CONTOS DE CRETUS - LOTUS

Era como se os minutos fossem eternos, e Jerry estivesse paralisado em uma época agoniante. A dor era profunda, finalmente podia dizer que a dor do mundo atravessava cada milímetro de seu corpo queimado. As feridas não cicatrizavam mais, moscas pequeninas a rodeavam e pousavam sobre o sangue seco, enquanto saboreavam o pus amarelado (pelo menos Jerry supunha isso), pequenas moscas que incomodavam por pousarem sobre o olho ferido, que de tanto toca-lo, fazia com que o jovem monstro escorresse lagrimas de sangue unida ao liquido esbranquiçado da infecção. Erguia a cabeça deformada enquanto o único olho saudável e quase opaco procurava por luz, por vida, e então viu o rosto, o coração parou por um instante e usou os braços para tentar se proteger, imaginando um provável ataque ou grito. Mas não ouviu nada parecido. “provavelmente mais um delírio” pensava o jovem Jerry Rocco, apesar de nem mesmo saber se estava de fato com febre. Sentir não era mais uma possibilidade naquele corpo miserável. Ainda assim ouvira algo, e um toque leve em sua cabeça – que um dia tiveram cabelos loiros – a voz dizia:

- não tema, eu estou aqui para ajudá-lo.

Fora nesse momento que ele começara a notar que não estava mais nos becos sujos da cidade velha, que ratos e gatos não mais o lambiam, que gritos de mendigos assustados haviam cessado. Que seu corpo – ainda que sentado – estava coberto por uma leve lençol. O aroma de incenso no ar, não sabia distinguir o que era, mas lhe fazia bem, lhe dava tranqüilidade, e ainda que houvesse uma dor abominável em seu corpo, ela não mais aumentava e o torturava como antes. Tentou respirar, e girou o olho esverdeado a procura de sua salvadora e lá estava a jovem de cabelos negros e ondulados, a pele morena, os olhos castanhos que cintilavam com uma beleza que Jerry nunca mais vira, desde sua infância, como se a vida saltasse de seu peito. “Talvez fosse esperança” Pensava. Ela lia em silêncio um livro enquanto bebia um copo de cerveja e tragava um cigarro, parecia tranqüila, sem qualquer medo ou preocupação. Jerry pensou em falar, mas não sabia se ainda podia, ou se seria necessário questionar os motivos que a levaram aquela atitude absurda, ou pelo menos julgava absurdo colocar um monstro como ele dentro de uma casa, talvez a solidão humana estivesse chegado a um nível doentio para aquela mulher, ou talvez fosse repleta de boas intenções, algo que era inaceitável para Rocco.

Horas se passaram, mas Jerry não dormia, o sono quando finalmente chegava, era bombardeado por pesadelos estranhos e incompreensíveis, se via na mata, a correr, podia sentir a umidade e o calor intenso, o som alto de um riu e gritos agudos. Então seu olho se abria, e podia enxergar a sua frente o relógio preso à parede, e mal havia se passado cinco minutos. A noite não tinha fim, e a jovem continuava a beber suas cervejas e fumar seus cigarros enquanto lia. Foi então que tomou coragem, e a voz, rouca e falha quebrou o silêncio:

- Quem.... é você? E... porque... faz isso?

Era difícil falar, parecia o mais árduo trabalho movimentar os lábios secos e com seus cantos unidos a carne. Tentou se virar, mas não conseguiu, a dor atravessou seu corpo e rangeu os dentes, ainda assim conseguira ouvir sua voz doce e alta:

- Não sei... Você precisava de ajuda, mais do que qualquer um.

- Não preciso de ajuda, logo morrerei. Respodeu Jerry.

- Eu duvido, se não morreu até agora é porque o destino lhe deu uma grande vida...

- O que o destino poderia ter feito a mim? Me queimar?...Tornar-me um monstro?

A jovem se aproximou, franzia a testa enquanto agachava-se ao lado do grotesco Jerry.

- Você não é um monstro. Existe algo mais, que pode ser mais belo que qualquer corpo. A alma. Disse em um sussurro carinhoso, como quem tenta reconfortar o melancólico.

- Duvido muito que existam almas puras e belas, e a falta dessa ingenuidade que me levou a essa situação desprezível. Não perca seu tempo acreditando no bem das pessoas, isso não existe, nunca existiu, somos guiados pelo ódio e egoísmo, reserve essa ingenuidade para a sua infância. Respondeu Jerry com lentidão nas palavras. Olhou a pequena janela fechada a sua frente enquanto recordava-se de sua curta vida humana e suas poucas felicidades. Agora era um monstro, dês do dia em que vestira aquela mascara e passara a assassinar, caçar aqueles que julgava serem páreas, que vieram ao mundo para trazer o caos, e quando se dera conta, era ele o mais caótico de todos. A jovem o olhou durante um longo tempo, pareceu pensar. Então maneou a cabeça negativamente enquanto franzia o cenho.

- Não, não acredito nisso... Você é apenas um amargurado, nada sabe sobre a vida, conhece apenas o pior lado dela, e não é isso que motiva a todos que vivem nessa região a se levantar a cada manhã.

- Fazem isso porque desconhecem a existência de uma vida melhor, que nasceram para esse inferno, e no fim, fazem com que seus filhos se acostumem com ele. Disse Jerry, tentando a olhar.

- Eu duvido! Todos sofrem, mas não desistimos da vida por causa de governos corruptos, por infortúnios causados pelo lado sombrio humano que tanto damos valor e aperfeiçoamos.

- Estupidez... Nada mais que isso... Então me diz que o sentido da vida, é ser feliz, independente das condições em que se vive?

- É claro... Talvez você nunca sentiu isso, mas há felicidade nessas pessoas.

- Então não passam de ignorantes que se orgulham da própria estupidez.

- O que um homem como você sabe como é a vida? Não passa de um maldito monstro! Talvez por tanto odiar a vida, Deus se encarregou de dar-lhe um bom motivo para odiar-la!

O silêncio se fez, Jerry desconforto-se com aquelas palavras, mas logo um leve sorriso se esboçou nos lábios disformes.Ela pareceu envergonhada pelas próprias palavras, era palpável a compaixão que sentia. O som de uma campainha ecoou pelo pequeno apartamento. A jovem não mais o olhava, apenas olhou o relógio na parede e saiu do quarto, fechando a porta logo atrás. Sua feição deixava claro o quão aquela simples campainha havia a deixado nervosa.

Aproximou-se receosa da porta, e a abriu, mas nem mesmo tivera tempo, ao girar a maçaneta, uma explosão de força a arremessou longe. A força da porta que chocou-se com seu rosto, arrancara sangue de seu nariz. Pensou em se movimentar, mas sentia o corpo fraco, o teto girava. Enquanto tudo isso, ouvia os passos fortes e lentos se aproximarem dela.

- Haidê, Haidê... Acho que esta me devendo um bom dinheiro não? A voz soava sarcasticamente carinhosa, enquanto o homem já conhecido da jovem, abaixava-se para observa-la. Ela via seu sorriso enquanto ele acariciava seu rosto com leveza e continuava:

-...Sabe qual é o problema dos viciados Rock? É que nunca tem o suficiente para pagarem o que usam, odeio isso... Sou contra o vicio de certos produtos. E por fim gargalhou, enquanto seus outros dois comparsas riam e se aproximavam dela. Haidê apenas derramava lágrimas de desespero, mas não gritou, ou mesmo movimentou-se, parecia ciente das conseqüências de seus atos, e ainda que o medo estivesse presente, e as trevas jogassem seu manto de crueldade - do ponto de vista da cidade velha, a noite sempre esta unida a crueldade –, a vida parecia pulsar de seu peito.

Ela fechou os olhos. Uma forte corrente de ar se fez, e ouvira um grande impacto e os homens a gritar “Meu Deus!”. Mais um grito, agora expressava uma dor agoniante. O coração disparou e ela abril os olhos, e vira o homem que antes parecia tão bem com suas palavras repletas de escárnio, mas agora era apenas um cadáver encostado na parede, os olhos esbugalhados e pela forma como a cabeça pendia, seu pescoço estava quebrado. O horror lhe tomou conta, fechou os olhos, e ainda que sentada, arrastou-se até o lado oposto da sala. Um outro grito. O coração disparado, não se atreveria a abri-los, e num movimento infantil, juntou os joelhos próximos ao corpo, e abraçou-se.

- Abra os olhos... acabou. Dizia Jerry ofegante. A voz soara estranha, dês ritmada.

Haidê os abril, mas preferia tê-los fechados, a visão aterrorizante de todos caídos, um dos homens a olhava fixamente. Uma caneta estava cravada em seu pescoço e o sangue havia banhado parte da pequena sala. O ultimo tinha o rosto disforme por socos. Um vazio se fez em seu peito, o coração pareceu se contorcer enquanto via aquela cena digna de filmes de terror. Ergueu-se em lagrimas enquanto dizia a si mesma que aquilo não estava acontecendo. Pedia a Deus que aquilo fosse mentira, que nada passasse de um pesadelo. Os olhos por fim pairaram sobre a imagem horrível, grotesca de um monstro que a fazia lembrar do Terrível Frankstein. Como se houvesse saltado de seus sonhos, mas além de todo aquele terror, vira um terrível fardo a ser carregado por aquele ser aparentemente tão repulsivo e cruel.

Jerry levantou-se, o corpo terrivelmente dolorido não parecia mais lhe prender a cadeira, parecia sentir que seu corpo voltava a reagir, e imaginando que a jovem nem mesmo notaria sua saída, devido o pânico, começou a caminhar para a saída, retirou a toca de uma de suas vítimas e a colocou, e antes mesmo de atravessar o portal ouviu a doce – mas falha – voz da jovem Haidê:

- Existe um provérbio chinês que meu pai sempre me disse. “Jamais se desespere em meio às mais sombrias aflições de sua vida, pois das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda.”... Essas palavras sempre me ajudaram... talvez o ajude...

Jerry a olhou por um instante, não era algo que esperava ouvir, por um segundo se sentira importante de fato, e seu coração pareceu se reconfortar e, não vira todos seus atos como de sua natureza incompreensivelmente selvagem, demoníaca, mas sim como de uma maldição que logo passaria. E sorriu, por lembrar que às vezes, a ingenuidade nos faz bem.

Zé Rizzotto
Enviado por Zé Rizzotto em 01/06/2006
Reeditado em 12/09/2006
Código do texto: T167114