FANTASMAS DA PONTE

Pela primeira vez em muitas décadas retorno a esse lugar. A parte interna de uma gigantesca estrutura de aço e concreto, um enorme vão, tão significativo e descomunal quanto o vazio que cresceu em meu peito durante todos esses anos. Faço uma viagem no tempo enquanto caminho por esses trilhos, volto à época da execução do grande projeto, um marco na engenharia nacional. Impossível não ser invadido por inúmeras imagens, memórias de um ponto distante, lembranças que fui incapaz de apagar.

Vejo claramente o ritmo alucinante da obras, as cobranças, as exigências para que os prazos fossem cumpridos. A jornada de trabalho era insana, desumana para ser mais exato, ainda assim não havia tempo para questionamentos ou ponderações, nada disso era levado em consideração quando o que estava em jogo eram os resultados. Agora mesmo, vejo ali adiante um reflexo de mim mesmo, sem os cruéis sulcos maculando o meu rosto, sem a prata derramada nos cabelos. Obedeço às ordens e cumpro as metas, pouco me importo com os operários que ficaram no fundo da viga após a sirene de alerta. Sem um pingo de ressentimento aciono a alavanca que libera a mistura preparada para preencher o vazio. Mas o vazio continha vida. Não sei dizer ao certo quantas, certeza mesmo só a de que encontraram ali o seu túmulo, onde toneladas de concreto selaram para sempre os sonhos que poderiam ter.

Por muito tempo fiquei a me questionar se poderiam ouvir o ruído das embarcações que cruzavam o mar sob seus pés, ou se poderiam notar a loucura incessante do trânsito sobre suas cabeças. Quis saber se eram capazes de perceber o choque das águas contra os pilares de concreto que lhes serviam de morada. Nunca consegui saber, pois as vozes que ouvia durante a noite, e que me roubavam o sono com pesadelos intermináveis, não diziam. Elas simplesmente se lastimavam pela chance que não tiveram, lamentavam por terem suas esperanças e aspirações cerradas por uma cela fria e insensível, por terem pago com o próprio sangue os vislumbres de visionários. As vozes queriam ser ouvidas, desejavam liberdade, queriam o pagamento por seu trabalho árduo, elas me culpavam, elas me culpavam...

O pavor que me assolava nesses sonhos, e que me faziam despertar banhado em suor, só não era maior do que a sensação que me assaltava logo a seguir, a incapacidade de não poder fazer mais nada, a certeza de que não haveria tranqüilidade para a minha alma até o final dos tempos. Confesso que nunca tive coragem de atravessar a ponte depois que esta ficou pronta. Olhar de longe o gigante que venceu o mar e ligou duas cidades não me dá orgulho, muito pelo contrário. Hoje consigo entender sobre questões de ética e valores, algo que passava longe de mim. Por isso venci o meu medo e volto a ela, retorno para o motivo de meus temores.

Caminho com passos lentos através do estômago da grande serpente de aço. Não ouço vozes, não vejo luzes ou qualquer outro sinal de anormalidade. Aqui dentro só o perturbador silêncio sepulcral, o direito de descanso dos mortos, daqueles de exigem paz...algo que jamais terei.

Retorno para o automóvel e penso nas flores que deixei na estrutura metálica, um ato mesquinho de uma alma que pede perdão. Aciono a ignição e parto, sem a leveza que desejava, mas conformado por ter enfrentado os meus fantasmas.

Na altura do vão central sinto a direção fugir de mim, mal tenho tempo de reagir. O veículo atravessa a contenção de concreto, obstáculo que ajudei a construir, e alça vôo sob a baía. Durante o intervalo de segundos antes do impacto com o espelho d’água, senti que uma eternidade se estendia, e nesse tempo me questionei sobre as causas que me levavam para a morte certa naquelas águas poluídas, enclausurado numa caixa de metal. Mesmo sem querer admitir, quis acreditar que velhas contas estavam sendo quitadas, pois só assim eu teria paz, somente desse jeito as vozes me deixariam livre.

*Inspirado na lenda urbana sobre a Ponte Rio-Niterói

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/09/2009
Reeditado em 18/09/2009
Código do texto: T1817816
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