BRONZE E ÂMBAR

Poucas coisas na vida me tiram do sério , mas ver um ser humano se corromper pelo vil metal, ah, isso eu não agüento. Há tantas coisas mais importantes, mais urgentes, que merecem a nossa atenção, sempre pensei desta forma. Neste instante, por exemplo, caminho pelas ruas desoladas dessa cidade em busca de algo que me chame a atenção e olha o que vejo: um sujeito fazendo uso de seu porte físico e de uma pequena lâmina para subtrair os pertences de uma jovem, coisas desse tipo não posso deixar passar em vão.

Contorno a esquina bem rente ao muro e com a sutileza que me é peculiar escalo a parede de tijolos crus da viela à minha direita. Logo chego ao beiral sobre o meu alvo, lá de cima observo e aguardo a oportunidade. Com um salto preciso derrubo o agressor, tomo-lhe a faca com extrema facilidade e fazendo uso de uma chave de estrangulamento tiro-lhe os sentidos.

A moça quase não acredita no que vê, ela fica estática, olhando-me como se eu fosse algo de outro mundo. Passado o instante da surpresa e perplexidade, observo melhor a vítima do meliante, uma jovem cuja aparência revela uma idade não superior aos vinte e poucos anos, cabelos longos e negros, levemente encaracolados nas pontas. Sua pele exibia um bronzeado reluzente, natural, exalava um frescor incomum, difícil de definir.

Apesar das curvas sinuosas de seu corpo, o que me chamou mais a atenção foram seus olhos vivos e marcantes, o espanto inicial havia desaparecido e em seu lugar surgia algo que não sei bem explicar o que era, mas que mexia muito comigo, e quando isso acontece não tenho opção. Minha procura acabara, o que eu procurava na desolação daquelas vias escuras estava bem ali diante de mim, por obra do puro acaso. Sabe, não sou bem uma pessoa a qual a sociedade se orgulha, longe disso, sou visto como uma praga a ser exterminada, como eu disse anteriormente, não me contento com o materialismo insensível, busco algo grande, desejo o maior bem dos meus escolhidos, seu tesouro mais precioso...

Alguns estudiosos costumam classificar pessoas, assim com o perfil parecido com o meu, como bem articuladas e persuasivas. Nesse caso sou obrigado a concordar com eles, não preciso insistir muito para convencer a moça a me acompanhar. Já faz algum tempo desde que encontrei alguém que me agradasse, e essa dificuldade já estava me deixando um pouco ansioso, minha última experiência superara as expectativas, a garota suportara por bastante tempo e isso me deixou em êxtase.

Lembro bem do que senti quando deslizava as pequenas lâminas em movimento circulares por toda a extensão da pele alva daquela menina, o contraste com o sangue que brotava e escorria como um rio no relevo irregular de seu corpo, desabando em cascatas e formando pequenos lagos no chão frio de pedra.

Ela tinha os olhos bem parecidos com os da moça que me acompanha agora, não na expressão, pois essa é inigualável, digo na tonalidade, uma espécie de âmbar cintilante, bonitos, retirei-os da cavidade ocular com todo o cuidado, lentamente...

Chega de lembranças, elas atrapalham o raciocínio, preciso me concentrar na minha nova amiga, ela fala pouco, espero que resista bravamente, gosto da valentia das vítimas.

Normalmente eu as levo para um local de minha escolha, é mais fácil a dominação em um ambiente conhecido, mas desta vez abrirei uma exceção, farei o meu serviço na toca da presa, será divertido e inusitado, necessito de novas emoções. Ela mora em uma casinha simples de vila, deve ser uma dessas meninas que batalha firmemente para pagar os estudos, admiro isso, não sou tão insensível como posso parecer. Um chá? Quem hoje em dia oferece chá para os convidados? Tudo bem, não beberei nada mesmo...

Aguardo maliciosamente para que ela fique de costas para mim...assim...com um movimento rápido tapo sua boca com uma das mãos e com a outra aperto seu frágil pescoço, ela está dominada.

Pressiono seus pulsos até quebrar os ossos, um por vez, deixo-a completamente indefesa, retiro a fita adesiva do casaco e impeço qualquer chance de pedido de socorro, amarro seus braços feridos e suas pernas. Ela fica sentada em uma cadeira, de frente para mim, seus olhos marcantes me encaram com um ódio visível, eu gosto assim...

Busco nos bolsos minhas adoráveis lâminas; pequenas, afiadas, nocivas e letais. Com uma delas em punho executo um deslocamento firme e rasgo a blusa da garota fazendo voar todos os botões, a pele bronzeada de seu ventre se revela para mim, fico fascinado. Encosto levemente a ponta da lâmina na altura do esterno e inicio um movimento lento e superficial descendo em ziguezague até o umbigo.

Para minha surpresa, a essência da vida demora a surgir, mas quando vem apresenta-se de uma forma espessa, um rubro escuro e encorpado, lindo. Faço várias incisões na maciez de bronze, ela não produz uma só lágrima, apenas me olha de maneira penetrante, adoro isso...

De fato, ela detém toda a fibra que eu tanto aprecio em meus experimentos, ao ponto dela parecer sorrir por baixo da fita adesiva que veda a sua boca. Um som entrecortado e abafado, a coisa mais estranha que já presenciei em todas as vítimas ao longo desses anos.

Algo inusitado acontece, parece que ela está tendo uma convulsão ou algo do tipo, a fita prateada que a impede de falar move-se rapidamente, fascinante! Interrompo temporariamente meus afazeres e fico apreciando interessado o espetáculo. A fita começa a se expandir como se fosse uma bola feita de chiclete, não consigo parar de olhar tão bizarra cena, logo a bolha explodiu e eu apaguei com o impacto de algo que me atingiu.

Quando acordei já estava nessa situação, com pernas e braços atados por algemas de ferro nessa cadeira. Parece que estou numa espécie de porão escuro e úmido. Note que existem outras cadeiras ocupadas, mas todos estão em silêncio. Quase não consigo enxergar, mas ouço alguns passos, logo uma voz preenche todo o ambiente.

- Bem, meu rapaz, você não deveria estar nessa situação, na verdade você a buscou. O sujeito que você atacou de maneira tão leviana seria o escolhido da vez. No entanto, você vem e se oferece em seu lugar e isso eu não posso recusar.

A voz é a da minha suposta vítima, mas como? Como vim parar aqui? Ela estava dominada...

A luz do recinto começa a aumentar gradativamente e então percebo que todos ao meu redor estão mortos. Noto um buraco na testa de cada um deles, mas não vejo nenhum vestígio de sangue.

- Sabe – a voz da garota volta e visualizo seus cabelos longos e negros, ela fala de costas para mim – você deve ter se divertido bastante com aquele negócio com as facas e tudo mais, tipos como você são tão patéticos, tão superficiais, não absorvem o que realmente importa.

Ela está de frente para alguém, que assim como eu está preso em uma cadeira, a pessoa nada fala, não se movimenta, não vejo seu rosto, mas imagino que esteja em choque.

A garota abre os braços, ouço aquele som parecido com um risada abafada, um grito! Céus o que ela fez com o prisioneiro? Ele começa a se debater na cadeira por alguns segundos até parar por completo.

- Pena que têm tão pouco a ser absorvido – disse ela com sarcasmo...

Quando ela se virou em minha direção pude entender, com horror, do que ela falava. Era um rapaz que estava na cadeira logo à minha frente, ele agora estava morto, também com uma perfuração na testa. No entanto, o que me deixou horrorizado não fora apenas a cena diante de mim, mas sim a própria garota de pele bronzeada, a qual, inclusive, se achava mais reluzente do que antes, chegava a faiscar com um leve reflexo, parecia revestida por escamas ou algo do tipo.

Ela não apresentava qualquer vestígio dos ferimentos que lhe causei, longe disso, ela parecia nociva, ferina, com uma fisionomia reptiliana. Seus olhos cor de âmbar não passavam de riscos verticais agora, mas emitiam o mesmo magnetismo. Da boca entreaberta pendia uma longa e cilíndrica língua, a qual exibia uma abertura na ponta de onde vertiam resquícios de massa encefálica.

Ela puxava lentamente o órgão oblongo de volta à cavidade bucal. Nesse momento não agüentei e gritei com toda a força dos meus pulmões.

- Não grite, prefiro quando vocês são fortes e resistem bravamente! - Disse ela gargalhando...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 29/06/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1673494
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