Canção Funesta

Canção Funesta

A lua cheia pairava graciosamente na abóbada celeste que se encontrava coberta de um negrume semelhante ao do nanquim, despida de estrelas e nuvens.

O satélite derramava sua luz pálida e prateada sobre as matas amazônicas, que viviam naquele momento uma profusão de sons harmoniosamente arranjados pelo acaso, no que só pode ser definido como melodia da vida.

No meio da floresta úmida e viçosa, que secretava entre sua beleza abundante em cores, os mais diversos tipos de perigos naturais, seguindo o curso do rio com sua pequena canoa, Francisco voltava para casa, após garantir o sustento de sua família.

Apesar de ter apenas dezenove anos, o pescador era casado, e tinha dois filhos, um garoto e uma garota, gêmeos idênticos. Vivia com os pais numa cabana numa das comunidades indígenas remanescentes no estado, bem afastada da cidade.

Apesar da escuridão que reinava por entre as árvores, vez ou outra, podia ver nas margens do rio algum animal que parava no córrego para saciar a sede ou uma serpente que se precipitava para dentro das águas limpas, que refletia o tom negro da noite em sua superfície espelhada.

Ao contrário da maioria das pessoas, o rapaz crescera em meio aquela mata de impressionante voluptuosidade e vasta diversidade. Estava acostumado a avistar esse tipo de animal. Podia se dizer até que ele apreciava suas aparições. Gostava da natureza, em todos os seus aspectos, e era dela que ele tirava os peixes com os quais alimentava sua família.

Francisco era um homem feliz.

Os olhos cor de lama sempre atentos a paisagem, exprimiam profunda serenidade, enquanto cruzava o rio, remada após remada. Os cabelos negros, longos e lisos, lhe caiam sobre o tronco nu, que revelava o resultado do seu árduo trabalho de todos os dias.

Se equilibrando com a perícia de quem tem anos de experiência de canoagem, seus braços fortes, da cor do bronze, repetiam os movimentos de puxar, tirar, colocar e puxar, incessantemente, no seu exercício diário.

Subitamente, sua audição aguçada captou algo que talvez, tivéssemos demorado horas para perceber. O silêncio, no meio de uma floresta, durante a noite é algo anormal. Nem mesmo os grilos ou o vento, ousavam quebrar a ausência de som, que havia causado tamanha má impressão no caboclo.

Vasculhava o cenário ao redor, em busca de algo que justificasse fato tão notável, enquanto afinava os ouvidos em busca de qualquer tipo de som. Percebeu algo que não tinha notado até o momento. Uma melodia suave e atrativa cortava o ar da noite.

Ele voltou a remar, perseguindo a voz invisível que lhe guiava ao longo do rio. A cada remada, o som parecia ficar mais forte, mais vivo, mais sedutor.

A cantiga consistia numa canção sem palavras, repleta de significado, ao mesmo tempo doce e assustador. O belo e o mórbido, unidos de maneira complementar, na forma de uma sonoridade que só poderia escapar dos lábios macios de uma moça.

Subitamente, pode vê-la, sentada nas pedras a beira do rio encoberto pela escuridão. Ela estava desprendendo seu veneno melodioso, numa cantiga que fascinava o pobre moço, que se aproximava mais e mais.

A pele nua, ainda molhada, refletia em sua palidez de mármore, o brilho da lua. Seus cabelos dourados escorriam lisos até o fim das costas, e lhe caiam sobre os bustos fartos, cobrindo os peitos. Seus olhos azuis deixavam transparecer sua aura de sedução. O semblante sereno de seu rosto de mulher ostentava lábios rubros que chamavam a Francisco, prendendo-o num encanto quase que hipnótico.

Num movimento gracioso, a loura pulou nas águas, e olhou para o pescador, num convite silencioso. Sem pensar duas vezes, o pobre moço largou o remo, e se precipitou sobre a superfície gélida do rio.

Com largas braçadas, seguia a mulher que sorria para ele, com ar de satisfação, sempre cantando. Ele sabia que a água estava gelada, e tinha consciência que seus lábios tremiam, mas um torpor que ele não sabia dizer se lhe havia sido infligido pela música, ou pela temperatura do córrego, tomava conta de seu corpo e o impedia de sentir o que quer que fosse.

Assim, ambos nadaram lado a lado, por um tempo que pareceram ao jovem infinitamente longo, entretanto, lamentavelmente curto.

Pode sentir que o cansaço lhe vencia, e que suas pálpebras começavam a pesar, se fechando e permanecendo dessa forma por curtos intervalos de tempo.

Pode sentir o amparo da mão delicada da moça roçando a sua. Ela lhe encarou significativamente por algum tempo, e ele retribuiu o olhar com um sorriso. Soube que pertencia a ela, apenas, e a nenhuma outra.

Com uma velocidade fora do comum, a dama mergulhou na escuridão do rio, sempre segurando sua mão, puxando Francisco consigo.

Mesmo debaixo d’água, a melodia deliciava seus ouvidos. Parecia inclusive que ficava mais viva e mais forte, conforme desciam, rumo as profundezas do córrego.

A donzela olhava extasiada enquanto ele perdia o fôlego. O ar lhe escapava das narinas e subia a superfície na formas de bolhas, dando lugar a água que passando pelo seu nariz, e enchia seus pulmões. Sua garganta queimava, como se tivesse engolido álcool, enquanto a certeza da morte lhe preenchia o peito. Sabia em seu intimo que estava a segundos de seu fim. Pouco a pouco, seus sentidos o abandonavam um a um.

A ultima coisa da qual teve consciência, foi daquela voz de veludo. A dama cantou sua canção funesta, repleta de promessas falsas e ilusões prazerosas até o último segundo.

(Julio Cesar Rodrigues Mantovani Filho)