FILHOS DA NOITE

Trinta dias se passaram e o rapaz havia deixado há pouco as grades da cadeia. Como previra fora acusado pela morte e ocultação do corpo de Patrícia, responderia ao processo em liberdade. Ele não mencionou uma só palavra sobre o ocorrido, na verdade, já se conformava em passar muitos anos preso, sua vida já estava arruinada de qualquer forma e a depressão era sua única companheira.

Permanecia no telhado da casa que seus pais deixaram para ele, contemplava a beleza da lua cheia com o coração tão pleno quanto, só que de tristeza e melancolia. Sorvia com veemência o líquido amargo da garrafa de whisky, afogaria sua consciência nele.

Olhava para o satélite e jurava poder distinguir com exatidão todos os seus contornos: os sulcos, as crateras, as cores e os detalhes mais escondidos. Via um semblante familiar, ele lhe dizia algo, a principio tardou a entender, em seguida julgou delirar, mas finalmente compreendeu o que aquele rosto queria lhe transmitir. A lua estava estranhamente vermelha, sangue seria derramado naquela noite e disso tinha certeza.

Um grito agudo e estridente se propagou pelo terraço aberto daquela gigantesca propriedade. Lino, o herdeiro e senhor do clã, revestido pela forma lupina, experimentava a carne tenra do corpo de Patrícia, não pretendia mata-la, e disso se orgulhava, pois conseguira controlar a fúria da besta que existia nele, e só assim poderia materializar seus objetivos. Seguia a instrução de Alexander, daria à mortal a dádiva de uma existência superior, ela seria uma loba e aprenderia a viver de acordo com a sua vontade.

A saliva de Lino se misturava ao sangue da menina, o dom circulava pela corrente sanguínea. A esmeralda de seus olhos deu lugar a um amarelo radiante, a dor que sentia era o resultado da compressão de seus órgãos, de seus músculos esticando e de seus ossos sendo retorcidos. A pelagem que surgia não era negra como a de seus irmãos, tinha um tom que ficava entre o marrom e o vermelho. Seu corpo crescia, crescia sem parar, ela ficou enorme, gigantesca, suas presas eram maiores e mais afiadas do que as do puro sangue Lino.

Ela exibia uma ira maliciosa no olhar. Tinha sede de sangue, uma sede que nenhum dos lobos havia experimentado antes. Alexander gargalhava, o líder lupino não entendia a reação do vampiro, então desviou a cabeça enorme em direção ao petulante e perguntou-lhe com uma voz grave e gutural:

- Do que está rindo, verme?

- De você, tolo! Patrícia, de fato, seguirá as tendências que lhe forem expostas, no entanto posso assegurar-lhe que será de acordo com a minha vontade, pois nós trocamos nosso sangue bem antes de você injetar seu dom nela. Agora, ela é, digamos, uma criatura peculiar e poderosa, muito poderosa, prestes a devorar a carne de todos vocês.

- Você esquece do que tenho, vampiro? Tenho aqui no meu pescoço, protegido nesse invólucro, o sangue do mais poderoso dos da sua espécie, do antigo príncipe, uma gota dele te faria o imortal mais temido dos novos tempos.

- Sei bem disso, Lino. Não precisa mais fazer suas chantagens. Patrícia o pegará para mim e trará sua cabeça junto!

- Isso é o que veremos! Lobos, ataquem!

As feras começaram a saltar na direção do vampiro e da mestiça, suas mandíbulas trabalhavam com furor, mas as mordidas não pareciam eficientes o suficiente para causar grandes danos à garota-demônio. Alexander usava a leveza de seu corpo para desviar dos ataques e desferir golpes preciso com uma lâmina afiada e confeccionada com o misticismo da prata.

Uma a uma as feras lupinas foram caindo, vencidas pela fúria incontrolável de Patrícia e pelas artimanhas do vampiro. Faltava à alcatéia o que Lino tentava conter: a selvageria animalesca, o desejo de matar, o espírito do lobo.

De um lado estavam a garota no corpo de fera e o andarilho noturno, do outro estava o herdeiro e senhor dos lobos, o único que restava. Parecia que a cena já tinha um desfecho escrito, mas a natureza mais uma vez mostrava a sua faceta. As nuvens que cobriam a dama da noite se dissiparam e ela mostrou toda a sua imponência com um brilho forte e presente, e nesse instante um uivo aterrador fora ouvido para a surpresa de todos, afinal, não haveria mais lobos desgarrados naquela região. Ou haveria?

Com um salto magistral a pergunta encontrou sua resposta. Uma resposta hedionda e poderosa, revestida de pêlos, provida de garras negras e retorcidas, exibindo dentes afiados e brancos.

Antes que pudesse esboçar qualquer reação, Lino fora alcançado pela fera invasora que projetara o seu corpo sobre ele, descarregando ódio e violência, talvez o senhor dos lobos soubesse que o irmão que lhe atacava exibia a vingança nos olhos amarelos, talvez o herdeiro desejasse naquele momento ter um pouquinho da essência que percorria o corpo daquela fera. Só assim seria possível resistir a tão devastador ataque, mas ele não tinha, e sofria por isso ao sentir sua carne ser dilacerada pela voracidade daqueles dentes e garras. Lino tentou, mas não conseguiu evitar o destino final. Teve o coração devorado sem clemência por aquele lobo selvagem.

Mal terminou o ataque, a fera sentiu seu dorso ser perfurado, sua carne queimava, sentia uma dor indescritível. A prata era cruel. O lobo desviou o corpo e o olhar, com uma patada certeira atirou o corpo do vampiro para longe, separando-o da espada.

- Patrícia - chamava pela pupila - mate-o! Mate-o de uma vez.

A garota saltou como um tigre faminto sobre uma presa, no entanto, antes de iniciar o ataque fitou com atenção a fera inimiga. Então, de forma voluntária começou a reverter a mutação, e em alguns instantes Patrícia revelava a sua forma humana.

- Michel? Michel, é você?

A garota não precisava de respostas, ela sentia que o lobo diante dela era o amado que julgava morto. Ela desconhecia como este se tornara uma fera, não haveria como saber que trinta dias atrás, na ocasião do ataque, as mordidas e os arranhões que ele sofrera da besta quadrúpede foram insuficientes para tomar-lhe a vida, mas foram eficazes para transmitir-lhe o dom. E agora, sob a luz da primeira lua cheia do ciclo, Michel encontrava a sua nova identidade, sua nova vida. Ele caçaria, mataria e se alimentaria, ciclo após ciclo, não teria escolha, cumpriria seu papel na natureza.

Durante as caçadas não haveria vestígio de humanidade ou consciência, como desejava Lino, não haveria controle ou noção, ele devoraria um irmão ou amigo, pois só existiria a fera, nada mais.

Por isso Patrícia retornou para a forma animal, para proteger-se do amado. Alexander nada entendia, mas sabia que corria perigo, ele conseguia enxergar o que queria o lobo que surgira, ele desejava vingança.

O amor é primitivo, assim como a fome, o lobo assimilava bem esses instintos e sentia que aquele homem fora quem tirara a amada de sua vida, ele era o responsável e pagaria com a própria carne e sangue.

Michel saltara com perfeição sobre a presa, subjugando-a facilmente.

- Não! Patrícia, me ajude! Não!

A garota não o ajudou, olhava com atenção a investida do namorado, se deliciava com a voracidade com que o lobo devorava a carne do vampiro, ele não era imortal como achava, enfim...

Os primeiros raios de sol começavam a surgir, o clã de Lino se dissolvia e a poeira flutuava com a brisa matinal. O corpo de Alexander se tornara um punhado de cinzas escuras. Michel se contorcia enquanto seu corpo retornava à forma humana, Patrícia apenas observava com seus olhos verdes e belos, que logo verteram lagrimas ao perceber os contornos do namorado inconsciente e estendido no piso frio do terraço da mansão.

A garota observou o objeto de desejo do vampiro, o recipiente com o sangue do príncipe dos imortais, agora solto e largado no chão. Ela sabia que possuía em suas veias o sangue das duas raças predadoras da noite. A maldição era um fato irreversível, então ela pensou, o poder estava ali, à disposição, para ela e para ele, supremacia sobre todos os outros ou liberdade selvagem? Era difícil decidir, principalmente por ele.

O rapaz abriu os olhos e sorriu ao ver o rosto de Patrícia diante dele, a principio julgou estar em um sonho, então constatou que não, tudo era real, a memória era bem fraca a respeito de tudo, mas o local onde estavam, a dor insuportável, os corpos nus, tudo fazia sentido.

- Venha, Michel! Precisamos sair daqui.

Caminharam, então, pela mata na manhã que surgia, Patrícia olhou para trás ainda pensando no frasco vazio. O que aconteceu com o sangue? Apenas a próxima lua cheia possuía a resposta, somente o próximo ciclo poderia dizer. A vida estava apenas começando para os novos filhos da noite.

* Por favor, para melhor entendimento leia OS LOBOS, a primeira parte deste conto. Obrigado e um abraço a todos.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/07/2009
Reeditado em 25/11/2009
Código do texto: T1705500
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