A balada dos olhos azuis

Para Celly.

1

Em certa região do centro do Rio de Janeiro, aonde construções com séculos de idade resistem bravamente à ação do tempo, existe um velho prédio que oferece mais resistência que os demais, levando algumas pessoas a acreditarem que a construção tem vida própria, mesmo que sua aparência não seja das melhores.

O que poucos sabem é que o prédio, com seus três imponentes andares e praticamente inclinado sobre a estreita rua de paralelepípedos foi, em um passado não muito distante, um conceituado museu de arte de vanguarda. Em seu auge, era freqüentado por renomados artistas, escritores, poetas, políticos e integrantes da alta sociedade em bailes de gala e coquetéis beneficentes. Não seria errado afirmar que mais da metade das pessoas que freqüentavam o lugar não entendiam uma vírgula de arte e estavam interessadas apenas em aumentarem a visibilidade social. Certas coisas não mudam nunca.

Durante o não tão frio mês de julho daquele ano, uma nova peça chegava ao museu. Seu autor era um desconhecido escultor curitibano, que alguns dizem nunca ter sido visto em público. O curador do museu resolveu adquirir a peça após grande insistência de um velho amigo que vivia do Paraná, que conhecera a peça enquanto andava perdido em uma das fazendas no interior do estado. Disse-lhe que ficou hipnotizado pela presença marcante da obra, e que teria certeza de seu sucesso se exposta no Rio.

Quando a peça finalmente chegou, Edgar H., o curador, pode entender o que seu amigo quis dizer com “presença marcante”. Edgar, que nascera no Rio, era descendente de imigrantes suíços. Seu pai também fora um renomado curador e sua mãe uma conceituada artista plástica, o que fez com que Edgar tivesse, desde pequeno, contato com a arte. Depois de estudar em algumas conceituadas faculdades, acabou desenvolvendo sua própria sensibilidade com relação ao assunto, e suas indicações sempre eram um sucesso.

Edgar passou algum tempo examinando-a minuciosamente. Não se lembrava de já ter visto algo tão esquisito e encantador ao mesmo tempo. Algo que, apesar de comum, emanasse tanta força e encanto; que pudesse despertar uma mistura de ódio e paixão ao mesmo tempo. Quando se deu conta, já passava das dez da noite enquanto ele continuava observando a peça de não mais de dois metros de altura, composta de dois conjuntos simetricamente e esteticamente mal posicionados, ambos compostos de dois círculos concêntricos. Se julgada pelos padrões estéticos, a obra seria digna de uma lata de lixo, mas havia algo que a tornava bela apesar de estranha, Edgar não sabia responder se por causa do estranho alinhamento entre os círculos ou se pela intensidade do vívido azul cristalino que preenchia os círculos menores. Depois de olhar por mais algumas horas, Edgar teve quase certeza de que o azul era diferente de qualquer outro tom de azul que já vira antes; também teve certeza que aqueles olhos artificiais tinham o estranho dom de hipnotizar aqueles que os olhassem por muito tempo. Naquela noite, Edgar sonhou com a escultura.

Na semana seguinte, Edgar cuidou dos preparativos para a exposição da peça, que seria exibida em uma nova exposição cujo propósito era mostrar o trabalho de artistas pouco conhecidos no país. O dia inteiro esteve ocupado com as tarefas de preparação, acertando todos os detalhes para que a exposição fosse perfeita, como sempre. No final do dia, todos os funcionários já haviam partido e Edgar ficou sozinho no museu, como era costume. Todas as luzes do museu estavam apagadas, com exceção da de seu escritório. Edgar estava debruçado em sua mesa feita de mogno, acertando detalhes burocráticos. A porta estava aberta, conduzindo à estranha escuridão que tomava conta do corredor que levava ao salão principal. O único som que se podia ouvir no local era a caneta tinteiro deslizando sobre o papel. Ao longe, um som que lembrava uma noz sucumbindo à força de um quebrador de nozes tirou a concentração de Edgar, fazendo com que ele pulasse em sua cadeira e voltasse sua atenção à porta, encarando a escuridão do saguão principal.

Por alguns segundos, Edgar trocou olhares de curiosidade com a escuridão, fazendo-lhe perguntas silenciosas, que eram respondidas da mesma forma. Edgar só percebeu que não respirava quando o ar lhe faltou aos pulmões, fazendo com que buscasse desesperadamente por um milímetro cúbico de ar. Livre do efeito hipnótico que a escuridão lhe causara, Edgar desviou os olhos de sua sinistra face e voltou-os ao papel. Antes que pudesse retomar o raciocínio, entretanto, foi surpreendido pelo mesmo ruído. Quanto tornou a olhar para a porta, percebeu que algo não estava certo. A escuridão que antes dominava o saguão já não se fazia presente, havia algo mais, o que fez com que Edgar levantasse de sua cadeira e caminhasse a passos lentos em direção ao grande aposento.

Enquanto caminhava, olhava atentamente à estranha iluminação que não estava presente antes e que agora iluminava quase que totalmente o principal salão do museu. Um azul cristalino, que lembrava a cor do céu em uma manhã de primavera européia, fundia-se a um verde de uma tonalidade jamais experimentada por Edgar. À medida que se aproximava do aposento, mais intensas ficavam as cores, e mais Edgar deslumbrava-se com elas. Quando penetrou o imenso salão, Edgar foi obrigado a cobrir os olhos por alguns minutos, até que tivessem se acostumado com a intensa claridade. Quando finalmente pode ver de onde vinha a luz, Edgar esboçou o que poderia ter sido uma mistura entre medo e encantamento: a estranha escultura, de círculos concêntricos, brilhava como o sol de sua própria galáxia. E naquele momento, Edgar era o único planeta deste estranho sistema solar, inerte, sem órbita.

Para Edgar, passaram-se apenas alguns segundos até que finalmente piscasse os olhos. Quando voltou a si, percebeu que a escultura não mais brilhava, e pelas janelas do museu, os primeiros raios de sol já cobriam o lugar. Pela porta principal, um dos funcionários já chegava para mais um dia de trabalho.

2

Edgar não conseguiu trabalhar naquele dia. A imagem dos círculos e suas diferentes cores infestaram sua mente. Ficou impaciente durante todo o dia, e não conseguiu dar andamento ao trabalho de abertura da exposição, em parte, devido ao fato de que levantava frequentemente de sua cadeira para olhar a escultura, na esperança de que ela voltasse a proporcionar-lhe seu espetáculo particular.

Impacientemente, Edgar aguardou o fim do expediente e a chegada da noite.

Depois que o último funcionário deixou o local, Edgar fechou todas as portas e janelas e retornou à sua mesa, encarando a escuridão através da porta de seu escritório. Não demorou até que o ritual da noite anterior tornasse a ocorrer. Desta vez, sem hesitar, Edgar correu para o saguão, sentando de frente para a estranha escultura. O espetáculo tornou a acontecer, embora desta vez parecesse mais vibrante que na noite anterior. E lá ficou Edgar, a admirar a estranha escultura, exibindo seus diversos tons de verde e azul, brilhando como o sol de sua própria galáxia. Quando as lágrimas começaram a escorrer por seus olhos, Edgar inclinou-se lentamente à frente, esticando o braço como quem procura uma maçaneta na escuridão, tomando cuidado para não derrubar algum objeto no meio do caminho. Queria tocar a escultura, queria sentir todos aqueles tons de cores que se fundiam em um turbilhão de emoções. Mas sua mão não chegou nem mesmo próxima da escultura; quando pensou que conseguiria satisfazer seu tato, uma onda de choque tomou-lhe conta do corpo, percorrendo cada músculo de seu corpo em uma sensação de formigamento, que culminou com seu corpo sendo arremessados alguns metros para trás.

Atordoado, mais pela frustração do que pelo impacto, Edgar levantou-se e tentou, inutilmente, tocar a escultura mais uma vez, tendo como resposta o mesmo resultado. O suor começou a escorrer de sua testa, enquanto seus batimentos cardíacos aceleravam a cada tentativa frustrada. Edgar tentou de todas as formas tocá-la, sem sucesso. Edgar passou o resto da noite sendo arremessado para trás.

3

Na noite seguinte, Edgar não abriu o museu e dispensou todos os funcionários, dando uma desculpa qualquer. Assim que teve certeza de que todos foram dispensados, fechou novamente todas as portas e janelas, e foi direto para frente da estranha escultura, na esperança de que seu espetáculo ocorresse sempre que estivesse escuro, e não somente quando caísse a noite. Para seu desespero, nada aconteceu, nem mesmo quando foi para o seu escritório e aguardou algum tempo. Um embrulhou tomou-lhe o estômago e, em meio a um mar de lágrimas, acabou dormindo sobre sua mesa.

Despertou quando ouviu um barulho, muito semelhante ao que ouvira na primeira noite em que a escultura ganhou vida. Com um sorriso infantil em seu rosto, correu para o saguão, somente para decepcionar-se com a peça imóvel e apagada. Enquanto olhava desiludido para ela, ouviu novamente o barulho, e só então percebeu que vinha da porta principal. Depois de um tempo fitando-a, resolveu abri-la.

Quando olhou para fora, viu que já era noite. Antes que pudesse ver quem estava batendo, tornou a olhar para a escultura, tentando entender o motivo dela não ter acordado aquela noite. Voltou a olhar para a frente quando um estranhou chamou-lhe a atenção.

– Vim buscar a minha escultura. – o estranho vestia trapos que lembravam roupas, e tinha o longo cabelo negro despenteado.

– Não sei do que o senhor está falando. – respondeu Edgar, ao mesmo tempo em que tentava fechar a porta. O estranho impediu, mostrando enorme força, e continuou:

– Tenho certeza que você sabe do que estou falando. Ela foi roubada de mim. Você tem que devolvê-la, para sua própria proteção.

Edgar sabia o que o estranho queria, e achou que talvez a escultura estivesse inibida pela presença de seu criador, que provavelmente desconhecia suas características mais intensas. Com um brusco movimento, abriu a porta, dando passagem ao estranho.

– Está bem, pode levá-la, se você conseguir carregá-la, é óbvio.

Quando o estranho atravessou o umbral da porta, Edgar fechou a porta e acompanhou o visitante até a escultura.

– Aí está você. Espero que não tenha feito mal a ninguém.

– Fique à vontade enquanto vou ao meu escritório. Enquanto isso, tente encontrar uma maneira de carregá-la. Não considere a minha pessoa aqui como uma ajuda possível. – Edgar virou-se e caminhou, a passos rápidos, na direção de sua sala.

Não se passou mais de um minuto quando Edgar retornou, trazendo consigo uma espingarda de caça, já carregada e engatilhada. Ao ouvi-lo chegando, o estranho virou a cabeça, mas só teve tempo de tentar pronunciar a primeira sílaba de alguma palavra qualquer, antes de ouvir o estampido surdo proferido pela arma. O tiro acertou em cheio o seu estômago, e antes que pudesse olhar para baixo, o sangue já molhava o chão. Caiu, e nem ao menos pode despedir-se de sua obra.

4

Depois daquele fatídico dia, Edgar nunca mais abriu o museu, e despediu todos os empregados. Seus amigos nunca mais conseguiram falar com ele, com exceção de seu velho amigo do Paraná, que teve o mesmo destino do estranho visitante ao tentar persuadi-lo a livrar-se da peça.

Nos meses seguintes, Edgar deixou de comer e dormir, a não ser quando percebia que poderia desfalecer – coisa que o impediria de apreciar a estranha obra. Tentou de todas as formas encontrar um meio de tocar a escultura, sempre sem sucesso. O museu foi considerado um lugar amaldiçoado na cidade, e mesmo as casa vizinhas começaram, uma a uma, a ficarem desertas.

Ninguém nunca mais teve notícias de Edgar, ou da escultura. Alguns dizem que ambos simplesmente desapareceram dentro do museu, embora ninguém tenha entrado lá para descobrir a verdade. Hoje, os poucos mendigos que tentaram estabelecer ali uma moradia desapareceram. Alguns ficaram loucos, segundo boatos.

A verdade é que, eventualmente, à noite, o museu é tomado por uma estranha luz que brota de seu interior, em tons de azul e verde, acompanhado de gritos capazes de despertar um sentimento de piedade em quem os ouve.