Guinada na Vida – ( com Bernard Gontier)

Hoje deveria ser o pior dia da minha vida. Estava sendo, até agora. Mas a vida é assim mesmo, cheia de surpresas.  Guinadas. Pequenas ou grandes elas mudam a vida da gente. A minha acaba de mudar. Para sempre. Fui ao casamento. Não podia deixar de ir. Foi  minha última tentativa.  Fiquei lá, os olhos fixos nela. O tempo todo. Linda em seu vestido branco. Os cabelos negros. Ondas revoltas onde eu queria me afogar. Não tive olhos para mais nada. Só ela, o tempo todo. E então a cerimônia acabou e ela se foi. Eu sabia e ela também: era uma fuga.Terminava ali. E eu me perdi na noite. Nunca escondi nada dela. Desde que a vi tive certeza.  Quando se descobre o verdadeiro amor descobre-se também sobre a impossibilidade das mentiras. Eu lhe contei em nosso primeiro encontro. Pensou que eu estivesse brincando. Mas não estava. Tive que provar. Mesmo assim, relutou em se afastar de mim. Queria ser minha amiga. Fomos. Quem ama respeita. O tempo todo tinha que me conter, mas me contive. Por amor. Até que não mais agüentei. Exigi uma decisão. E ela decidiu. Fugir de mim. Saí da Igreja maldizendo a minha sina. Andei pelas ruas escuras molhando o chão com minhas lágrimas. Mas não podia esperar o dia amanhecer.  Voltei para casa. E agora a guinada. A grande guinada. Mal abri a porta e entrei na sala vazia eu a vi. Deitada sobre o tapete branco com seu vestido branco. O véu e a grinalda, não sei onde estão. Está ali há muito tempo, eu sei. O cinzeiro cheio de pontas amassadas atesta. Os cabelos espalhados sobre o branco tapete onde tantas vezes estivemos apenas conversando. Quando me viu, cruzou os braços sobre o peito, como para se proteger. Sim, ela veio se entregar. Mas tem medo. Muito medo. Na boca o batom vermelho, nas unhas o esmalte vermelho. E logo, logo, gotas líquidas de rubi rolarão de seu pescoço. E eu a levarei para o quarto escuro onde não entra a luz do dia.  Eu e ela.  Sim, ela está se entregando inteira. A sua vida de mortal só para ficar junto a mim por toda a eternidade. Vampiros, eu e ela. Para sempre.

Corta! – exclamou o diretor, com sua voz de barítono.
É o meu primeiro longa.
Laura tira a peruca e seus cabelos loiros, curtos, aparecem. Todo mundo corre pra ela. Está na estrada há mais tempo do que eu e faz um sucesso danado.
O diretor pede água mineral Evian, duas pedras de gelo e uma rodela de limão. Trata-se do seu ritual de celebração. Sua assinatura cinematográfica são cenas longas sem um único corte. Dessa vez ele se superou. O efeito da câmera em movimento, da igreja até sala de estar da casa foi ensaiada exaustivamente.
- Milton!

 Sim,,respondi
- Depois passa na ilha – diz Sandra, a continuísta -  precisamos regravar o trecho em que você fala: “Saí da Igreja maldizendo a minha sina. Andei pelas ruas escuras molhando o chão com minhas lágrimas”. Ah, as meninas dizem que você tem uma voz muito sexy.
Assenti. Estava exausto. Queria ir para o hotel, tomar um banho e descansar.
Laura Dias tem 33 anos e a pele tão suave que tenho vontade de me grudar nela  com todos os sentidos. Oito anos mais velha do que eu, teve uma carreira meteórica na Globo e no cinema. Já contracenou com o Rodrigo Santoro lá nos states. Esse filme que estamos fazendo agora é  sobre o livro “Guinada”, de Alfredo Soares. Estou pouco me lixando. A única hora que esse texto me chama a atenção é quando fico perto de Laura, minha pele encostada na dela.
- Milton Diniz!
- Sim – assenti, sentindo meus olhos semicerrados.
Uma repórter de TV. Estão na porta do estúdio desde 8 da manhã. Laura é o centro das atenções, mas já saiu em disparada com suas duas secretárias. A repórter quer saber detalhes de bastidores e coisa e tal. Fui muito atencioso. Pouca gente me engole por aqui.
- Esse é o seu terceiro trabalho como.
- Quinto – reitero.
Ela sorriu se desculpando. Outros jornalistas correm para o diretor. Só se comenta a sua cena de tantos minutos de duração sem um único corte, a capacidade desse estúdio, a novidade que isso significa para o cinema nacional.
- Táxi! Hotel Glória, por favor.
Detesto essa cidade.  Calor infernal, trânsito, um burburinho tenso de onde se espera, a qualquer momento, um tiroteio ou coisa pior.
- Quarto 430. Estou esperando uma encomenda. Alguém apareceu?
A palavra concierge resulta de duas palavras.
Atrás do balcão ele meneou a cabeça negativamente.
Assim que abro a porta do quarto me deparo com uma saia branca jogada no chão.
Em francês, “con” significa o órgão feminino e “cierge” significa vela.
Vá entender.
- Laura? – falei antes mesmo de ver alguém, ou talvez a suposição de Laura Dias estar na minha cama foi tão intensa de emoções que julguei tê-la visto, ou, o pior, a pancada que me deram na cabeça foi de fato para me derrubar.

Acordei, finalmente. Por alguns momentos fiquei sem saber onde estava. Um dor terrível  na cabeça transtornava meus pensamentos. Levantei-me  apoiando nas paredes. A sala estava na penumbra .  Percebi uma sombra encostada na parede oposta. Era Laura. Só percebi o que tinha acontecido quando ela sorriu e eu vi seus caninos pontiagudos. Uma ardência em meu pescoço  me fez levar a mão até ele. Algo viscoso molhou meus dedos. Olhei assustado. Era sangue. Desmaiei de novo mas me recuperei logo. Agora ela está me acarinhado gentilmente e falando palavras de amor. Ela diz: para todo o sempre. Eu finjo que ainda estou desmaiado. Preciso me acostumar ao que aconteceu. Vampiro, eu?  Não dá para acreditar.

 (Gravura da Al Parker)