VIDA NOTURNA - III

Jéssica, com duas fechas certeiras, tirou os seguranças de cena, em seguida, invadiram a boate, tinham a mesma visão esverdeada devido aos óculos especiais. Um dos soldados rolou uma granada para o interior do local, uma explosão foi ouvida, misturada ao som incessante do ritmo “bate-estaca” do ambiente.

- Vida à Ordem! – gritou a líder do grupo, mais gritos e urros foram ouvidos, disparos precisos empurravam os vampiros cada vez mais para o interior do prédio, ao passo que os soldados aproveitavam-se do descompasso dos atingidos para terminar o serviço.

Lâminas rodavam, giravam, sangue negro era derramado, cabeças rolavam, a esmagadora maioria dos noturnos perdia cada vez mais a significância. Bárbara e Úrsula, que já haviam se recuperado, encurralavam Camilo e Beto, que estavam desarmados. As mulheres gargalhavam ante suas prováveis vítimas.

A negra avança sobre Camilo, e desfere-lhe um soco, o rapaz efetua uma defesa com o braço esquerdo, mas tem o osso rompido devido à dureza do golpe, ele grita de dor, e nada pôde fazer ao sentir-se pego pelos cabelos da nuca e ser erguido, para em seguida sentir sua garganta ser perfurada pelos extremamente brancos dentes da bela mulher.

Sua amiga, Úrsula, fica extasiada ao ver a companheira agachada sorvendo o sangue do inimigo, desta forma, animando-se ainda mais para a sua própria investida. A loira arfa e balança os braços de forma ameaçadora, Beto por outro lado, tenta manter-se alerta, apesar da agonia de ver o amigo de batalha tombar e servir de alimento para tão vil criatura. Tem apenas um punhal em uma mão, e um soco inglês com três pontas afiadas na outra.

- Vem para a mamãe, soldado, vem aqui que quero te morder e te drenar o sangue! – graceja a vampira.

- Venha aqui pegar, ou você só fala? – replicou de forma desafiadora o soldado.

- Você vai terminar como seu amigo, furado e vazio!

- Ou você pode ficar sem cabeça, como vários de seus irmãos, que tal?

A mulher de cabelos dourados e olhos vermelhos avança com toda sua fúria sobre o oponente, saltando dois metros no ar, acertando-lhe o peito com os dois pés. A mulher cai no chão com a suavidade de uma pluma, enquanto Beto voa deslizando pelo chão, indo esborrachar-se na parede.

Úrsula caminha calmamente em sua direção, enquanto o homem tenta refazer-se do golpe. Não teve tempo, a súdita do Reino projeta outro salto, e o soldado fecha os olhos e tenta se proteger. Não foi necessário, a mulher teve seu vôo interrompido por uma bala de grosso calibre que a atingiu no peito, jogando-a muitos metros de distância.

JC ergue o fuzil, que ainda soltava fumaça, e exibe um ar vitorioso. Beto agradece aos céus pela providencial intervenção do amigo. Bárbara, após largar o corpo exangue de Camilo, olha com ira para os dois soldados. JC prepara um novo disparo, porém a agilidade da noturna, mostrou-se mais eficiente. Ela praticamente deslizava pelo ar tamanha a leveza, estava no ápice de suas habilidades, sempre ficavam assim após se alimentarem.

Mais e mais disparos foram feitos pelo guerreiro da Ordem, todos sem o efeito esperado. Mas, apesar disso, Bárbara não preparou um contra-ataque, ao contrário, preferiu uma saída rápida, indo ao auxílio da amiga caída.

- E aí, rapaz? Como você está? – perguntou JC ao amigo ferido.

- Infelizmente bem melhor do que o Camilo – respondeu e indicou com um olhar o corpo do amigo recém derrubado.

- Quem o matou, Beto?

- Aquela que você tentou acertar há pouco. A mulata que acompanha a Verônika.

- Bárbara. Vamos vingar nosso amigo, ele e todos ou outros que caíram hoje. Vamos pegar todos eles. Vida à Ordem, irmão!

- Vida à Ordem.

Nessa altura da batalha, muitas baixas eram sentidas de ambas as partes. Escapando pela penumbra, Bruno, o recepcionista e o gerente do estabelecimento, escalavam uma parede que dava acesso ao segundo andar, já que as escadas haviam sido tomadas pelas forças da Ordem Guerreira.

Teriam fugido dali se não tivessem sido avistados justamente pela líder inimiga, a melhor guerreira, a de pontaria certeira. Jéssica esticou o arco com vontade e disparou mais uma das flechas de madeira de lei, a seta voou pelo ar e acertou as costas do gerente. O maldito teve seu coração perfurado, despencando das alturas.

Percebendo a intenção da inimiga, Bruno antecipa-se ao ataque saltando da parede, pousando suavemente no chão. A frase sair da panela para o fogo poderia ser aplicada com perfeição àquela situação. Bruno fica perplexo ao perceber, à sua frente, Elisângela, apoiada com um joelho no chão e mantendo fixamente a besta na outra perna, que estava flexionada, servindo de base para a arma.

O vampiro recepcionista e metido a modelo só teve tempo de ver a garota sorrir e uma seta vir em sua direção, pronto, uma cabeça com cabelos moldados em gel rola pelo assoalho.

O cerco se fechava para os súditos da Rainha, em um ponto recuado dali, a Condessa aprecia o martírio do oponente.

- Roger, seu estúpido! Eu te falei, eu te disse mais de uma vez para você se juntar aos fortes, mas não, você tinha de escolher o lado fraco, agora você vai morrer por causa da sua teimosia.

- Ni-Nika, vo-você me co-conhece muito bem...eu-eu não so-sou assim...

- Aceite, seu estúpido! Beba do meu sangue, ainda dá tempo!

- Nu-Nunca, pre-prefiro morrer...

- Então, que seja assim – dito isso, Verônika ergue as garras da mão direita a fim de rasgar a garganta do teimoso guerreiro da Ordem. Porém uma voz a faz parar.

- Por que você não enfrenta alguém que pode revidar Verônika? – a Condessa vira a cabeça e depara-se com seu maior desafeto, alguém que desperta os mais conflitantes sentimentos e deixe sua alma ensandecida, alguém que a faz imaginar um espelho diante de si. Sim, a pessoa que está diante dela refletia sua semelhança, irmãs, gêmeas, mesma altura, mesma fisionomia, mesmos trejeitos e expressões. A mesma pele, embora a palidez de uma se destacasse um pouco, os mesmos olhos, embora os de uma brilhassem em vermelho quanto queria, o mesmo corte de cabelo para facilitar na batalha, o mesmo sorriso, os mesmos dentes, embora os de uma se alongassem às vezes.

- Ora, ora se não é a minha irmã metida a salvadora!

- Afaste-se do Roger, agora, Verônika!

- Quem você pensa que é para me dar ordens, garota? Eu sou uma Condessa do mais refinado clã noturno, líder do exército da Rainha Valkíria.

- Para mim você nada mais é do que uma traidora, de sua casa, de sua família, da Ordem!

- Família? Casa? Ordem? Não seja ridícula, maninha, nós nunca tivemos uma família, um lar. Só tivemos pais ausentes o tempo todo, sem chance de viver a vida, sem ter um lar, vivendo uma paranóia, ouvindo um bando de velhos que se acham os donos da verdade, morrendo por uma instituição patética. Você é quem deveria ter mudado de lado, você não sabe como é viver sem medo, Jéssica, sem preocupações tolas, nós sabemos aproveitar o que a vida pode oferecer. Você pode se matar de treinar que nunca alcançará o meu nível, você nem imagina o poder que corre em mim, tantas possibilidades, ter o mundo em suas mãos! A Rainha me deu tudo isso! O que você nunca terá nessa sua vida. Aliás, muitas gerações após sua morte terão passadas e eu ainda caminharei sobre essa terra. Verei do alto sua raça fraca se arrastar e servir de gado para os nossos, os verdadeiros dominantes desse planeta decadente. Nosso sangue veio de longe para mudar e se impor, e vocês, irmã, nada poderão fazer para mudar isso.

- Como você mesma disse, irmã, você tem todo o tempo do mundo, e mais cedo ou mais tarde vai perceber o quão errada está, em suas escolhas, em sua vida, em tudo. Só que terá de pagar por tais escolhas, e isso Verônika, pode começar agora.

Jéssica desembainhou uma espada de fio duplo. Seu longo treinamento a transformou também numa exímia combatente no corpo-a-corpo. Porém, sua oponente era uma das melhores combatentes da Rainha, além de ter recebido boa parte do treinamento que a própria Jéssica recebera, antes da conversão.

Poucos tiros eram ouvidos nessa altura, os combates eram travados na troca de socos, chutes, espadas, flechas, arranhões e mordidas. O cenário armado para as duas irmãs parecia o de um roteiro de filme épico.

A líder do exército real caminhava lentamente de um lado para o outro. Olhos rubros, dentes expostos, emitia um tilintar com as garras. A comandante do braço armado da Ordem empunhava a espada com as duas mãos, plantada em uma base de combate, ao estilo mestre de ken-dô. Pequenos círculos com a lâmina eram desenhados no ar, filetes de suor escorriam pelas suas têmporas, seu olhar estava vidrado no da sua irmã e inimiga.

- Vida à Ordem!

- Sangue à Rainha!

Correram uma ao encontro da outra, e antes de se encontrarem um grande estrondo ecoou pelo salão. Uma bomba fora despejada por um dos seguranças da boate. Cada uma foi lançada para um lado. A Condessa foi erguida pelas axilas, quem a auxiliava era Bárbara.

- Venha, Verônika, precisamos sair daqui, rápido. Os nossos que restaram, e foram poucos, atearam fogo na boate, tudo isso aqui será consumido. Venha minha Condessa, a Úrsula não está bem, o Felipe foi destruído, devemos sair daqui ou seremos os próximos.

- Não, me deixe, minha irmã está aqui, preciso eliminá-la, agora.

- Verônika, teremos outra oportunidade, se ficarmos aqui todos morreremos, ela e nós, é isso que você quer? Lembre-se, temos a eternidade do nosso lado. Somos só nós três agora.

- Está certo, Bárbara, onde está a Úrsula? Vamos tirar nossa pele pálida desse lugar – saíram o mais rápido que puderam da boate, ganhando a estrada, na madrugada que seguia lá fora. Dentro da Planet seguia a confusão.

- Venha, Jéssica! Tem fogo para todo lado aqui – a moça estava tonta pela explosão e por ter batido a cabeça na queda.

- Não, JC! A Verônika! Os feridos! Tem mais algum ferido? Cadê o Roger?

- A Elisângela e os outros já haviam resgatado o Roger, enquanto você se preparava para enfrentar a Nika. O Beto está mal, mas também já está com o grupo, eu o deixei lá. Não tem mais ninguém ferido, o barman, aquele rastafari que era o contato da Base já vistoriou o local, na medida do possível, é claro, até mesmo para te achar foi difícil no meio dessa fumaça, você ficou uns minutos desacordada. Venha, não podemos perder tempo, precisamos sair, isso vai virar um circo já, já.

- E os corpos dos nossos companheiros?

- Não podemos fazer nada, Jéssica. Tudo vai queimar, eles foram valentes, lutaram e morreram com honra. Vamos – a moça não possuía mais argumentos, e nem forças, fora praticamente arrastada dali.

Mal entraram nos carros e dispararam, ouviram o som das sirenes ao longe. Olhando para trás, perceberam todo o prédio da badalada boate ser consumida em chamas, a fumaça escura já subia pelos céus, vidros se estilhaçavam. Lamentavam o fato das cinzas de seus amigos ficarem depositadas lado a lado com as daqueles que tanto odiavam.

Tão logo se distanciaram da zona sul a caminho da Base, puderam relaxar, as batalhas abalavam tanto o lado físico quanto o psicológico dos soldados da Ordem. A incerteza do sucesso, ainda mais em situações como a que enfrentaram nesta noite, onde a surpresa sobrepujou o cálculo, os deixavam aflitos. Muitos amigos tombaram, mas o que os frustrava ainda mais, era o fato do alvo principal ter escapado.

Muita coisa precisava ser feita para o próximo combate, mas por hora, deviam cuidar dos feridos, recarregar as forças e honrar os mortos.

Não era fácil a vida na Ordem, não, não era.

Na zona sul, no alto de um edifício, quatro figuras se misturavam às sombras, três mulheres e um rapaz meio grogue.

- Foi sorte termos encontrado esse aqui – disse Bárbara referindo-se ao rapaz que estava caído, completamente alcoolizado, nos fundos da boate.

- Pelo menos vai servir para a Úrsula se recuperar dos ferimentos – disse a Condessa – ande logo Bárbara, rasgue a garganta desse infeliz e dê de beber à garota, não temos muito tempo. Falta apenas uma hora para o nascer do sol, precisamos voltar para casa rapidamente, eu não avisei a Rainha que viríamos para cá hoje, se ela me procurou, deve estar uma fera, e você sabe como ela fica quando está irritada...

- Com certeza, Condessa – com um gesto preciso a jovem mulata abriu um pequeno, porém profundo corte na garganta do rapaz, fazendo verter o líquido vermelho. Posicionou o pescoço do rapaz na boca semi-aberta de Úrsula, forçando-a a beber do sangue do jovem.

Este se mantinha vivo e parcialmente consciente. Conforme o líquido descia pela garganta da jovem loira, seus ferimentos regrediam na mesma proporção até curarem-se por completo. Ela abriu os olhos e ergueu o tronco, jogando o rapaz de costas no chão.

- Que bom que voltou – comentou de forma debochada a Condessa – podemos ir agora?

- Claro, claro que sim, Verônika – respondeu de imediato a recém desperta.

- E esse cara, Condessa? Ele ainda está vivo!

- Converta-o Bárbara. Precisaremos de alguém para o lugar do Felipe. Ele será seu pupilo, transforme-o e treine-o. Agora vamos!

Enquanto as duas amigas se preparavam para retornar para casa, a mulata abriu seu próprio pulso e despejou um pouco do líquido negro na boca do rapaz.

- Espero que você agüente firme e aceite a conversão, rapazinho. Não tenho idéia do que você pensa, e se você não suportar a parada, pode acabar encontrando a moça do véu preto, he, he, he – Bárbara retira o pulso da boca do moribundo, curando rapidamente a ferida, e em seguida deposita o seu corpo sobre o ombro direito, apesar do tamanho do homem, ela o ergue com extrema facilidade, como se ele pesasse tanto quanto um punhado de balões de gás. Projeta vários saltos, acompanhando as companheiras a caminho do veículo de luxo, que como de costume, não era deixado no estacionamento da boate, e sim a algumas quadras de distância, precaução nunca era demais.

Sempre havia uma chave reserva debaixo do carpete, nunca se sabe quando o manobrista não volta, não é mesmo? Pouco depois estavam na ilhota da Rainha. E o sol nascia na cidade maravilhosa.

*fim*

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 23/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1554459