A RAINHA DO INFERNO

Minha testa já estava marcada pelas ranhuras da tábua envernizada que determinava os contornos daquela mesa arredondada. Um copo vazio me fazia companhia, o conteúdo que ali estivera, há muito já havia percorrido o caminho inevitável que se iniciava em minha boca, em algumas horas, o mergulho de cabeça no whisky pediria o seu preço.

Eu mal ouvia as batidas repetidas, em ritmo de “bate-estaca”, da música techno que dominava o ambiente ao meu redor. A garçonete que me sacudia pelo ombro, me oferecendo um sorriso e mais uma dose, parecia estar em uma nuvem, talvez o clima proporcionado pela fumaça que compunha o cenário facilitasse os vôos de minha mente em delírio.

Acenei para que ela me trouxesse mais um copo do combustível necessário para o meu refúgio. Ao meu redor estavam espalhadas diversas gaiolas suspensas no ar, presas ao teto por cabos de aço. A performance exibida por cada uma das garotas no interior daquelas jaulas, só não superava a beleza física de que dispunham, e isso, somado ao fato de ostentarem trajes tão provocativos, permitiria surgir uma certeza, quase que absoluta, de que tal espetáculo seria motivo mais do que suficiente para que o entusiasmo brotasse em qualquer um que o estivesse assistindo.

Entretanto, de forma alheia à minha vontade, eu não conseguia partilhar da vibração incontida dos demais, provavelmente o teor alcoólico em meu sangue, o qual eu já havia rompido os limites há várias rodadas atrás, estivesse comprometendo o meu comportamento naquela situação.

Era isso o que se passava na minha cabeça até aquele momento, mas, da mesma forma com a qual me enrolei naquela mistura louca, que me confundia os sentidos e me causava tontura, exatamente com a mesma velocidade, fui retirado dos braços insistentes do demônio etílico.

O motivo que fez a lucidez me dominar de maneira tão repentina não tinha um nome conhecido, ainda, mas possuía contornos definidos. Os contornos mais marcantes que meus olhos puderam presenciar ao longo dos últimos quarenta anos.

O palco principal estava posicionado imediatamente à minha frente, como eu desejava ser possuidor de um poder mágico, que me permitisse desaparecer com todas aquelas pessoas que se espalhavam por todos os lados.

Desta forma, eu poderia desfrutar com total exclusividade dos momentos indescritíveis, proporcionados pela mais sedutora "pole dance" que a minha pobre alma de mortal havia vislumbrado.

Sinceramente, eu não sei o que aconteceu comigo, os movimentos cadenciados daquela mulher haviam me enfeitiçado, seus olhos pareciam transmitir uma mensagem, alguma coisa que me soava incompreensível.

Eu juro que não tive a intenção, apenas segui os meus impulsos, mas a ação realizada, a qual me projetou ao seu encontro, deveria ter sido evitada a qualquer custo. Não cheguei a tocá-la, fui impedido, braços contornados por músculos cultivados com esmero apertavam o meu pescoço. Meus pés não mais tocavam o solo, eu estava sendo transportado por entre a multidão, enxergava cada vez mais longe a imagem daquela que fazia o meu coração acelerar.

O segurança da boate me atirou numa pequena sala, antes que meu corpo pudesse chegar ao solo, senti uma dor aguda me atingir a cabeça, pois um corte profundo fora produzido devido ao choque com a quina de uma mesa. Meus sentidos me deixaram por um período que eu não pude determinar, era a segunda vez naquela noite que eu apagava. E novamente alguém me acordava, e eu não acreditei no que meus olhos me mostravam. Era ela, a mulher do palco, oferecendo-me a mão.

Ela me disse que eu deveria sair dali, pois a segurança não se fazia presente naquele local. Não tive dúvidas em suas palavras, a segui através daqueles corredores escuros, eu a seguiria até o fim do mundo.

Ela me conduziu até uma outra sala, a luminosidade não se fazia presente, percebi que o silêncio absoluto significava que as atividades do espaço haviam se encerrado.

A mulher me indicou uma parede cuja superfície parecia ser revestida por madeira, ela insistia para que eu permanecesse com o corpo esticado sobre esta área, achei estranho, mas aceitei, ela possuía um enorme poder de persuasão. No entanto, senti um toque gelado em meu pulso, imediatamente seguido por um clique. O desespero me dominou quando visualizei a figura do segurança entrando pela porta, tomado por um ato reflexo, sim, porque se dependesse apenas da minha vontade teria sido impossível, desferi um chute certeiro, que atingiu o queixo da mulher que tanto me atraía.

O impacto do golpe a fez cair desacordada. O sangue proveniente do ferimento em minha cabeça escorria de forma farta pela pele do meu rosto, e mesclava-se ao suor gelado que ali se encontrava.

Eu permanecia preso por um dos braços, o que me restava livre era utilizado como arma de defesa. O homem que havia me atirado na outra sala seguia decido em minha direção, sua boca expelia palavras ásperas que indagavam a minha atitude.

Naquele momento eu achei que tudo estivesse perdido, porém, algo atingiu o homem que me ameaçava, jogando-o ao lado da dançarina.

A garçonete surgiu e me disse que o tempo corria contra mim. Atirou-me um chave presa por uma argola, e instruiu-me para que eu me livrasse do grilhão reluzente que me fazia prisioneiro.

Recebi suas palavras como uma ordem, pois eu não estava totalmente livre da ameaça, a dupla que queria o meu mal começava a recuperar os sentidos. Segui a garota até uma outra porta que se postava do outro lado do mesmo cômodo onde estávamos. Entrei e fui trancado em um ambiente completamente escuro.

Comecei a chamar por ela, usando os murros contra a madeira da porta como complemento. Não obtive resposta direcionada a mim, ouvia sim a sua voz, mas ela falava com outras pessoas, ela proferia palavras de censura e desagrado contra aqueles que me perseguiam.

Ela os chamava de tolos, dizia que a traição que haviam cometido traria tortura eterna para suas almas. Um sofrimento incomparável os esperava por terem ousado desafiar a rainha das terras esquecidas.

Ninguém que vem de bom grado até as portas de sua casa mereceriam ajuda, e eles a teriam desobedecido oferecendo passagem de volta a um ser perdido.

Nunca fui bom em entender as coisas, mas aquilo ficou cristalino. As pessoas que eu julgava me desejarem mal, na verdade queriam me ajudar a ficar livre das intenções daquela garota. Talvez aquela espécie de tábua onde fui atado me deixasse protegido contra seu desejo. Não seria um pensamento tão improvável, visto que ela não tocara nas amarras que me prendiam, ela apenas atirou o instrumento que as abria.

Meu pânico aumentava a cada instante, e culminou com os gritos que quase estouraram os meus tímpanos. Não ousei imaginar o que a garota fez aos dois, também não quis levar os meus pensamentos aos motivos sobre que espécie de dívida ou vínculo os unia a ela.

Eu já havia esquecido da forma sedutora da dançarina, já não me preocupava com o jeito ameaçador do segurança. A única coisa que dominava a minha atenção era aquela garota de estatura tão reduzida e suas intenções.

Um calor insuportável se instalou na sala escura, uma dor sem igual me atingiu. Não era uma dor física, não sei explicar, era algo que me atingia por dentro, me atormentava. Fui invadido por uma série de sensações que me levavam a coisas que fiz, coisas que vivi, situações que, de uma forma ou de outra, eu causei mal a alguém. Não sei se seria possível sofrer de uma forma pior.

O chão sob meus pés se abriu e caí em um imenso vazio. Não sei por quanto tempo a queda continuou, eu havia perdido completamente a noção de tempo e espaço.

Tentei abri os olhos e não consegui. Tentei me mexer, mas não foi possível. Senti lâminas em brasa derreterem a minha pele enquanto a cortavam. Meus órgãos internos estavam sendo cozidos, pelo menos essa era a sensação. Uma imagem não deixava a minha mente; uma mulher de pele cor de bronze, cuja fisionomia lembrava a solícita garçonete.

Como nos enganamos. Naquele mar de sofrimento, ainda fui capaz de me lembrar de uma coisa, há um dito popular que diz que uma mulher seria capaz de enganar o soberano daquele lugar, se for verdade, eu chego a ter pena do infeliz, pois não há nada que se compare a perversidade da rainha do inferno. Comecei a gargalhar de forma histérica.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 09/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1530464
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