A MULHER DE CINCO METROS

De acordo com o relato de minha mãe, essa história ocorreu lá pela década de cinqüenta, aqui mesmo no bairro onde moro, na época um lugar naturalmente isolado pela própria geografia, pois trata-se de uma ilha, hoje importante e movimentado polo da cidade do Rio de Janeiro, ponto de entrada e saída da cidade, onde localiza-se o Aeroporto Internacional do Galeão.

Bem, voltando ao caso, o fato ocorria em uma das muitas localidades que se organizavam em vilarejos quase incomunicáveis entre si, tais localidades deram origens , mais tarde, aos atuais sub-bairros. E nesse ponto específico, isolado das vias principais por onde circulavam os bondes, as pessoas chegavam após a subida de uma longa e desgastante ladeira, a Estrada Menino Jesus de Praga, a qual por razões óbvias era conhecida como Rua de Barro, denominação que persiste até os dias atuais, mesmo estando há muito asfaltada.

De um lado da ladeira era possível notar o início das fundações dos prédios que viriam a compor as instalações da futura sub-prefeitura, e do outro lado não existia nada além de uma ampla e frondosa vegetação que servia de fronteira com os domínios de uma região mais afastada onde se iniciava um processo de favelização.

O lugar era precário de iluminação, tendo em vista que a eletricidade ainda era artigo raro nas vias públicas, e esse fato, aliado à crendice típica de época tão distante da tecnologia atual, davam margem para várias narrativas de encontros inusitados e aparições das mais fantásticas.

Essa em especial perdurou por muito tempo e eu a repasso exatamente como me fora descrita por minha mãe, pois ela presenciou algumas vezes tal manifestação. Ela seguia sozinha em uma noite de sexta-feira, dia preferido da maioria das assombrações, chovia levemente e ela estava tomada pelo receio por ter de atravessar o tão mal falado logradouro.

Ela parou no pé da imensa ladeira e praticamente não conseguia enxergar o cume, então achou por bem iniciar uma louca e desabalada corrida na expectativa de que a sua juventude pudesse favorecê-la na empreitada.

Decidida e determinada, ela começou a correria inspirando com desespero o ar gelado que vinha do mar. Nos primeiros metros nada de estranho aconteceu e isso a animou bastante, tanto que chegou a reduzir a aceleração logo após cruzar a metade do morro, olhou para o lado direito e contemplou os tijolos e a areia das obras, virou então o rosto para o lado esquerdo, em direção ao mato alto e então ela a viu: vestes brancos e esvoaçantes, cabelos longos e loiros, braços abertos, iluminada e incrivelmente alta, gigantesca.

Minha mãe não ousou encará-la, estava dominada pelo medo, normalmente nessa horas ficamos totalmente paralisados pela situação, mas isso não ocorreu com ela, pelo contrário, o pavor injetou uma nova carga de energia em seu corpo e, ainda que aos gritos, saiu em disparada sem coragem para olhar para trás.

Chegou em casa na metade do tempo que levaria em uma ocasião normal, estava transtornada, não dizia coisa com coisa. Seus pais tentavam entendê-la sem sucesso, longos minutos foram necessários para que se recuperasse e estivesse apta a iniciar um relato decente.

Diferentemente do que poderíamos imaginar hoje em dia, meus avós a entenderam completamente, acreditaram de fato. Para eles o que ela presenciara era a manifestação evidente de uma entidade demoníaca, uma alma atormentada, como muitas que rondavam aquela região. Era uma época em que a fé e as crenças inabaláveis eram constantes em muitas famílias e naquela casa não era diferente, muitas preces foram realizadas durante toda a noite.

Minha mãe não conseguiu dormir e a partir daquela data passou a ficar atenta aos rumores sobre as aparições, e elas continuaram a ocorrer de forma constante. Todos evitavam passar pela estrada amaldiçoada, buscavam um caminho alternativo e consideravelmente mais longo para ir e vir de suas residências nas noites de sexta-feira, a vida difícil tornara-se ainda pior.

Obviamente existiam aqueles que classificam o fato como pura crendice de um povo ignorante, mas até mesmo estes, ainda que não admitissem, bem no fundo de suas almas, receavam cruzar a Rua de Barro. Os relatos não paravam; fogo, luzes, fumaça, e tantas outras coisas acompanhavam o surgimento da mulher, uns diziam que tinha os cabelos dourados como o sol, outros que eram negros como a noite, outros afirmavam que chamas tomavam toda a cabeça da estranha. Em uma coisa a opinião era unânime: o tamanho, mais de cinco metros, contavam...

Minha mãe nunca mais conseguira viver em paz, era impossível esquecer tão terrível encontro, foi quando ela decidiu tomar uma medida inusitada, encontraria novamente a mulher, pois achava que só enfrentando o medo seria possível alcançar a tranqüilidade que desejava.

Ela arquitetou um plano, se embrenharia no meio da vegetação durante o final da tarde e lá ficaria até a fatídica hora. A noite estava particularmente escura, as estrelas pareciam conspirar contra a jovem, as formigas subiam pelas suas pernas, mas ela precisava ser forte, deveria agüentar até ver o que queria.

Não tardou muito, mas o que ela viu a apavorou muito mais do que esperava, ela saiu em disparada pelo meio do mato fazendo a vegetação farfalhar devido ao movimento de seu corpo, chamando a atenção do motivo de sua fuga enlouquecida.

Ela chegou à rua praticamente rolando barranco abaixo. Completamente suja e com as roupas rasgadas chegou ao cume da ladeira e começou a descer pelo outro lado fazendo uso de toda a força de suas pernas, o perigo que corria era real e imediato. Até hoje ela não sabe se foi sorte ou pura obra do destino encontrar o Tenente Tobias, morador ilustre do bairro, ex-praça combatente da Força Expedicionária Brasileira em Monte Castelo.

O homem segurou a garota pelos ombros e tentou entender o que acontecia, entre muito choro e soluços, a explicação fora dada e o soldado resolvera agir. Acompanhado pela fiel e inseparável parceira em punho, e usando a garota como guia, seguiu rumo ao local maldito.

Subiram cautelosamente pela trilha aberta no meio da vegetação e depararam-se com ela: vestido branco, loira, enorme, ladeada por fogueiras. O soldado saltou diante da aparição e bradou em alto e bom som para que se rendessem, minha mãe fora surpreendida por um braço forte que surgira da parte oposta do mato e a agarrou arrastando-a em direção à região favelizada.

A mulher que fazia uso de pernas de pau fora facilmente dominada, mas um outro indivíduo conseguira escapar rumando para a mesma direção tomada pelo homem que fazia a minha mãe de refém.

Esconderam-se na escola municipal que estava sendo construída, Tobias adentrou pelas dependências do prédio, no meio daquela escuridão total percebeu um ruído vindo dos vestiários e antes que pudesse invadir o local, os homens apareceram ajoelhados e totalmente entregues.

O ex-combatente os subjugou e levou-os embora juntamente com a mulher, minha mãe os seguiu cabisbaixa. O Tenente ouviu da minha mãe, na ocasião de sua fuga, que ela presenciara o início de uma encenação por parte daquelas pessoas e desta forma ela se sentira ameaçada por uma força real deste mundo, sua vida, de fato, correria perigo, porque boa coisa não estaria por trás daquilo tudo.

Ficou esclarecido que o trio fazia parte de uma quadrilha que utilizava aquele caminho para descarregar entorpecentes que vinham pelo mar toda sexta-feira para a região. Os três ficavam encarregados de armar o teatro, espalhar os boatos e manter distantes os olhos de curiosos.

A notícia da fraude se espalhou, mas a maioria não deu crédito e continuou a acreditar na aparição da mulher de cinco metros. O renomado militar entendeu quase toda a história, a única coisa que o deixava intrigado era o fato dos dois fugitivos terem desistido tão facilmente enquanto detinham a garota como refém.

Esse fato apenas a minha mãe sabia, e guardava só para ela, até me contar, e eu compartilhar aqui. Enquanto estavam num dos banheiros em construção, uma coisa muito estranha ocorreu, a imagem de uma mulher com a pele tão alva quanto as vestes que ostentava, cabelos amarelos quase brancos. Possuía uma espécie de corda ao redor do pescoço marcado por extensas mancha arroxeadas.

A figura da mulher aparentemente saiu de dentro da parede e tocou a testa dos dois homens, que imediatamente ficaram desnorteados.

Minha mãe ficara paralisada com o que vira, a estranha não excedia o tamanho usual de um humano, mas estava longe, bem longe da normalidade. A mulher girou a cabeça lentamente em sua direção, ostentava enormes olheiras ao redor dos olhos completamente brancos. Chumaços de uma espécie de algodão tapavam suas narinas, de sua boca ressequida escorria um líquido escuro. Um sorriso tenebroso surgira em seus lábios, que em seguida foram tocados pelo longo e fino dedo indicador de sua mão direita, o típico gesto de pedido de silêncio.

Os homens correram e se entregaram, enquanto a imagem da loira atravessava os azulejos do banheiro em construção. Minha mãe nunca mais esquecera a cena. Os anos se passaram e vez ou outra ouvimos relatos parecidos com o que a minha mãe vira nos anos cinqüenta, de diferentes formas, em várias versões. Quanto a isso o que posso dizer é que acredito fielmente no que ela me disse.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 02/07/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1678650
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