O diário de Melissa

Eu sempre a encontrava no mesmo horário. Todos os dias, às seis horas e trinta e oito minutos da tarde ela aparecia. Nunca falava nada, e eu, sempre tímido, também cultivava o silêncio que se impunha entre nós. Durante quinze ou vinte minutos ficávamos ali, sentados, conversando através de uma sinuosa troca de olhares.

Lembro de tê-la visto pela primeira vez enquanto caminhava pelos vastos jardins de minha nova residência. Alguns dias antes eu havia subido ao sótão da casa procurando por algo que agora já não me recordo. Encontrei o seu diário em meio a uma pilha de objetos, que foram deixados ali pelos antigos proprietários. O pequeno caderno chamou minha atenção por estar bem conservado, cuidado com evidente carinho. Sentei-me em uma cadeira próxima e, com interesse, comecei a folhear suas páginas, vagarosamente. Perdi a noção de tempo e acabei me esquecendo do que eu fora buscar ali.

Só me dei conta da hora quando o dia começou a escurecer e a leitura tornava-se difícil. Saí do sótão em direção ao meu quarto. Eu simplesmente não conseguia parar de ler aquelas páginas, havia algo de mágico, algum encantamento que fazia com que eu mantivesse meus olhos grudados naquelas páginas. Talvez fosse a caligrafia, que era tenra e suave; ouso dizer que cada letra constituía uma pequena obra de arte. Fiquei acordado até tarde, até que adormeci sentado na pequena poltrona existente em meu quarto.

Por um ou dois dias, meu tempo foi tomado pela leitura daquele diário. Ele pertencera a uma das filhas da antiga proprietária da casa. Nunca soube seu nome, pois o diário não o tinha anotado em lugar algum. Resolvi chamá-la de Melissa – apenas um nome escolhido aleatoriamente. As aventuras e desventuras descritas naquele pequeno caderno talvez não fossem interessantes, mas apresentaram-me uma pessoa com incrível personalidade, graciosa, meiga, e feroz, quando preciso. A cada dia que eu lia o diário, sentia-me mais e mais atraído por ela. A primeira vez que percebi isso, porém, uma estranha sensação tomou conta de mim. Percebi que estava apaixonando-me por alguém que eu ao menos vira, alguém a qual nunca tive qualquer tipo de contato senão por suas palavras. Apesar disso, sentia-me como se conhecesse profundamente Melissa, como se fossemos íntimos.

Deixei o diário de lado por uma semana inteira, e retomei as minhas atividades rotineiras. Um dia, quando eu havia terminado os meus afazeres da tarde, resolvi caminhar pelo extenso jardim dos fundos da propriedade. O canto dos pássaros formava uma orquestra desordenada, mas agradável de ouvir e o cheiro da grama, que se apresentava em um verde vivo, praticamente brilhante, causavam uma sensação de paz que há muito eu não sentia.

Segui pela trilha de pedras até chegar ao exagerado chafariz, que se localizava exatamente no centro do jardim. A água descia da boca de sombrios querubins que rodeavam uma espécie de espiral, que apontava diretamente para o céu. Talvez fosse um indicador do caminho do paraíso, caso alguém estivesse perdido. Sentei na beirada e, com uma das mãos, fiquei revolvendo a água.

Uma estranha sensação tomou conta de mim, a sensação de que alguém o observa e espreita na escuridão, por todos os lugares onde você passa. Parei de mexer na água e dei um pulo para trás, tropeçando e caindo sentado próximo ao chafariz. Ao meu lado, a poucos metros de onde eu estivera, uma presença feminina estava sentada, também revolvendo a água. Ela parou e me olhou, sem demonstrar o mesmo espanto que mostrei quando pulei de onde estava.

Curiosamente, não a ouvi chegar. Talvez eu estive tão perdido em meus pensamentos que meus sentidos estivessem perdidos juntos comigo. Quando meu coração voltou ao ritmo normal, olhei cuidadosamente a mulher sentada ao meu lado. Não precisei de muito tempo para saber que se tratava dela, Melissa. Lá estava ela, do jeito que eu a imaginava: pele branca, que parecia banhada pela luz da lua, longos cabelos negros vertiam-se sobre seus ombros, o rosto de curvas finas e delicadas, e os olhos mais hipnotizantes que eu já vira, negros como a noite.

Quando balbuciei tentando falar alguma coisa, ela fez um sinal com a mão para que eu fizesse silêncio. Obedeci sem pestanejar, mesmo porque eu não fazia a menor idéia do que falar. Com um sinal, ela pediu que me sentasse a seu lado, o que fiz com a velocidade de um adolescente. Trocamos olhares e seguramos nossas mãos; anos de cumplicidade em apenas alguns dias. As horas passaram, a noite chegou, e com ela, Melissa foi embora. Da mesma forma que chegou, sem dizer uma palavra, sem fazer um barulho. Continuei ali, sentando, contemplando a noite, observando-a ir embora.

(...)

Semanas se passaram, e todo dia, exatamente no mesmo horário, eu fazia a minha caminhada em direção ao chafariz. Depois da segunda semana, o canto dos pássaros não passava de um gralhar irritante, e o cheiro do mato não podia mais ser distinguido do cheiro proveniente dos estábulos. Eu não caminhava mais, eu corria apressadamente em direção ao monumento ao grotesco que era aquele chafariz que ocupava o fétido jardim. Tudo mudava quando Melissa chegava e iniciávamos a nossa troca de silenciosa de olhares. Aquele era o momento em que o mar atingia as rochas, o momento em que o mundo parava e os animais calavam-se. Aqueles eram os quarenta e seis minutos mais aguardados do dia.

Quando o encontro terminava, silencioso como começara, eu fazia o caminho de volta ao inferno. Voltava para a minúscula casa que me sufocava enquanto o tempo se arrastava até que chegasse o dia seguinte. Algumas vezes, no meio do dia, percorri a propriedade para tentar encontrar o lugar de onde Melissa vinha. Desnecessário dizer que foi uma busca infrutífera, embora eu suspeitasse de uma falha no muro aos fundos da propriedade, que dava em uma estreita estrada de terra que seguia em direção ao nada.

No quarto mês, uma situação, que eu classificaria como desgraça extrema, deixou-me a ponto de cometer uma estupidez. Melissa não apareceu. Esperei por horas, mas ela simplesmente não veio. Deitei-me no chão ao lado do chafariz e só acordei quando os primeiros raios de sol cutucaram-me o rosto. Voltei para a casa, correndo, e peguei o diário. Passei o resto do dia lendo-o, na vã esperança de encontrar qualquer pista que pudesse me dar o paradeiro de Melissa. Talvez ali estivesse anotado o lugar para onde ela se mudou com a família.

Dois, três, talvez quatro dias seguidos e ela não apareceu novamente. A ausência dela era como uma cólica que me atacava o estômago, fazendo com que me curvasse e, às vezes, caísse no chão. Os meses passaram e Melissa não aparecia. Eu já não trocava as roupas, não cortava o cabelo ou fazia a barba. O calendário pendurado na parede da cozinha ainda estava com a data do meu primeiro encontro com Melissa. Tudo o que fazia era ler o diário e fazer anotações que pudessem ser relevantes sobre ela.

Resolvi, um dia, seguir até a falha no muro dos fundos da propriedade e seguir a obscura estrada que se mostrava visível. Caminhei por alguns quilômetros, sem encontrar nenhuma construção, vila ou viva alma; deparei-me, entretanto, com um imenso descampado, cercado por um muro de não mais do que um metro e altura e completado por grades já enferrujadas até dois metros de altura. O portão estava quebrado, e pendia serenamente para o lado de dentro, escorado em parte pelo muro. A noite já se aproximava e logo não seria possível enxergar muita coisa. Apressei-me através do portão.

Demorei alguns minutos até perceber que o chão era ornamentado por lápides, e, logo o percebi, o desespero tomou conta de mim. Imaginei coisas terríveis, embora esperasse que não fossem verdade. Distante no horizonte, uma figura fez-se visível. Não demorei até perceber que era ela, a figura que povoava a minha imaginação e que dominava o meu universo. Melissa estava ajoelhada de frente para uma sepultura, que logo deduzi ser a dela. Corri ao seu encontro, e, como de costume, não trocamos uma palavra ao estarmos perto um do outro. Lá estava ela, linda como sempre, morta como sempre. Ela apontava para a sepultura, com um pequeno sorriso no rosto. Abaixei para tentar ler o nome que ornava aquele belo pedaço de mármore. Quando finalmente compreendi o que ali estava escrito, senti a cabeça girar. A escuridão se aproximou e a última coisa que me lembro foi o impacto de minhas costas no chão.

***

Quando acordei, estava deitado em minha cama, os lençóis desarrumados e sujos de barro, provavelmente por causa da sujeira em meus pés. Lentamente, as imagens foram aparecendo em minha mente, até que finalmente lembrei-me do ocorrido. Corri até a cozinha em direção ao calendário, ofegante, arranquei todas as folhas, uma por uma, até que as lágrimas começaram a descer de meus olhos quando percebi que a data era sempre a mesma: 23 de maio de 1978. O calendário não podia estar defeituoso, eu mesmo o comprara na data anterior à que ele mostrava e havia verificado-o atentamente.

Ainda atordoado, apressei-me de volta ao meu quarto em busca do diário de Melissa. Ao folheá-lo, entendi a razão pela qual me apaixonara de imediato por ela. A última página relatava algo parecido com “(...) hoje era o grande dia, o dia em que nossa união seria selada para sempre (...)”; mais adiante, a caligrafia que outrora era bela e graciosa transformou-se em garranchos enfadonhos, e dizia algo assim: “Espero que o Senhor, misericordioso, tenha uma explicação bem convincente para o que aconteceu, do contrário, vou entender este gesto como extremo egoísmo e sadismo!”. A data era 24 de maio de 1978. Chorei novamente quando lembrei que 24 de maio era a mesma data que constava na bela sepultura de mármore, bem abaixo do meu nome, ao lado da minha data de nascimento.