A PRIMEIRA NOITE NAQUELA CASA

Lembro-me bem da sensação que experimentei quando cheguei à sacada e inspirei fundo o ar da manhã. Era o meu primeiro dia na nova casa, o lugar que há muito eu havia vislumbrado para servir-me como moradia e local de reflexão e trabalho.

Tratava-se de uma choupana bem espaçosa e arejada, e embora ficasse incrustada no coração da cidade, estava completamente isolada, no meio da maior floresta urbana do mundo, no Alto da Boa Vista, e portanto, livre da desordem insana que rodeia os grandes centros.

Sendo eu um cientista interessado pelos mistérios da fauna e da flora, estava, de fato, em um ambiente mais do que apropriado para desenvolver as minhas pesquisas. Ora, quantas possibilidades se derramavam diante de mim, logo ali, na minha frente, alguns pintassilgos privilegiados por um esplendor tamanho que fariam o meu amigo do sul, renomado ornitólogo, Professor Meloni, exultar com o espetáculo que proporcionavam. Ah, sim, o ar da manhã, não havia nada comparável.

Durante todo o dia ocupei-me com os afazeres comuns a quem acaba de se mudar, e a ocupação dominou-me de tal forma que a minha mente fora incapaz de perceber o passar das horas. O manto da noite chegou de maneira tão repentina quanto aquela chuva fina que trazia um odor hipnotizante de terra molhada às minhas narinas.

Preparei um chá com as folhas aromáticas que sempre me acompanhavam, eu pensava em cultivar uma pequena horta como sugeriu-me uma amiga de longa data, a Rosi, adorável cidade a dela, infelizmente eu não teria tempo para participar da exposição sobre o meio ambiente que se realizaria na Praça Getúlio Vargas, a ocasião da mudança não permitiria, seria uma pena, pois eu poderia contribuir sensivelmente com as pretensões das escolas que organizavam o evento.

O início da noite começara agradável, apesar do cansaço que me dominava. Foi quando algo estranho começou a acontecer.

Ouvi um silvo longo e agudo que terminou com o som estrondoso de um trovão, tamanho fora o susto que deixei cair a xícara no chão.

Praguejei em alto som pelo fato. Eu precisava controlar o meu ímpeto, eu tentava, procurava lembrar das palavras do meu terapeuta.

Sempre que eu via aquela placa pendurada na porta de seu consultório, Dr. J.A.Ribeiro, eu lembrava de suas palavras: “Procure novas alternativas, se conseguir, o mérito será seu.”

Enquanto eu catava os cacos da porcelana pelo chão tive a nítida impressão de que algo se postava atrás de mim. Senti um calafrio. Comecei a virar lentamente a cabeça e deparei-me com uma parede nua, não havia nada. Deixei os pedaços da xícara no chão, àquela altura já me sentia por demais perturbado. Que raios estava acontecendo?

A chuva tornara-se mais impetuosa, chegando aos limites de uma tormenta, as gotas que caíam com violência produziam uma sinfonia atormentadora quando encontravam as telhas da casa. Já não existia mais paz e quietude, todo ruído que entrava pelos meus ouvidos me trazia uma agonia indescritível, parecia que a natureza e a casa conspiravam contra mim, nesse momento, a eletricidade acabou.

Imediatamente comecei a ouvir o som de gargalhadas, parecia que vinha de todos os cantos da choupana, eu tentava encontrar uma lanterna, uma vela que fosse, mas a confusão na qual a casa estava metida impedia que eu encontrasse o que quer que fosse.

Meu coração estava disparado. Não havia linha de telefone, eu instalaria um via satélite, mas só para a próxima semana. O celular? Sem sinal, obviamente, mas pelo menos serviria para produzir uma fraca luminosidade azulada.

Como eu havia caminhado até a sala de estar antes da luz se extinguir, o mais lógico seria retornar para a sacada, mas esta simples tarefa revelara dificuldades infinitas, a noção de direção me abandonara completamente.

O som de passos somava-se ao das gargalhada, tudo girava ao meu redor, eu estava desnorteado, comecei a correr e tropecei em uma caixa deixada no meio do caminho, caí com o rosto no chão, levei a mão ao nariz e senti o líquido espesso que escorria. Tateei em busca do aparelho celular e algo agarrou o meu pulso, um toque gelado, que me causou tristeza e que parecia queimar-me a pele.

Gritei e puxei o braço com força, esbarrei em algo, era o celular. Arrastei-me pelo chão, agarrei o objeto, apertei uma tecla para produzir a luminosidade a fim de iluminar o que estava diante de mim.

Arrependi-me na mesma hora. Visualizei a coisa mais horrenda que meus olhos jamais haviam presenciados ao longo de todos os anos de minha vida. Da madeira crua que compunha a parede projetava-se uma massa disforme e desconexa, que refletia sob a luz do aparelho, lembrava um braço erguido e um rosto transtornado que exalava demência e tentava me alcançar.

Parecia que sorria de forma sádica, mas o som das gargalhadas não acompanhava aqueles lábios horrendos. Tentei erguer-me e fugir, mas fui impedido por algo que se agarrava às minhas pernas, desta vez o toque que senti era gosmento e me causava náuseas. Cravei minhas unhas nas folhas de madeira do chão e gritei de dor quando elas se partiram e as lascas perfuraram-me os dedos enquanto estava sendo arrastado.

Fiz um esforço sobrenatural para virar o corpo ficando de costas no chão, olhei para o teto e consegui, não sei como, vislumbrar os detalhes do que seria um grande painel que ilustrava a vida silvestre.

Alguns pássaros pareciam olhar-me diretamente nos olhos e logo começaram a desprender-se da tela e voar ao meu encontro. Minhas pernas não estavam mais presas, mas eu não conseguia levantar, pois o bando de aves que me circundada obrigava-me a debater em busca de defesa. Minha pele estava sendo dilacerada pelos bicos vorazes das pássaros.

As risadas não cessavam, a chuva aumentava, raios e trovões ribombavam. A escuridão ganhava vida, eu podia sentir. O toque da morte estava em todos os lados, eu não poderia esperar que ela me alcançasse. Juntei todas as forças que ainda me restavam, mesmo tomado por uma dor imensa consegui colocar-me de pé.

Corri. Corri como pude. Disso dependia a minha vida. Sentia que estava sendo perseguido, não enxergava nada. Um rosto surgiu de repente diante de mim. Consegui desviar. Saltei, por instinto, sobre o sofá revestido pela lona da mudança, projetei meu corpo para frente despedaçando a vidraça que compunha a grande porta deslizante da varanda, voei pelo vão aberto esborrachando-me na terra encharcada.

Perdi a consciência enquanto via a nuvem negra composta pelas aves e sombras descendo até mim acompanhada pelas gotas que desabavam do céu escuro.

Não sei ao certo como consegui escapar daquela enrascada. Agora estou aqui, nessa casa nova e confortável, lindamente decorada, só sinto falta de uma janela pela qual eu pudesse aproveitar as nuanças de um por do sol. Mas, não tem problema, ainda assim o lugar reserva seus encantos e posso aproveitar bem o tempo para efetuar meus estudos. Gosto de olhar para essa parede envidraçada, a transparência me transmite uma sensação de profundidade. Só não gosto daquelas manchas na parte de cima, elas parecem tomar formas estranhas. Não, não é impressão, elas estão se mexendo. Não! Deixem-me em paz! Saiam de cima de mim, não.......

- Enfermeira, enfermeira, o paciente da sala 132 está tendo uma convulsão...

- É o professor de novo, ele acabou de chegar...

- Não foi aquele que se jogou da sacada da clínica ecológica de repouso?

- Ele mesmo...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 03/06/2009
Reeditado em 19/11/2009
Código do texto: T1630230
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