A FACE DA FERA

Lua de sangue, quinta-feira, primeira noite do plenilúnio. Dezesseis trabalhadores rurais vinculados a uma lavoura de cana-de-açúcar são dados como mortos, embora pouca coisa tenha sobrado dos corpos brutalmente mutilados, o que impossibilita qualquer possibilidade para uma identificação imediata. Aparentemente apenas dois agricultores sobreviveram, e de acordo com o relato fornecido por eles, a plantação fora atacada por uma fera de dimensões e características sem precedentes.

Sexta-feira, segunda noite do ciclo. O pavor se espalha pela pequena cidade interiorana. Todas as casas do vilarejo têm suas portas lacradas logo após o desaparecimento do último raio de sol. Uma residência é invadida, o proprietário tem seu corpo despedaçado e devorado por uma criatura, a qual de acordo com o depoimento da esposa que sobreviveu ao ataque, assemelhavasse ao próprio demônio, preenchido com uma fúria ensandecida pela carne e sangue dos viventes.

Manhã de sábado. As autoridades finalmente se convencem de que algo estranho e sobrenatural tem rondado as redondezas do até então pacato logradouro. Uma investida contra a fera se faz mais do que necessária. Uma funcionária do maior latifundiário da região afirma veementemente que descobriu indícios inquestionáveis de que o patrão seria o responsável pelas atrocidades.

Noite de sábado. O ápice da influência mística surge com a terceira lua do período sangrento. O delegado prepara uma diligência com toda a força policial da cidade; iniciaria uma varredura na fazenda do suspeito. Os dois sobreviventes do massacre no canavial fazem questão de acompanhar a investida.

A noite havia iniciado com um céu totalmente escuro, nuvens pesadas cobriam toda a extensão do firmamento, apenas um círculo profundamente amarelo com manchas avermelhadas na borda se fazia notar, como se fizesse absoluta questão em se manter como única fonte de contemplação. No entanto, aquela visão não transmitia nenhum sentimento bom, pelo contrário, dava indícios de um mau presságio, remetia a um certo pesar, tornava imensamente melancólico o coração de cada um daqueles homens que faziam seu caminho sob sua observação, parecia que ela podia vislumbrar suas intenções, o intuito de causar mal a um de seus amados filhos.

O delegado havia traçado um plano, seguiriam pela extensão da lavoura, investigariam o campo aberto em busca de indícios da fera. A empregada da casa fazia questão de acompanhar o grupo, ela se negava a retornar para a fazenda, o lugar dito por ela como amaldiçoado. Ela queria assistir à destruição da fera responsável pela dor de diversas famílias, pois havia conhecido, ainda na tenra infância, muitos dos que tombaram perante a fome do demônio naquela noite.

O silêncio era quase absoluto, apenas o farfalhar das folhas da cana ao encontro dos corpos dos homens e o som ritmado de suas passadas eram ouvidos. Já haviam atravessado quase toda a extensão da lavoura sem que qualquer sinal anormal fosse notado, até que o policial que seguia na vanguarda fez um gesto com uma das mãos; deveriam parar.

O rapaz manteve-se quieto, flexionou uma das pernas e levantou a espingarda a fim de acertar a mira, a expectativa espalhou-se em todos. Um, dois, apenas três segundos se passaram até que o dedo do policial pressionasse o gatilho da arma liberando a carga de chumbo contra o alvo selecionado.

- Acertei!

A excitação tomou conta do grupo mediante a exclamação do rapaz. Todos se levantaram e correram rumo ao lugar onde estaria a besta assassina. De longe era possível perceber os contornos da criatura caída, estava imóvel, sinal definitivo de que fora de fato aniquilada, ainda assim, o grupo se aproximava cautelosamente, cada policial com uma arma de fogo em punho, e os civis munidos apenas com facões, mas revestidos pela coragem e pela fé.

O delegado liderava a fila, todas as luzes da fazenda estavam apagadas, o que tornava a missão mais angustiante. O homem da lei chegava cada vez mais perto, medindo os passos, estava quase lá quando o som de um grito se espalhou...

- Não!!!

Todos olharam para a mulher que acompanhava o grupo...

- Esta não é a criatura! É o Thor, um dos cães de guarda da fazenda.

O delegado jogou o feixe de luz tímido da lanterna sobre o corpo e pôde constatar que a funcionária do suspeito estava com a razão. Embora a criatura caída no chão fosse realmente de grade porte, não passava de um cão mastim, nada além disso. Um misto de apreensão e decepção tomou conta de todos, não esperavam uma derrota logo na primeira batalha. Então, preparavam-se para retomar a caçada, mas foram desestimulados pelo comentário de um dos homens, o primeiro a perceber.

Misturado entre a vegetação do canavial estava um par de círculos rubros, incandescentes, fantasmagóricos. Pela primeira vez naquela noite a coragem dos componentes do grupo pareceu fraquejar.

- Delegado – chamou um dos rapazes que não eram do corpo policial – o senhor tem um revólver calibre.38?

- Tenho sim. Por quê?

- Estique sua mão – o sujeito depositou um objeto sobre a palma estendida – é uma bala confeccionada com a mais pura prata, banhada na água benta da igreja da praça, utilizei um colar de família, mas só deu para fazer uma, portanto, seja certeiro.

- E por que você acha que vou precisar disso?

- Acredite, doutor, só isso pode vencer aquele demônio...

- Atacar!

- Não! Esperem!

Era tarde, os homens não ouviram o pedido do delegado e correram em direção ao estranho fenômeno, gritavam e disparavam as espingardas, talvez como uma maneira de extravasar a tensão que lhes corroía a alma. A resposta não tardou a acontecer, como temia e esperava o delegado, o ser que até então se mantivera oculto finalmente se revelava, e de uma maneira surpreendente e aterradora.

A figura projetou o corpo a uma altura superior a três metros, aproveitando o salto para neutralizar dois dos oponentes que estavam mais à frente. Nem em seus piores pesadelos aquelas pessoas poderiam imaginar algo semelhante ao que lhes atacava, o aspecto misturado à fúria não apresentava semelhanças, não nesse mundo.

As armas em forma de patas não precisavam de muito esforço para vencer os limites da estrutura corpórea dos homens. Pele, músculos, carne, sangue, ossos, tudo se rendia à vontade insana da criatura. Vários projéteis explodiam contra a imensa carcaça negra, mas pouco ou nenhum efeito faziam, além de incendiar ainda mais o ímpeto da besta. Um dos sobreviventes do primeiro ataque não se conteve mediante ao espetáculo sangrento que se desenrolava e disparou na direção da fera, suas mãos empunhavam o cabo do facão enferrujado, seus olhos vertiam lágrimas, exclamava palavras maldizendo a existência do demônio, exalava ódio pelos poros.

O golpe efetuado pelo homem resultou na única coisa que seria possível, a quebra da lâmina. Então, seus olhos úmidos enxergaram a morte através do imenso vão da garganta da fera, que com uma só investida arrancou a cabeça do infeliz rapaz, não dando chance para que tivesse sorte uma segunda vez.

A gosma esbranquiçada que escorria abundantemente da boca escancarada da criatura mesclava-se ao escarlate vivo do sangue dos homens, como uma verdadeira homenagem aos confins dos infernos. A fera urrava, rosnava e uivava a plenos pulmões, parecia que o seu apetite era sem fim, assim como a vontade que sentia em matar pelo ato em si.

- Vamos, precisamos sair daqui – disse a mulher para o outro sobrevivente do ataque inicial da besta.

Ainda que contrariado pela incapacidade perante a situação, o rapaz resolveu segui-la, mas desistiu quando virou o rosto para trás e percebeu que o valente delegado havia sucumbido mediante o poder hediondo do representante do inferno. A arma calibre.38 fora ao chão sem que o policial tivesse tido a oportunidade de fazer uso dela. O rapaz estagnou. Ele sabia que ali estava a única chance de acabar de uma vez por todas com a ameaça à cidade. Apenas alguns metros o separava do revólver.

- Não seja idiota! Venha, rápido!

O chamado da mulher parecia não fazer mais sentido. Ele não fugiria, enfrentaria a fera e morreria se fosse preciso. Tomado pela coragem, outros chamariam de estupidez, correu em busca da arma, a fera que se alimentava do corpo do policial percebeu a ação e também correu. A criatura teria de vencer uma distância maior, mas tinha a excepcional constituição corpórea a seu favor.

Clamando por forças nas pernas ele continuava a correr, sua vida, ou melhor, a de todos dependia da velocidade que conseguisse alcançar. A loucura assaltava-lhe, a figura monstruosa aproximava-se cada vez mais num galope desenfreado, e ele seguia na mesma direção. Como último recurso ele projetou o corpo no chão procurando deslizar para encurtar a distância entre seus braços e o revólver, a besta saltou e ele pôde visualizar a imensa figura escurecer o céu quando bloqueou a passagem do luar. Não parecia que conseguiria tocar o objeto desejado, mas conseguiu.

Segurou o cabo da arma ao mesmo tempo em que rolou o corpo escapando de ser esmagado pelo gigante. Ainda deitado olhou diretamente nos olhos da besta, pediu ajuda aos céus e apertou o gatilho com determinação. O pedaço de prata de lei rasgou o ar atingindo a testa do colosso revestido de pêlos. Não demorou para que a força do metal agisse no organismo amaldiçoado trazendo de volta a humanidade da criatura.

Os olhos assustados do rapaz acompanharam o espetáculo bizarro de reversão, e em alguns instantes a figura conhecida do maior fazendeiro da região revelou-se no chão, um filete de sangue escorria do buraco aberto em sua cabeça. Finalmente a fera havia sido derrotada. Ajoelhado e lavado pelas lágrimas que escorriam em profusão, ele olhou para o céu e viu que a lua também parecia verter lágrimas, mas estas seriam vermelhas como o sangue dos inocentes mortos.

- Feliz?

A pergunta da funcionária da fazenda soou estranha aos ouvidos do homem.

- Perguntei se você está feliz.

- Lógico. Conseguimos, vencemos a fera.

Ele demorou a perceber que a fisionomia da mulher começava a mudar sutilmente.

- Não era para ter sido assim. Como você tem a ousadia de matar o líder da alcatéia? Como?

Ela parecia crescer, seu tamanho dobrava. Pêlos negros que começaram a surgir timidamente já cobriam toda a parte visível de sua pele, as roupas rasgaram-se pela pressão exercida pelos músculos que se expandiam a olhos vistos. Então ele começou a entender, a mulher delatara o patrão como parte de um plano para que a força policial da cidade pudesse ser atraída até a fazenda para em seguida ser aniquilada pela fome do predador.

O pânico tomou conta do seu coração. Uma nova besta surgia diante dos seus olhos e não havia ninguém mais para ajudá-lo. Como único recurso ele apertou forte o cabo do revólver e pressionou o gatilho para acabar com a nova ameaça, porém o clique seco o lembrou da triste informação de que não havia munição no tambor, a única bala de prata, confeccionada por ele mesmo, já havia sido utilizada. Isso o fez olhar novamente para o céu, e desta vez parecia que a lua zombava de sua situação.

Ele sempre ouvira falar de que na hora da morte uma espécie de filme da própria vida passava diante dos olhos do moribundo, mas ele não viu nada, nem a famigerada luz branca, na verdade, quase não sentiu dor, não deu tempo. As lâminas afiadas formadas pelos dentes longos e brancos da criatura foram extremamente eficientes no seu propósito, no final nem mesmo as roupas sobraram.

Manhã de domingo. A segurança fornecida pela presença do astro rei leva as pessoas às ruas do vilarejo. Todos estão afoitos por saber notícias da investida definitiva da polícia contra o fazendeiro monstro. Um menino que se escorava nas muretas do coreto deu o aviso sobre a aproximação da figura ao longe. Logo a reconheceram, era a governanta da fazenda, estava suja, em farrapos, parecia ter passado por maus momentos. Rapidamente ela explicou o ocorrido, disse que, de fato, seu patrão era a fera que atormentava a região, mas que ela, num ato de sorte, conseguira dar cabo de sua existência com um tiro mágico, no entanto, todos os policiais e os dois rapazes que formavam o grupo foram brutalmente assassinados e devorados pelo demônio. Por obra de um milagre estava ali.

A população, chocada, procurou confortar a dor da mulher, mas no fundo todos estavam aliviados por saber que, ao menos, não teriam que lidar com a besta novamente.

Um leve sorriso, imperceptível por todos, surgiu no canto da boca da sobrevivente, ela pensava, ansiosa, sobre as possibilidades que a aguardavam no próximo ciclo.

*Este conto é o complemento da trilogia "Canavial", "Canavial II - Ataque na cidade" do escritor Rodrigo Motta, meu amigo, advogado, "consigliere" e verdadeiro irmão, a quem agradeço imensamente por toda a ajuda no meu último acesso de loucura.

Danilo, conforme sua solicitação, espero que tenha ficado à altura.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 01/08/2009
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T1731036
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