OS LOBOS

A noite estava clara e abafada, não havia vestígio de uma só nuvem no céu, a luz produzida pela lua plena em sua forma destacava os contornos da vegetação e atribuía a ela um brilho diferenciado.

O rapaz deslizava com delicadeza o dorso da mão pela pele macia da jovem, o vestido de costas nuas favorecia o contato, os pêlos aloirados dos braços de aparência tão frágil se eriçavam com o leve toque. Não muito longe dali, outros pêlos também respondiam ao estímulo a que eram submetidos, no entanto, o instinto que produzia tal reação poderia até ser parecido com aquele experimentado pelo casal, porém apenas no que se referia ao lado primitivo e cru, porque o sentimento que movia a fera era muito mais urgente e prático, mais inconseqüente e devastador.

Os fios que se esticavam, também não exibiam o tom dourado e fino apresentado na moça, eram muito mais escuros e espessos, a beleza passava longe dali, o que alguém poderia sentir ao contemplar tal cena certamente seria uma sensação de ameaça e pavor, uma necessidade imediata de fuga.

Ela observava os jovens com total atenção, seus olhos amarelados não piscavam, a respiração era acelerada, marcada por um ritmo involuntário. A pele sensível de suas patas sentia o calor da terra, era como se esta estivesse em comunhão com o avantajado corpo que se locomovia sobre sua superfície.

A garota emitiu um leve suspiro e, quase ao mesmo tempo, a fera inspirou com vontade o ar quente preenchendo toda a capacidade de seus pulmões, para em seguida soltar um longo e pesado uivo, os músculos de seu pescoço tremiam incontrolavelmente enquanto o canto que produzia para a lua ecoava por todas as direções, como se o som rebatesse nos obstáculos e ganhasse mais força e dimensão.

A menina se assustou por um momento, mas em seguida se sentiu confortada pelos braços e palavras do amado, apenas um cão vadio e triste disse-lhe próximo ao ouvido entre beijos e leves mordidas. A besta desceu com cautela as encostas que contornavam o descampado de terra batida, onde se encontravam alguns bancos de concreto armado e brinquedos feitos de madeira e ferro.

As lâmpadas dos postes de iluminação foram providencialmente quebradas há algum tempo, os casais que por ali passavam tinham um certo apreço pela escuridão e pelo sossego que esta proporcionava, tanto que os órgãos públicos desistiram de repô-las.

O rapaz pressionava o corpo da menina com um forte abraço, ela pousava o queixo sobre seu ombro, permanecia com os olhos fechados e com um sorriso espontâneo e leve nos lábios, se ela pudesse adivinhar o que estava logo ali diante dela teria vontade de nunca tê-los abertos, mas não tinha esse dom, e ao levantar as pálpebras teve seu sorriso desfeito imediatamente perante o horror que se apresentava a ela.

Soltou a voz num grito franco e desesperado, simultaneamente a fera saltou em direção ao banco que ocupavam, a menina se jogou no chão e as patas providas de garras afiadas e negras atingiram as costas do rapaz que foi atirado longe.

O bicho ignorou o garoto e se concentrou na jovem que corria na direção da ciclovia aberta entre as árvores. Perseguir a caça em fuga era mais divertido do que se contentar com aquela já subjugada.

O imenso animal seguiu numa corrida desabalada em quatro patas, a menina ganhara uma boa vantagem, mas nada que garantisse a sua salvação. Embora a fera exibisse dimensões esplendidas, ela se movia com extrema leveza e plasticidade, a garota não teria a menor chance.

- Patrícia! - Gritou o garoto caído no chão, como se seu chamado fosse capaz de modificar o inevitável. Ela não ouvia, não respondia, tinha tarefas mais urgentes a resolver, nem ao menos virou a cabeça para trás, se tivesse feito isso certamente se surpreenderia com a cena que começava a se desenrolar, ficaria tão atônita quanto o namorado que boquiaberto a tudo assistia.

Como se surgissem do nada três, quatro, muitas outras bestas apareciam e cercavam aquela que estava no encalço de Patrícia. Eram parecidas, em tamanho e demais características físicas, mas estranhamente exibiam um comportamento diferente, a começar pela postura, todas se colocavam em duas patas e eram mais articuladas.

O demônio quadrúpede demonstrava estranhamento com a situação, mas entendia bem a cena e sabia que estava sendo ameaçado e diante do perigo não exibia medo ou descontrole, pelo contrário, mantinha o mesmo perfil predador e altivo, inflava os pulmões e urrava para o círculo branco no céu como se clamasse por forças para combater os irmãos que desejavam seu sangue.

A moça continuava sua corrida por entre as árvores que margeavam a trilha de asfalto, quando julgava que já estaria a uma distância segura, seu caminho fora bloqueado por uma figura incomum, algo que até então imaginava existir apenas em pesadelos ou em filmes, mas como seus olhos já haviam sido testemunhas de que aquela não era uma noite comum, sabia que aquilo tudo era real e irremediável.

O susto a fez cair de costas no chão, o homem, sim, pois aparentemente seria de um, se não fossem os adereços hediondos que maculavam seu sorriso branco, o homem de olhar rubro e penetrante agarrou firmemente seu pescoço e a ergueu do chão dizendo-lhe com uma voz metálica e arrastada:

- Não tema, criança, logo tudo estará terminado e essa experiência não passará de uma simples lembrança, isso é, se você sobreviver, é claro.

O garoto com o rosto lavado pelas lágrimas que não se fartavam em escorrer tentava fugir daquele palco de horrores, para ele era duro admitir que não haveria salvação para a sua doce Patrícia. Ele havia se afastado bastante da praça, mas não conseguia deixar de olhar para o que ele assemelhava a um baile no inferno, e escondido continuava a observar a situação inusitada.

As feras avançavam sobre o irmão cercado, usavam as garras retorcidas para abrir longas e profundas feridas no couro revestido pela pelagem negra e espessa. A besta encurralada utilizava sua poderosa mandíbula para atingir da forma mais violenta possível o maior número de inimigos que conseguisse.

O ataque do demônio acuado era muito mais bizarro e instintivo, era mais animalesco, por assim dizer. No entanto, o maior número dos agressores fez a diferença no final e o caçador noturno teve seu sangue negro derramado na terra seca.

O que mais chamava a atenção do observador humano era a postura de uma das feras, ela se colocava em posição de liderança em relação aos demais, utilizava uma espécie de coleira prateada com uma pequena caixa pendurada nela.

As surpresas não paravam por ali, como em um passe de mágica os pêlos que cobriam as feras começaram a cair, urros e o som de ossos se partindo ecoavam pelo ambiente e segundos depois todos se apresentavam em formas humanas, mesmo com a lua ainda brilhando plenamente no céu estrelado.

Esse fato deixou o rapaz confuso, o que somado a dor que lhe açoitava impiedosamente, serviu de estímulo para que abandonasse o local levando consigo um pesar que seria impossível de dissolver.

Lino, esse era o nome da fera lupina que carregava a coleira ao redor do pescoço e se portava como líder do bando. Em sua forma humana a corrente de prata ficava folgada estendendo-se até a altura do umbigo. Ele olhava com desprezo para o lobo morto a seus pés, o homem simplesmente se sentia enojado com as atitudes primitivas e bizarras praticadas por seus irmãos de espécie.

Lino desejava ser diferente, orgulhava-se da força e das habilidades dos lobos, mas queria mais, precisava dominar a fúria que sobrepujava a inteligência, esse era o maior sonho que possuía, expandir para toda a raça lupina o autocontrole e a civilidade que já havia adquirido em seu próprio clã, pois seus protegidos já não temiam mais pelos caprichos e vontades da mãe lua, eles dominavam os segredos da metamorfose e tal conhecimento só fora adquirido e desenvolvido com a ajuda de um representando de outra raça de caçadores noturnos, um primo distante e esquecido que atendia pelo nome de...

- Alexander! O que faz você com essa mortal? - O homem de pele incrivelmente alva, um branco quase artificial, trajando negro dos pés à cabeça, trazia Patrícia pelos braços, a moça parecia um zumbi, estava presente em corpo, mas distante em mente. Seu sangue vivo e quente escorria pela pele ensopada de suor.

- Nada tema, senhor Lino, apenas tomei a jovem humana para mim, nada que venha a interferir em seus nobres planos.

- Em primeiro lugar, caro Alexander, eu não temo nada nem ninguém, estou acima de todas as demais criaturas que circulam pelas terras malditas desse mundo atrasado, e incluo nessa lista a sua própria raça.

- Certamente, senhor, estou aqui apenas para ajudá-lo a obter sucesso em sua investida. - Os olhos vermelhos do imortal não desviaram um só instante do adorno prateado no peito do jovem lobo.

- Então, limite-se apenas a fazer o que combinamos, nada de humanos entre nós. Janine, devore-a!

Pêlos negros começaram a brotar instantaneamente no corpo nu da mulher de cabelos loiros, seus ossos estalavam enquanto dobrava de tamanho, fileiras de dentes afiados preenchiam a boca escancarada de onde provinha um odor fétido.

- Não - gritou Alexander - não faça isso, nobre Lino, ela será importante para seus planos.

- Espere, Janine - a fera imediatamente conteve a investida - explique-se melhor, Alexander.

O homem de negro olhou diretamente nos olhos do rapaz lobo, ele poderia facilmente quebrar o seu pescoço se não fossem seus inúmeros seguranças e, é claro, o tesouro que ele carregava consigo.

- O senhor e todo o seu clã são representantes legítimos da espécie, herdaram o dom de seus pais, não foram convertidos ou receberam a dádiva enquanto humanos.

- E o que isso tem a ver?

- Acredito que poderíamos obter algum conhecimento experimentando a conversão nessa menina e desde o primeiro ciclo domar a sua fúria e doutriná-la à sua causa, nunca tentamos isso antes e seria um ótimo laboratório.

- Você pode ter razão, afinal, esse aqui - apontava para o inimigo morto no chão - era o último selvagem dessa região e ele não nos deixou alternativa, nunca aceitaria a nova vida, logo só a morte poderia contê-lo. Mas fique sabendo, Alexander, até o próximo plenilúnio ela será de sua inteira responsabilidade e qualquer atitude errada por parte dela será corrigida com o seu sangue.

- Sim, senhor, como desejar, meu caro Lino - o lobo não percebeu o leve sorriso nos lábios frios e finos do imortal.

A alcatéia, o noturno e a humana abandonaram o local deixando o corpo da fera abatida, antes do amanhecer um processo acelerado de decomposição evitaria que os olhos curiosos dos andarilhos do dia se deparassem com a verdade ignorada. E falando em olhos, um leve e sutil toque do luar incidiu sobre um dos globos oculares da vítima dos lobos, a pupila da besta pareceu dilatar-se com o toque.

Suas lembranças e memórias começaram a flutuar pelo ar, enquanto o couro, a carne, os músculos e os ossos se desfaziam lentamente, os farelos produzidos serviriam de alimento para as formigas vorazes e incansáveis. O caçador finalmente virara caça e alimento, um deboche da natureza, a vida e suas surpresas.

Michel, esse era o nome do abalado namorado de Patrícia, sob os jatos fortes do chuveiro tentava lavar o corpo e encontrar conforto para a alma. Sabia que jamais poderia falar sobre o assunto, o tomariam como louco. Além disso, ele precisava acertar seu pensamento porque logo procurariam pela menina e como não a achariam, sua condição o colocaria como principal suspeito pelo desaparecimento.

Dor, era tudo que sentia, pela certeza da morte da amada, pelo seu futuro, pela incapacidade que desmoronava sobre ele, e também pelos ferimentos profundos nas costas que não paravam de sangrar.

Amigos, leiam a continuação em "FILHOS DA NOITE". Obrigado e um abraço a todos!

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 17/07/2009
Reeditado em 25/11/2009
Código do texto: T1705270
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