COLEÇÃO

Era como se eu enxergasse tudo através da tela de um aparelho de TV, mas não como um espectador que assiste a um programa, e sim ao inverso. A sensação que se apoderava de mim insinuava que o mundo lá fora era o espetáculo, e que eu seria um observador atento a tudo, que vislumbrava todos os detalhes da realidade através de uma ótica distorcida e recheada por tons e cores diferentes e altamente chamativos.

As paredes, o céu, o chão, tudo ao meu redor apresenta uma transparência levemente esverdeada. Não consigo vislumbrar os limites desse mundo, uma verdadeira imensidão intocável, mas que ainda assim transmite um sentimento de reclusão quase asfixiante.

Freqüentemente sinto que toda essa estrutura entra em movimentação, o que assemelha-se a uma espécie de abalo sísmico de proporções incomparáveis, sou jogado em todas as direções, mas não de forma violenta, na verdade quase flutuo como se estivesse em gravidade zero, no entanto uma dor imensurável assola cada parte de mim e nessas ocasiões quase sou levado à loucura.

Neste instante tudo está calmo, olho para os lados e consigo perceber os pontos luminosos que representam aqueles que estão na mesma situação na qual me encontro. Logo à minha frente percebo uma nova cena do mundo lá fora, vejo um jovem preso às ferragens de um veículo totalmente destruído devido a uma violenta colisão com um poste de energia elétrica. Ele está muito ferido, mas ainda respira, talvez o desespero que toma conta dele seja parecido com o que nos aflige, eu e meus companheiros tentamos fazer com que nos escute, mas tudo é em vão, é impossível vencer a barreira que nos separa, daqui a alguns instantes ele vai ouvir apenas uma voz, a mesma que ouvi não muito tempo atrás...

As chamas se espalhavam por todas as direções, era cada vez mais difícil levar o ar para os pulmões, a fumaça negra cozinhava meus olhos, minha boca estava completamente ressecada. Eu havia conseguido vencer os obstáculos e os móveis em brasa, mas a única saída que se oferecia a mim era exatamente a varanda com os vinte andares até o solo. De um lado as labaredas que haviam me ferido bastante e prometiam muito mais, do outro a morte certa numa eventual tentativa de fuga através do espaço aberto.

Quando assistimos àquelas cenas de puro desespero onde as pessoas se atiram pela janela na ocasião de um incêndio fica difícil imaginar a atitude impensada que tomam, mas naquele momento pude entender completamente e por conta disso estava prestes a jogar meu corpo e esperar por uma morte menos sofrida do que a proporcionada pela crueldade do fogo. No entanto, antes que eu pudesse tomar qualquer ação, notei algo que a princípio julguei como alucinação proporcionada pela situação. Vi um vulto distorcido atravessando as labaredas impiedosas como se elas não existissem, por alguns momentos era como se o tempo tivesse parado, não sentia o ardor na pele e o oxigênio circulava livremente pelos meus pulmões.

Envolto pela fumaça que praticamente havia estagnado, o rosto da figura tornou-se visível e sua identidade fora revelada. Os olhos do homem mostravam-se completamente brancos, ostentava uma barba espessa e grisalha que combinava perfeitamente com os traços finos e castigados pela ação do tempo, os sulcos, embora profundos, apresentavam uma simetria surpreendente. Um chapéu de couro negro cobria-lhe a cabeça. Sua voz rouca e pesada ofereceu-me vida, e confesso que tudo mais que ele falou parecia ter uma importância mínima diante disso: vida! E naquele momento era o que me bastava.

Lembro de ter sentido uma fisgada no meio do peito e de tudo ter ficado escuro como a mais negra das noites. Sem maiores explicações eu via meu corpo sendo carregado pelas pessoas que haviam entrado no escritório destruído. Uma máscara acoplada a um tubo de oxigênio ocultava meu rosto, as luzes dos giroscópios estavam em toda parte.

A partir desse momento eu passei a assistir a tudo em flashes, na maioria do tempo fiquei inconsciente, até me ver enclausurado nesse mundo. Demorei a entender o que se passava até que me vi, ou melhor, vi algo parecido comigo vivendo a minha vida, circulando pela minha casa, interagindo com a minha família, ou pelo menos tentando, porque eu não estava naquele corpo, ele era apenas uma casca vazia, a minha essência não estava lá. A parte mais difícil para mim foi quando ouvi a minha esposa dizendo para aquela figura estática: “Você está tão diferente, parece que está tão distante...”, eu tentei gritar, fazê-la me ouvir, no entanto a minha voz se mostrava incapaz de vencer as paredes de vidro que me aprisionavam, a única coisa possível para mim era observar a tudo como quem assiste a um filme ruim, com nuances irreais, mas que remete a uma triste e irremediável realidade.

Nós tentávamos gritar, buscávamos fazer com que o rapaz envolvido no acidente nos ouvisse, mas a única voz que ele poderia ouvir seria a proferida por aquele velho que rumava em sua direção. Aquele que fazia o tempo parar perante à sua presença e que carregava o fardo de não se sabe quantos anos nas costas, além, é claro, das inúmeras garrafas confeccionadas por vidros multicoloridos, cada uma aprisionando a natureza interior daqueles que encontrava em desespero.

E aquele infeliz rapaz estava prestes a ter a sua lacrada naquele mundo solitário também, e de estar fadado a assistir por toda a eternidade a realidade distante onde um vestígio vazio de si mesmo perambularia sem perspectivas, sendo mais um objeto da mais improvável coleção de que se poderia imaginar.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/08/2009
Reeditado em 26/11/2009
Código do texto: T1739635
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