A GAROTA E O LOBISOMEM

A garota estava estirada sobre o tapete formado pelo gramado úmido e espesso, o cheiro da terra molhada a entorpecia. Olhava para o céu, já não chovia àquela altura, a lua mantinha-se escondida atrás das nuvens pesadas, não era o cenário ideal para encontrar aquele que procurava, não, não era.

Definitivamente ela sabia tudo sobre as suas preferências, era fato que ele apreciava o livre caminhar sob a luz daquela que o guiava. No entanto, mesmo oculta pelas nuvens, a rainha da noite estaria lá, presente e observadora, a musa que o mantinha vivo, e este fato seria reconhecido pelo seu instinto aflorado.

Assim era ele, aquele que corria ao relento. A garota sabia que era seu dever permanecer onde estava, apertando a grama e a terra com seus dedos nervosos, mantendo contato com a natureza, com os estranhos elementos que constituem a essência do que não é compreendido, mais cedo ou mais tarde ele apareceria, e ela, aflita e ansiosa,estaria esperando.

O farfalhar nos arbustos que circundavam toda a extensão do parque isolado a alertava de que algo acontecia ao seu redor. Sua respiração era ofegante e ruidosa, ela não sentia o frio que o vapor expelido por sua boca sugeria, pelo contrário, um calor indescritível percorria todo o seu corpo, da cabeça aos pés descalços.

Ela se lembrava bem da primeira vez que o encontrara, naquela noite especialmente abafada, ela retornava da faculdade caminhando apressada pelas ruas do subúrbio, trazia em uma das mãos os sapatos de salto alto, pois estes a machucavam muito por serem novos. Ao cruzar a esquina perto das ruínas do velho curtume, deparou-se com cinco indivíduos que lhe bloqueavam o caminho. Olhou ao redor, nada havia além de jornais velhos pelo chão e latas de lixo encostadas no poste de energia elétrica, o qual apresentava a lâmpada quebrada, provavelmente para facilitar a ação dos que ali agiam.

A garota apertou os livros contra o peito e seguiu em frente, passando pelos homens que formavam um corredor, e ao passar por eles e dobrar o quarteirão, sentiu-se aliviada por nada de mal ter lhe acontecido, afinal. O alívio durou apenas alguns segundos, sentiu a alça de sua mochila ser puxada com violência, seus livros foram ao chão, mas, mesmo assim, não esboçou nenhuma reação, apenas olhava para o rapaz que revirava os seus pertences.

Tentou seguir o seu caminho, mas fora impedida por um outro, um homem alto que trajava um casaco de moletom, o sujeito a agarrou pelos ombros e a jogou no asfalto sujo. Em seguida, os outros a seguraram, arrastando-a para o prédio abandonado, durante todo o percurso sofria agressões e xingamentos.

Uma viatura da polícia encostou ao lado do prédio abandonado, deveria checar a denúncia de que um crime estaria sendo cometido naquele local, uma testemunha presenciara toda a cena. Os homens da lei subiram até o segundo pavimento, de onde provinham ruídos estranhos, rapidamente cercaram e renderam os agressores com extrema facilidade, porque estes estavam armados apenas com os punhos e a covardia. A garota estava ferida, não só física, mas também emocionalmente, a violência a que fora submetida seria sua companhia pelo resto da vida.

Apontando o cano da pistola, um dos policiais orientou para que a moça se afastasse até um dos cantos do galpão. Lágrimas encharcavam os seus olhos, mas ainda assim, não deixou de notar as órbitas rubras que espreitavam sorrateiramente sobre as vigas de aço que transpassavam todo o ambiente.

Uma gosma esbranquiçada caiu sobre um dos marginais, fazendo com que o seu olhar desviasse em direção ao teto, e o fato fora acompanhado por todos. O grito do homem fora sufocado pela mordida que lhe arrancou a metade do rosto, os policiais descarregavam todo o poder de fogo que dispunham sobre a fera que se alojava sobre o bandido.

A munição não fazia o menor efeito sobre o demônio revestido de pêlos, nada causava a ele, além de tornar sua irritação ainda mais evidente. A besta saltava sobre os homens usando as garras para abrir sulcos profundos na pele de uns, e utilizava, também, a força de sua mandíbula para desmembrar outros.

Há muito tempo não se trabalhava o couro naquele lugar, mas a carne e os ossos daqueles homens recebiam especial atenção naquela noite.

Foram necessários apenas alguns minutos para que o grande lobo devorasse os sete homens com uma fúria incontrolável. Encostada em uma pilastra, a garota assistia a tudo, incapaz de esboçar qualquer movimento. Percebendo a sua presença, a besta olhou para ela, abriu a bocarra e emitiu um uivo longo e perturbador, para em seguida saltar pelo vão aberto do que um dia fora uma janela.

De uma forma bizarra e macabra, a jovem não se compadecia pelos policiais que morreram tentando salvá-la, pois, de acordo com o que pensava, eles nada fariam com os agressores além de prendê-los, e estes, escorados pelas brechas da justiça, logo estariam livres para cometer outras atrocidades contra mulheres como ela. Não, ela achava que eles estavam melhor assim, mortos, e quem de fato tornara-se capaz de proporcionar essa sensação de justiça fora a fera hedionda, ainda que para isso tenha sido necessário o pagamento através do sacrifício da carne e do sangue dos homens da lei.

A adrenalina brotava pelos poros, o suor escorria pela palma das mãos, ouvia o ruído de algo se aproximando, fechou os olhos. Ao abri-los visualizou um rapaz com uma garrafa de vidro quebrada, ele a ameaçava. Ela colocou-se sentada, suspirou e olhou para o mato às costas do garoto. Este desconfiado e sem entender, desviou o olhar para o objeto de interesse de sua vítima.

O pavor percorreu-lhe o corpo inteiro. A fera postada em duas patas passava fácil dos dois metros de altura, dentes à mostra e fúria incontida. Antes que pudesse produzir um pensamento, sentiu o peso do demônio que havia saltado sobre o seu corpo, gritou, mas depois disso apenas o som dos ossos sendo triturados ecoava, e este soava como música para a garota.

Desde o primeiro encontro, ela havia se especializado em trazer vítimas para o seu salvador, e este agradecia pelo alimento fácil. Apenas algumas mordidas foram necessárias para eliminar o corpo franzino do garoto. Um uivo aterrador fora ouvido por todo o parque.

A fera olhava para a jovem, e esta reconhecia a gratidão nos olhos do animal, nunca fora tão fácil para ele conseguir o sustento em uma cidade onde o seu caminhar oculto tornava-se cada vez mais difícil.

Sobre quatro patas a besta aproximou-se para um afago, queria sentir o toque da amiga, pensava a garota. Ela sorria para o demônio, mas logo o seu sorriso fora substituído pela surpresa, pelo espanto e principalmente pela dor.

Uma violenta patada a jogou longe, em seguida sentiu o peso do corpo pêludo da fera aprisionando-a, o hálito quente entrava por suas narinas e queimava seus olhos. Desesperou-se quando sentiu os dentes afiados abrindo caminho através de sua pele e músculos, não teve tempo para chorar, porque a fera a devorava, movimentando a mandíbula apressadamente e arrancando pedaços de sua frágil carne, logo a morte lhe abraçou.

Finalizando a refeição, a fera olhou para a lua, rosnou e seguiu seu caminho. É preciso entender que é impossível domesticar alguns animais, a fera apreciou a refeição fácil por alguns instantes, mas a caçada fazia parte de sua natureza. No final o instinto comanda a fome, bestas não pedem conselhos, demônios não fazem amizade, feras dominam e matam, e a garota aprendeu tudo isso da pior forma possível e para seu azar já era tarde demais.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 11/05/2009
Reeditado em 26/11/2009
Código do texto: T1588247
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