo, seu sangue escorria em direção ao fosso. Aquela abertura maldita de onde saía a fumaça fétida e o estrondo cavernoso, áspero e desagradável.

- Parem! Parem! – Implorava a mulher – Não façam isso à minha filha, por favor, ela é só uma criança – não conseguia conter o choro.

- Segurem-na! – Ordenava o homem que aparentava mais idade.

Vários braços agarravam a mãe da garota, que se debatia de forma incontrolável.

- Você não entende – o homem com o rosto coberto por pêlos dirigia-lhe a palavra – já é tarde demais, aquele que habita as profundezas já provou do sangue da menina, não há como parar agora.

- Por que? Por que ela? Por que? – As perguntas eram feitas em tom de desespero e dor.

- Não há uma razão especial para isso. Só precisávamos de alguém para aplacar-lhe as necessidades, acredite, é melhor do que deixá-lo livre a caminhar por nosso mundo, servindo-se de todos aqueles que cruzarem seu caminho. Nós fazemos o que é correto, sempre que se faz necessário sacrificamos alguém para que todos, eu, você e os demais seres humanos possam viver. Não foi uma questão pessoal, mas, não temos tempo, ela precisa ser sacrificada.

- Não! Não! Não!

Naquela noite, o desejo por carne e sangue fora atendido. O silêncio no fosso permaneceria por um tempo, até que a fome imensurável e voraz ressurgisse, exigindo um pagamento por sua complacência.

Sabrina abriu os olhos, seu corpo doía, os ferimentos recentes espalhavam-se por todo o corpo. Estava caída na beira da estrada, o carro de sua mãe estava largado, as portas escancaradas, próximo de onde estava. A memória começava a clarear, lembrava-se de estar na porta da universidade, dos estranhos que surgiram e a jogaram no furgão, de ter sido arrastada e ferida, de ter perdido os sentidos.

O que ela não sabia, na verdade, era sobre o ato extremo de sua mãe.

O acordo que fizera com os estranhos. Oferecer-se em sacrifício no lugar da filha, tornar-se o alimento necessário para aplacar a ira e a fome de um demônio inimaginável.

Ali, sentada sob a luz do sol que acabara de surgir, Sabrina não tinha consciência do amor incondicional que sua mãe lhe dedicara. Durante toda a sua vida ela sempre estivera disposta a matar e a morrer por ela, sempre estivera preparada a praticar o maior ato de amor, o maior dos sacrifícios.

* Olá, não deixem de ler "Vendeta", a continuação deste conto, escrito brilhantemente pelo amigo Victor Meloni. Garanto que não irão se arrepender! Um abraço,

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1525345
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.