O LOBO DE SETE PONTES

A luminosidade oriunda do alto dos postes de madeira era insuficiente para manter visíveis todos os detalhes do caminho incerto daquela via pública. O local era conhecido como Sete Pontes, terra onde o misticismo e a superstição são tão aflorados que confundem-se com a realidade vivida diariamente pelas pessoas que ali habitam.

A garota voltava para casa, passos apressados, perguntava-se até onde poderia ir o descaso das autoridades que não davam a mínima para trazer uma linha de ônibus até o interior daquele logradouro. Se por um lado a luz artificial faltava, por outro a dama da noite derramava seu esplendor através de um fabuloso plenilúnio.

Ela pensava em contas, provas, tarefas e namorado enquanto caminhava, o que ela não sabia era que estava sendo observada. Do alto da frondosa jaqueira que ladeava a via, a figura inspirava com veemência o ar noturno e observava com atenção os passos da incauta jovem. Sorrateiramente a criatura mistura-se à vegetação e a acompanha, a menina tem a nítida impressão de que está sendo seguida. Ela pára e olha para trás, nada além do vazio das ruas.

Aperta mais o passo enquanto as batidas do seu coração aceleram na mesma proporção, um suor gelado escorre por suas têmporas, a adrenalina percorre suas veias, é um sentimento familiar, é o medo. A criatura fareja o que ela sente, o ser aprecia demais esse odor, se delicia com ele. A garota começa a correr, não sabia ao certo o porquê disso, só pressentia que onde estava não era seguro. Largou livros, cadernos, bolsa. Tudo foi ao chão. Chorava angustiada.

Chegara o momento, a criatura ganhou o chão de terra batida e começou a galopar numa caçada frenética, a menina olhou para trás e parou. Estava paralisada pela visão aterradora que seus olhos juvenis teimavam em lhe mostrar. As garras negras e os dentes alvos logo mancharam-se de vermelho, a maciez da pele da garota fora fatiada com extrema facilidade e rapidez. Pouca coisa restou do corpo encontrado na manhã seguinte, uma imensa poça escarlate misturava-se ao barro produzindo uma lamentável e hedionda lama.

Era mais uma vítima daquele que uns chamavam de maníaco e outros chamavam de demônio. A polícia estava mais perdida do que os locais e pouco, ou quase nada, fazia. Nesse tipo de situação o clamor popular exige um culpado, deseja justiça. A associação de moradores solicita uma reunião extraordinária e após longos debates, brigas e acusações chegam a conclusão de que o autor dos feitos seria a fera amaldiçoada pelo ciclo lunar, e a unanimidade se fez presente quando o assunto pendeu para o lado de um suspeito.

Ele se isolava dentro da já restrita localidade. Habitava uma casa simples, de tijolos à mostra, não era de conversa e quase nunca era visto. Corpo magro e esguio, nunca usava camisas ou calçados, exibia o corpo completamente revestido por pêlos espessos e brancos. Muitos juravam tê-lo visto, mais de uma vez, uivando para a lua, no alto de sua laje em plena madrugada. Rodrigo, o jovem presidente da associação, era um dos mais exaltados, e embora fosse um novato na região, tendo sido eleito pelo carisma envolvente que exalava, dispunha de um respeito reconhecido por parte dos moradores.

Arquitetaram um plano, cercariam a casa do suspeito ainda naquela noite, se ele fosse o Lobo, pagaria caro pelas diversas mortes.

A lua surgiu plena e reluzente no céu escuro, o grupo encarregado pela emboscada se ocultava ao redor da residência do velho, eram seis, número que julgavam suficiente para, com o uso de armas, silenciar a fera.

Dentre eles estava Renata, a namorada do líder local, inquieta como era, se recusava a ficar impassível diante da ameaça que se instalara na localidade. As horas passavam sem que nada de anormal acontecesse, estavam prestes a desistir quando avistaram o sujeito deixando a casa pela porta dos fundos.

Como sempre, estava descamisado e descalço, inspirou o ar noturno, abriu os braços e soltou um longo e profundo uivo olhando para o céu. Logo pôs-se com os quatro membros no chão e começou a se contorcer, emitia gritos cujo som se mesclava ao de ossos estalando, a cena era bizarra, eles não podiam acreditar no que presenciavam.

Menos de um minuto depois surgia uma fera proveniente do inferno, a pelagem escura substituía os fios alvos do corpo do velho, fileiras de dentes afiados e longos se destacavam na enorme boca escancarada. Rodrigo daria a ordem para atacar a besta, mas frustrou-se ao notar a fuga desesperada do resto do grupo, com ele apenas a jovem continuava.

O rapaz não hesitou, revelou-se para a fera com a arma em punho, a menina mantinha-se às suas costas. Não havia mais ninguém naquela parte afastada do bairro, apenas Rodrigo, Renata e o Lobo. A fera encarava o improvável desafio que se mostrava diante dela, rosnava e produzia uma gosma que escorria pelos cantos da boca.

O rapaz mantinha-se calmo e decidido, a criatura farejava o ar, mas não atacava. Caminhando lentamente e apontando o revólver calibre trinta e oito, o líder local não tirava os olhos da besta e esta também o olhava fixamente. Subitamente, o animal arqueou o corpo e saltou com uma velocidade espantosa e surpreendente, porém mais inusitada fora a reação do jovem.

Valendo-se de uma habilidade impressionante, ele apertou o gatilho no momento exato fazendo a única bala confeccionada com a mais pura prata perfurar o crânio do Lobo. O animal caiu imediatamente aos seus pés, derrotado e moribundo. Rodrigo ajoelhou-se bem próximo ao inimigo caído e segurou sua cabeça com ambas as mãos, e através de um movimento forte, rápido e preciso quebrou o pescoço da fera, para espanto da namorada.

Antes que a garota pudesse organizar qualquer pensamento ou frase, o jovem caiu no chão e começou a se contorcer, iniciando um processo já presenciado por ela naquela mesma noite. Ela não conseguiu correr, suas pernas pesavam toneladas, apenas assistia a bizarra transformação daquele que tanto amava numa criatura detestável e sanguinária.

Um novo Lobo estava diante dela, e estava faminto, a menina não tivera a menor chance. Satisfeito com a carne e o sangue da amada, a fera colocou-se em duas patas e ergueu o semelhante morto por ele mesmo e o levou para apodrecer em um local distante.

De volta ao centro do logradouro, Rodrigo depara-se com os vizinhos e amigos, incluindo o grupo de caçadores que fugira, todos demonstravam imensa preocupação com a sua integridade física e questionaram sobre o paradeiro de Renata e sobre o Lobo, que a esta altura todos já tinham certeza de ser o velho grisalho.

Pausadamente e com uma expressão de pesar, o rapaz relatou que atirou na fera, mas que ela conseguira fugir ilesa, mas não sem antes matar e devorar a menina.

Chocados e perplexos com o relato do líder local, eles questionavam se o velho poderia voltar. O jovem dissera que uma vez revelada a sua identidade ele não retornaria, pelo menos não em forma humana. Uma senhora quis saber se poderia haver um ataque de mais de um Lobo. Rodrigo parou, respirou e explicou que só pode haver um Alfa por região, apenas um! Virou as costas e rumou para casa rindo levemente enquanto caminhava.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 02/07/2009
Reeditado em 23/11/2009
Código do texto: T1678859
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.