Amphiteatrum das Sombras – Parte I: Lobisomem
Com um sorriso malévolo esculpido em sua face, Cassius fitou a sibilina lua cheia através da janela daquela cabana deserta, no meio da floresta. Espessas nuvens tentavam ofuscar o seu brilho, mas a Mãe da noite sobrepunha-se e sobrepujava qualquer resistência ocasional, e seu sinistro brilho voltava a preencher a escuridão.
Enfeitiçado pela majestosa beleza do luar, Cassius completamente nu, abriu uma gaveta de uma pesada e antiga cômoda, retirando dali uma caixa de marfim, onde havia gravado em alto relevo, estranhas e misteriosas runas. Solenemente ele segurava a caixa com ambas as mãos, e de olhos fechados parecia concentrar-se em seu objetivo.
De dentro da caixa ele retirou uma embalagem circular de metal parecendo ser de prata, destampou-a. Era uma espécie de pomada, que exalava um odor acre e nauseabundo. Com cuidado, e sem tomar-lhe o cheiro, Cassius esfregou-a vigorosamente por todo o corpo, indo em seguida em direção à mesinha de cabeceira, onde havia um exemplar muito antigo, e de encadernação dura do não menos famoso quanto raro livro de São Cipriano Capa de Aço!
Com a mesma reverência que havia segurado a caixa de marfim, Cassius tomou o livro entre as mãos, abriu-o de repente na primeira página, onde estava escrito em garranchos no topo do lado direito seu nome completo, e logo abaixo, sua data de nascimento, ratificando o pacto que selara há muito tempo com temido e sibilino tomo.
Uma névoa pareceu passar por sua mente, e seu corpo estremeceu com estranho calafrio, quando daquele pensamento de recordação... Mas o que está feito, está feito! E não se pode mais voltar atrás... Quando se faz um trato com as trevas, não se pode mais recuar, entramos simplesmente no rol dos Réprobos e dos Condenados, e, acabamos por gostar disso! Talvez nem se pudessemos voltar atrás o fariamos... Fariamos?! Afinal, as Trevas tem um 'Q' de mistério, sedução, liberdade irrestrita, opulência, luxúria e poder que os convencionalismos da vida comum tolhem. Tornando o indivíduo um simples e mecanizado automato... Não há hipocrisias e falsas modéstias nas trevas; nas sombras o animal enjaulado que carregamos no âmago liberta-se e é livre. Não há mais neste ponto aquilo que a psicologia chama de 'Criaturas do Id' – as máscaras do Ego. Existe apenas o Animal! Livre! Correndo e chorando, uivando, sentindo o orvalho e o frescor de sua mãe, dama e senhora, a Noite! Mesclada com todas as nuances e odores intempestivos que lhe chegam às narinas, provocando através de uma fusão caracteristica em suas glândulas salivares, um único desejo; um único apetite... O da caça!
Num lapso de tempo em que não transcorreram sequer trinta segundos, tais pensamentos pareceram, no entanto, uma verdadeira eternidade digressiva para o atormentado Cassius, que tratou de folhear o livro em suas mãos, parando numa página específica, onde havia o 'feitiço do lobo'. Cassius deteve-se por um instante, acarinhando instintivamente e cheirando como um bicho, a folha que continha a fórmula mágica, com tal reverência que mais parecia um sacerdote ou um devoto ante uma imagem religiosa, ou objeto de sua fé.
Enfim encenando melodramaticamente, ele começou a recitar o feitiço que ora reproduzo aqui na integra, meus queridos leitores, mas que não aconselho-vos a repeti-lo, ou ao menos sequer lê-lo em sua totalidade, acaso não desejem também tornarem-se lobisomens...!
Cassius sofria violentos espasmos. A pomada maldita começava a produzir seus efeitos sobre sua pele ardente... No começo era apenas um leve frescor, semelhante ao provocado por Eucalyptus. Mas depois de alguns minutos, todos os poros começavam a arder, como se o indivíduo fora imerso nas chamas do próprio inferno! Dores lancinantes faziam-no urrar pavorosamente; espasmos e estertores violentos provocavam-lhe convulsões semelhantes aos ataques epiléticos. Efeitos análogos também poderiam ser provocados por substâncias como Hyoscyamus Niger e Datura Stramonium.
__ “No mar... __ Cassius começou a recitar o feitiço.
“No oceano, numa ilha, em Bujan,
“Na pastagem vazia brilha a lua, em um curral,
“Na floresta, num vale sombrio.
“Vagueando pelos estábulos um lobo peludo,
“De presas brancas e afiadas, procurava animais de chifres;
“Mas o Lobo não entra na floresta,
“Não entra no vale sombrio.
“Lua, lua, lua de chifres dourados,
“Interrompe o percurso das balas, tira o fio das facas dos caçadores.
“Quebra o cajado dos pastores,
“Espalha medo selvagem sobre todo gado,
“Nos homens, em todas as criaturas rastejantes,
“Que não possam caçar o lobo cinzento,
“Que não possam dilacerar sua pele quente!
“Minha palavra está mais comprometida, que adormecida;
“Mais comprometida que a promessa de um herói!”.
O feitiço em sí, mesmo que não surta os efeitos desejados (ou seja, a metamorfose em lobo), sem o auxilio da pomada mágica (cuja receita, talvez, jamais venhamos descobrir), constitui em sí mesmo uma maldição! Para quem o lê ou recita...! Deixemos, entretanto, que a consciência de cada leitor julgue pela veracidade ou não desta amigável advertência. Pois caso resolvam transgredi-la, e lhes sucite algum mal, não terá sido por falta de aviso.
Dois pontos vermelhos saltaram pela janela da choupana, e o lobo monstruoso, em meio ao espesso nevoeiro, embrenhou-se na floresta correndo, correndo e resfolegando... Completamente livre! Iluminado somente pelo mágico holofote lunar... Ao longe podia-se ouvir o imponente e aterrador grunhido da criatura, capaz de fazer gelar o sangue nas veias dos homens mais bravos.