O homem dos olhos vermelhos

Leitos de hospitais geralmente são lugares tristes durante o dia. A noite essa tristeza se intensifica, solidificando-se nas paredes recobertas de limo, no teto mal iluminado pelas lâmpadas fluorescentes, nas camas recobertas pelos lençóis esverdeados, abarrotados, encobrindo seus contornos metálicos. Na camada de tinta que escapa das paredes... Se durante o dia os leitos de hospitais são lugares tristes, durante a noite eles se tornam deprimentes. Fiz essa pequena constatação pessoal, quando passei três dias e três noites inteiras, devidamente hospitalizado, graças ao que meu tio Antonio chamava de “Pequeno espião birrento”. Um calculo renal, de aproximadamente dois milímetros, semelhante a um grão de arroz super desenvolvido, alojado em meus rins, mas movendo-se furtiva e dolorosamente em direção ao meu canal urinário. Dizem que a dor do parto é uma das maiores dores que o ser humano pode sentir. Besteira! Levando-se em consideração os fatos, excluindo-se os nove meses de incômodos enjôos, a dor do parto nem se compara a dor de uma cólica renal. Passei dois anos nutrindo esse “filho bastardo” em meu “ventre”, e no fim me vi obrigado a expulsa-lo já em fase adulta. Cinco dolorosos milímetros atravessando o canal urinário. Cinco milímetros em forma de uma pequena pedra pontuda, formada basicamente de oxalato de cálcio e acido úrico. Imagine um pequeno pedaço de gilete, escorregando devagar, abrindo caminho a força junto com a sua urina. Parto normal? Besteira... Pura e simples besteira! E ainda tenho a pedra para provar.

O fato é que durante aqueles três dias em que passei acordado, me virando interminavelmente sobre os lençóis novos, recém estirados (mas ainda assim com aquele cheiro e aspecto desagradável de leito de hospital) recebi basicamente duas visitas. Uma delas, é claro, era minha mãe. Chegava as dez e saia pontualmente as doze, quando terminava o horário matinal de visitas. Trazia meu almoço devidamente conservado em uma tigela de plástico, pois sabia da resistência exagerada que meu corpo insistia em nutrir, quando o assunto em questão era a higiene empregada nos refeitórios hospitalares. Pobre coitada! Enfrentava uma verdadeira via-crúcis só para satisfazer um pouco das necessidades infantis do filho. E enquanto eu me alimentava, seguindo suas instruções de comer devagar e mastigar bem os alimentos, ela checava com cuidado os curativos provocados em meu punho esquerdo, pela mão desajeitada de uma enfermeira descuidada, que perdera a veia no momento de introduzir o soro na corrente sanguínea.

Minha mãe era uma boa pessoa e agradeço a Deus por tê-la sempre ao meu lado. Não pensem, por favor, que fui do tipo mimado que não nutria o costume de sequer lavar as próprias roupas de baixo. Seria uma interpretação errônea dos fatos aqui apresentados, mas digamos que sempre fui um pouco dependente dela, quando na verdade deveria ocorrer ao contrário. Sempre tive medo do tempo e do que ele poderia fazer comigo. Mais ainda, do que ele poderia fazer com ela.

Fui testemunha ocular do quanto o tempo pode ser cruel, logo no primeiro dia de internação no hospital Santa Maria, naquele inverno de 1957. O homem era um senhor já de idade. Pude perceber isso logo que ele entrou. Tinha no rosto um aspecto cansado, com profundas olheiras marrons rodeando seus olhos. A pele flácida, repuxada drasticamente para baixo, formando uma papada enorme e disforme logo abaixo do queixo. As costas arqueadas e o andar lento, vagaroso, quase hipnótico. Estava acompanhado por uma garota extremamente bonita, que o ajudava a carregar o suporte metálico do soro. Era um pouco maior que ele (mais devido à curvatura do corpo do velho, do que a qualquer outra coisa), longos cabelos ruivos, caindo lisos por sobre os ombros ligeiramente arqueados, pele branca e olhos tão verdes e brilhantes quanto duas bolinhas de gude. Na ponta de seu queixo se destacava um pequeno orifício, quase imperceptível, mas ainda assim carregando sua inegável parcela de beleza.

- Por aqui senhor. – Disse educadamente a outra mulher, que entrou no quarto logo em seguida, tomando a frente e indicando uma das camas ao meu lado. Usava um grande jaleco verde, que descia pelos contornos magros de seu corpo, quase até os joelhos. Seu rosto parecia tão cansado quanto o do senhor de idade, mas ela conseguia (ou pensava que conseguia) esconder isso muito bem com o blush e o pó compacto, espalhado pelo rosto como massa corrida em uma parede esburacada.

- Tem certeza de que vai ficar bem vovô? - Perguntou a garota dos olhos de bolas de gude, ajudando o senhor a se acomodar lenta e dolorosamente na cama. O velho balbuciou algo inaudível e se deitou, cruzando as pernas e os braços, encolhendo o corpo de lado em posição fetal. A mulher de jaleco o ajudou a tirar os sapatos e as meias, largando-os ao pé da cama após notar com crescente interesse a camada marrom de sujeira, semelhante à marca deixada em suas roupas intimas após uma incursão mal sucedida ao mundo da higiene pessoal.

- O horário de visitas é das dez as doze, querida. – Disse a enfermeira, procurando ser o menos rude possível. – Visitas após esse horário só são aceitas mediante uma permissão especial. Mas levando-se em consideração o estado de saúde de seu avô, isso não será muito difícil de se arranjar. – Nesse ponto a voz da enfermeira oscilou, e por Deus... Que todos os santos me perdoem, mas eu juro que senti uma pontada de prazer despontar de seus lábios.

A garota corou e procurou, provavelmente nos recantos mais profundos de sua mente, se lembrar de como deveria ser um sorriso sincero. Tentou reproduzi-lo com o Maximo possível de fidelidade, mas o que conseguiu foi apenas um ligeiro entreabrir de lábios.

- Tudo bem. Só peço que cuide bem dele enquanto eu não estiver por perto. – Disse ela. Sua pele adquiriu um tom ligeiramente rosado, quando as palavras saíram sofríveis de lábios ressecados. – Ele não dará muito trabalho. Sempre foi um homem quieto, do tipo que gosta de sofrer em solidão.

A enfermeira permanecia séria, mas a graças a uma habilidade que adquiri com o decorrer dos anos, convivendo em meio a uma sociedade hipócrita, que esconde seus mais secretos desejos sobre a camada superficial da pele, percebi que por dentro ela sorria. O tipo de riso sarcástico, capaz de fomentar os mais doces e delirantes desejos. A enfermeira de pele flácida e olhar triste parecia se comprazer com o sofrimento alheio, da mesma forma que um cientista metódico analisa um rato de laboratório, caminhando interminavelmente sobre o circulo metálico, fadado ao eterno enclausuramento de sua jaula... Sem escapatória.

- É como dizem... No fim as coisas sempre se ajeitam. – Disse a enfermeira, forçando um sorriso, que por fim se mostrou tão verdadeiro quanto uma moeda de dois reais. A garota dos olhos de bolas de gude não respondeu.

Alguns minutos depois a enfermeira saiu, deixando o senhor de idade aos cuidados da garota dos olhos de bolas de gude. Permaneceria por pouco tempo ali, já que o horário de visitas estava quase chegando ao fim. Sentou-se em um banquinho de madeira, com as bordas carcomidas pelas traças, e passou os minutos que lhe restavam acariciando os cabelos grisalhos do avô, que permanecia, por sua vez, inerte a tudo e a todos, mergulhado em seu próprio mundo imaginário, em um país distante, onde provavelmente doença alguma lhe acometera as entranhas.

- O que ele tem? – Perguntou minha mãe, rompendo o silêncio monótono do quarto. A fraca luz de uma manhã nublada atravessava as frestas das persianas, lançando sombras horizontais sobre os contornos de seu rosto jovial, mas também cansado.

Por um momento pensei que a garota dos olhos de bolas de gude não fosse responder a pergunta. Sua cabeça estava ligeiramente inclinada para frente, apoiada nas palmas das mãos, com seus dedos finos e delicados massageando a testa. A dor instalada em seu coração parecia se mover furtiva e delicadamente sobre o frio do quarto de hospital, de uma maneira triste e abrasadora. Se passaram apenas alguns segundos, mas que para mim pareceram intermináveis e angustiantes, até que ela resolveu responder.

- Alzheimer... – Disse ela. O tom parecia inarticulado, sussurrando as palavras, espalhando-as pelo quarto com o temor carregado na voz. – Se esqueceu das coisas boas da vida, e agora precisa de ajuda. O problema é que sou casada. Tenho dois filhos pequenos para cuidar e um marido que não move uma palha sequer... O ser humano às vezes pode ser muito egoísta não é?

- Na maioria delas, sim. – Respondeu minha mãe. Mas ambos sabíamos que a mulher não queria ouvir uma resposta. Fora uma pergunta retórica. Seu tom monótono de voz deixava isso definitivamente claro. – Mas vai ficar tudo bem. Ore... Peça por ajuda, e no final as coisas se ajeitam.

A garota riu. Não o tipo de sorriso sarcástico que a enfermeira havia insinuado e que interpretara tão convincentemente bem. Seu entreabrir de lábios era sofrível e real.

- Foi o que a enfermeira falou. – Disse ela, enxugando com as palmas das mãos as lagrimas que insistiam em deslizar dos seus olhos de bolas de gude. – E ele? O que têm?

- Pedra nos rins. – Respondeu minha mãe, sem fazer arrodeios. Geralmente agia assim com as pessoas. Aproximava-se delas muito facilmente, aproveitando-se dos não tão raros momentos de fragilidade emocional. Não demorou muito para que surgisse uma solida amizade entre as duas.

Com o passar do tempo, as visitas de ambas tornaram-se menos freqüentes. O leito do hospital tornou-se mais vazio, tendo sua solidão quebrada apenas nas poucas vezes em que a enfermeira de pele flácida e olhar torto aparecia para trocar as fraldas do senhor de idade. Fazia isso com o maior desprazer possível que uma pessoa poderia ter, e não foram poucas as vezes em que presenciei cenas de maus tratos. Prometi a mim mesmo que quando saísse dali tomaria as providencias necessárias para que aquele tipo de coisa jamais voltasse a acontecer. Mas, infelizmente, não foi necessário. Porque naquele mesmo dia, apenas algumas horas antes do médico finalmente me dar alta, durante uma madrugada frio e escura, o avô da garota dos olhos de bolas de gude e eu recebemos a segunda visita, da qual falei no inicio desse relato. Não citei nomes pois não me atrevi a nomeá-lo, tamanho fora o terror que se alojara em minha mente após aqueles fatos. Mas se for necessário fazê-lo, prefiro chamá-lo de “O homem dos olhos vermelhos”, mesmo sabendo, inconscientemente, que a criatura que nos visitara aquela noite era tudo, menos humana.

A lua cheia despontava no céu, grande e redonda, espalhando sua beleza para todos os lados, ofuscando parcialmente o brilho das estrelas. As persianas, como sempre, estavam abertas, e pequenas tiras de luminosidade se atreviam a invadir a escuridão parcial do quarto. Assim como nas outras noites, eu não conseguira pegar no sono. Contar carneirinhos já não adiantava muito na minha idade, de modo que sempre optava por permanecer de olhos fechados, me imaginando fora daquele lugar, de uma vez por todas, apesar dos braços inchados pelo soro sempre me lembrarem do contrário.

já passava das duas da madrugada, quando a porta do quarto foi aberta. Até onde eu sabia, não havia nenhuma dose de remédios cavalares programada para aquele horário, nem para mim e nem para o avô da garota dos olhos de bolas de gude. Um frio cortante pareceu inundar o quarto, de repente, antes que eu me desse conta de que o vulto parado em frente a porta não era o da enfermeira. Seus contornos eram másculos e bem definidos, do pescoço para cima. Do pescoço para baixo, usava um jaleco, obscurecido pelas sombras. Permaneci de olhos parcialmente fechados, fingindo estar mergulhado em um sono profundo, com o qual eu já não me familiarizava há muito tempo. O homem continuou durante um curto período de tempo parado a porta, provavelmente esperando alguma reação de minha parte. Creio que meu sono de mentira tenha sido suficientemente convincente, pois pouco tempo depois o homem que estava parado a porta moveu-se, caminhando devagar, contanto os passos, até a cama do senhor de idade. Virei-me um pouco sobre a cama, fingindo um sono perturbado, apenas para ter a oportunidade de enxergar o leito do avô da garota de bolas de gude de um ângulo melhor. Funcionou.

O homem de jaleco parou ao lado do leito do senhor de idade, checando com cuidado o soro preso ao suporte de metal, ao lado da cama. Deu três rápidas batidas sobre o plástico transparente e o soro no interior da bolsa começou a correr mais rápido. Sobre o leito, o velho gemeu, inconsciente, delirando enquanto dormia. O homem de jaleco moveu-se, sentando-se com cuidado no mesmo banco de madeira que a garota dos olhos de bolas de gude sentara apenas alguns dias atrás, deixando que um pequeno feixe de luminosidade que atravessara a persiana iluminasse parcialmente seu rosto. Fora apenas por uma fração de segundos, mas eu vi. O sangue de meu corpo gelou por completo, e um estranho frio sobrenatural pareceu invadir o quarto. O olhos do homem de jaleco eram vermelhos, como brasas retiradas das profundezas do inferno. Fitavam o velho com alucinado interesse, enquanto pareciam queimar viva e dolorosamente sobre seu rosto.

Pensei em levantar e fugir. Correr. Me esconder em qualquer lugar onde o homem dos olhos vermelhos jamais poderia me encontrar, mas o medo me paralisou. O senhor do destino, que no final sempre comanda nossas ações, me fez permanecer ali, de olhos arregalados, fitando os contornos demoníacos do homem dos olhos vermelhos, enquanto sua cabeça se inclinava ameaçadoramente em direção ao velho. E tudo acontecia como num filme, revelado aos poucos. Suas mãos de dedos finos e longos tinham garras nas pontas, ao invés das tradicionais e bem cuidadas unhas que um doutor teria. A pele dos dedos era flácida, enrugada e cinza. Parecia que poderia se desfazer a qualquer momento, semelhante a pele em decomposição de um cadáver. Abraçou o punho do velho com seus dedos mortos, e removeu com cuidado a agulha de um dos punhos. Elevou-o até a boca, envolvendo o pequeno orifício provocado pela agulha com seus lábios ressecados e cinzas. O que se seguiu posteriormente fora um verdadeiro teatro de horrores. Eu podia ver o sangue fluindo nas veias do velho, indo de encontro aos lábios mortos do demônio de olhos vermelhos. Uma pequena poça de sangue se formou ao pé da cama e quando pensei que o demônio dos olhos vermelhos havia terminado, algo mais aconteceu. Ele abaixou-se, inclinando seu corpo em um movimento humanamente impossível, sem dobrar os joelhos, até o chão. Uma enorme corcunda apareceu em suas costas e o jaleco de doutor que usava tornou-se pequeno, revelando uma massa de ossos magros, visivelmente desproporcionais, grudados a pele morta, decompondo-se. Uma coisa grotesca e disforme, que jamais ousarei chamar de língua, saiu do interior de sua boca, contornando o ar em movimentos delicados e ao mesmo tempo horripilantes, como uma cobra manipulada por um encantador de serpentes, e lambeu o chão. Seus olhos brilharam novamente, com o fogo oriundo das profundezas do inferno, e por um momento apenas me encararam, como se dissessem: “Você é o próximo, garoto.”

Mas eu não fui o próximo. Ao menos, não naquela noite. O demônio dos olhos vermelhos se levantou, satisfeito, e seus contornos, por incrível que pareça, voltaram a assumir a forma humana com a qual ele havia se apresentado, no momento em que entrou no quarto. Virou as costas e saiu, largando o velho morto atrás de si.

Muitos anos se passaram, desde o acontecido. Perdi a maior parte dos meus cabelos, e os poucos que ainda restam são tão brancos quanto um céu repleto de nuvens. Na época tinha apenas dezoito anos e toda uma vida pela frente. Uma vida que ficaria marcada para sempre pela presença do demônio dos olhos vermelhos, durante uma noite escura, num leito frio e solitário de hospital. Hoje tenho noventa e dois anos, e me encontro deitado no mesmo leito. Esqueci-me do rosto de minha mãe, do rosto da garota, mas do rosto do demônio dos olhos vermelhos eu jamais me esqueceria. É o mesmo que se encontra parado agora, na porta do quarto, me observando com curiosa atenção.

FIM