O DESPERTAR DO ÓDIO

Um olhar cansado de tantas guerras, perdia-se no vazio infame dos seus desgostos, nada naquela vida significava esperança, nenhuma direção mostrava o caminho da paz.
Os sulcos no seu rosto, não eram simples marcas, eram testemunhas de sua história, a visível infelicidade, rescaldos do massacre maldito, quando a droga e o crime, pousaram sobre sua vida.
Dalva sentiu a dor da perda pela primeira vez quando o marido envolvido com traficantes, foi executado com requintes de crueldade por supostos companheiros de crime.
Sua casa, era a primeira da esquina, mais uma de cada lado, 1 terreno baldio de cada lado e mais adiante a 300 metros, novamente se via moradias, na verdade um bairro miserável, todos viviam de biscates e do tráfico, alguns de furtos e pequenos roubos.
O sol se punha num domingo, quando lhe trouxeram o aviso, num bar próximo, os dois filhos, 17 e 20 anos, estavam mortos, foram metralhados, apesar da dor, sabia Dalva que mais cedo ou mais tarde teria que enterrar os dois únicos filhos.
Dalva, foi derrotada pelo destino, so lhe restava tentar viver, 49 anos que pareciam 60.
Quem matou seus entes? Apesar de todos saberem quem foi ninguém se atrevia a denunciar.
Sempre que podia caminhava entre os casebres do bairro, e não foi uma ou duas vezes em que presenciou massacres, uma prática consistia em abrir os corpos, retirar as visceras e atirar num rio próximo, profundo, se for considerar altura de uma pessoa mediana, como dona Dalva.
Aproximadamente 1,5 km de sua casa, numa estradinha, que dava para a cidade a 1 km, ela sabia, nas sexta-feiras era dia de trabalhos, era o vulgo usado para a feitiçaria.
Ali ela sabia, com convicção, que traziam crianças para serem sacrificadas em magia negra.
Dalva era uma mulher humilde, conhecida, nunca viram nela um denunciante em potencial, era
bobagens pensar que a velha senhora pudesse denunciar quem quer que seja.
Embora a mágoa lhe corroesse a alma, sabia que só estava viva por saber calar-se.
Viu tantas pessoas esvairem-se em sangue no seu quintal sem nada poder fazer, a voz que exigia silencio, era a mesma, que a cumprimentava de dia, com um olhar que lhe pedia cuidado, no que falar, no que pensar.
A sua vida era revirar os lixos a procura de recicláveis e alguma coisa que pudesse aproveitar,
para uso próprio.
Levantava as 4 horas da madrugada, ajoelhava-se em frente a um pequeno altar que fizera, com imagens achadas no lixo, tomava um copo de chá, comia um pedaço de pão e caminhava até as 9 da manhã, catando recicláveis.
Aquele não fora um final de semana tranquilo, tiroteios, assassinatos, gritos de crianças na madrugada, e sangue muito sangue nos meios fios, nas manhãs.
A segunda-feira chegou como uma benção, afinal teria horas de sossego após tantas tragédias.
A 5 quadras do bairro em meio a um terreno baldio, uma casa abandonada...
Na varanda da casa, um trio de mal encarados meninos. Reconheceu um deles, mais adiante
em frente a uma outra casa recolheu dois pacotes de papéis e latas de cervejas vazias.
Já em casa, começou a reciclagem, e por ultimo pegou os dois pacotes que catara perto de onde
estavam os rapazes.
Abriu-os, em um como era evidente, latas de aluminio, e no outro, fotos...
Muitas fotos, mais de 30, no fundo do pacote mais fotos, colocou-as em cima da mesa e começou a olhá-las.
Uma por uma, algumas pessoas eram conhecidas, mas eram fotos antigas.
Quando faltavam umas 10 fotos para que olhasse tudo, sentiu um calafrio...
Em uma foto amarelada, o rapaz segurava um homem ja velho pelos cabelos e tinha uma faca
introduzida inteira na garganta da vítima... Na sequencia de fotos o mesmo homem...retalhado de pontaços de faca sangrava no chão, rodeado de adolescentes com armas em punho...
Largou por instante as fotos, soltou os braços sobre a mesa, dobrou a cabeça para trás e chorou...
O seu marido não merecia aquele fim...pensou Dalva.
Desdobrou-se diante dos seus olhos as cenas trágicas de outros homens e crianças despedaçados pela horda de fascínoras, muitos deles conhecidos.
Por fim em volta de uma mesa de mármore, 6 pessoas vestidas de branco com capuz, exibiam punhais longos de prata, ao lado do corpo esquartejado de uma criança, Dalva, teve ímpetos de vômitar, mas controlou-se.
Juntou todas as fotos de uma vez só e recolocou no saquinho plástico.
Quando ia levantar viu no chão uma foto que havia esquecido, ao baixar-se a luz da janela incidiu direto na foto, então ela reconheceu o lugar..
Aquela palmeira, aquela velha cerca, aquela pequena janela que aparece ao fundo...
Sim...Dalva abriu a porta, caminhou 15 passos em direção a rua, voltou o olhar para a esquerda,
e lá estava a palmeira, a cerca e a janela...A janela da sua casa. Como um flash, lembrou do dia da morte de seu marido, tinha ido a missa, e quando voltou, a tragédia, com o corpo ja no IML, agora sabia onde mataram seu esposo, e quem o fez...
O olhar de Dalva naquela noite seguinte fora olhando para o infinito de seu pensamento.
Sabia quando estariam com as defesas vulneráveis aqueles bandidos...A tarde, sim eles dormem a tarde, pensou.
Naquela manhã juntou todas as economias que tinha, cerca de 150 reais, percorreu de ida e volta pelo menos umas 10 vezes o caminho do bairro
até a rodovia próxima, onde ficavam, as borracharias, barracas de beira de estrada e postos de combustível.
Eram 13:30 horas quando pegou o maior carrinho que possuia e que ja enchera pela manhã, manobrou-o e lentamente dirigiu-se para a rua em direção a cidade.
Antes da casa abandonada no terreno baldio, fez uma pequena curva e entrou por trás.
Furtivamente muniu-se de coragem e levantando o corpo nas pontas dos pés olhou o interior da casa por uma fresta.
___Olha só...pensou, dormem como anjinhos, rsrsrsr, riu de nervosismo.
Apesar de ser uma mulher pacata, era muito forte, erguia 60 kilos tranquilamente, mas era de paz.
Os anos de sofrimento aparentemente não lhe afetaram a índole, mas ninguém pode dizer do que o ser humano é capaz, diante de tanto e repetido sofrimento, e o que seria capaz de medir os limites de ódio resignadamente guardado durante anos.
Observou Dalva a porta encostada, e podia-se ver os pés dos rapazes...
Silenciosamente dirigiu as duas mãos para o fundo do carrinho, embaixo dos papéis, quando os retornou como que monoblocamente colado em suas mãos estava uma picareta de cabo curto, e um punhal de lamina longa.
Não...não eram mais os olhos de Dalva naquele corpo, o vermelho brilhou, e os dentes rangeram..
Estava diante dos rapazes, não uma mulher, mas o próprio demônio...
Com uma rápida passagem a lâmina do punhal degolou o primeiro...Quando o segundo fez menção de investir contra a mulher, o seu abdomem foi aberto de cima a baixo, num espetáculo horripilante, e numa segunda estocada a jugular do marginal derramou o sangue vermelho e quente sobre o chão de madeira da casa.
Os gritos e o intenso frenesí, pôs de pé o terceiro rapaz, o mais raquítico dos tres...
Na horizontal como se fosse um badalo de sino, a picareta descreveu uma parábola e entrou até a madeira pelo crânio do adolescente, e so se ouviu expressões de choro e lamentos de dor até que o silencio absoluto se fez...
Durante meia hora Dalva, fez o trajeto de fora da casa para dentro, do carrinho até o interior da casa, carregando e espalhando pela casa de madeira todo o papel por ela trazido.
Quando terminou, encostou o carrinho atrás da casa e voltou a sua casa.
Pegou em sua casa o pacote de fotos, colocou dentro da sua velha bolsa, passou novamente na casa onde estavam os rapazes, foi até atrás da casa, pegou 5 frascos de gasolina, entrou na casa, espalhou sobre os papéis...
Antes de fechar a porta, como a conversar com os mortos disse:
___Todos seremos cães se no meio de cães tivermos que sobreviver...
Riscou um palito de fosforo, fechou a porta e foi entregar as fotos para as autoridades...

Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 21/05/2009
Reeditado em 28/07/2010
Código do texto: T1606803
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