O ASCENSORISTA

- Que estranho, por que esse andar parece tão abandonado?

Ele não queria aceitar, mas já sabia a resposta, desde que resolvera se aventurar naquela empreitada estava ciente de que algo assim o aguardava...

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August não gostava do seu trabalho, disso tinha absoluta certeza. Já havia feito muitas coisas na vida, já havia se envolvido em situações que o revestiam com a mais completa vergonha. O tempo havia passado, longos anos se estenderam desde que encontrara novamente a liberdade, no entanto, o calendário não se mostrara um agente eficiente para eliminar satisfatoriamente as lembranças hediondas que o consumiam. Tudo o que conseguira em sua nova jornada de vida fora um emprego naquele elevador. Não se sentia grato por isso, detestava a rotina maldita que o enclausurava e mortificava. Livre das barras de ferro, mas confinado em uma caixa de metal, assim resumia o seu viver.

Não, ele não agüentava mais servir de condutor para uma massa humana que nem ao menos o reconhecia como gente, os acenos de cabeça e os cumprimentos falsos seriam os mesmos se fossem dirigidos a um jarro de plantas. Por que deveria aceitar isso? Por que carregar esse fardo? Já havia perdido a mulher por conta da condenação, passara os últimos dez anos nessa ação contínua e ininterrupta de subir e descer. Não, ele já havia decidido largar essa tarefa que o limitava, se fosse para viver dessa forma, preferiria morrer, pois a morte seria mais objetiva e precisa, não um elemento que o consumiria aos poucos até que definhasse por completo ainda em vida. Reviveria os dias de liberdade, não uma liberdade superficial, buscaria de volta a plenitude que costumava ter, mas antes, precisava fazer algo. Necessitava aplacar o único sentimento legítimo que revolvera o seu peito durante a tortura diária ao longo dos anos, descobrir o que tornava aquele andar tão diferente.

Havia aproveitado o período de ociosidade para invadir aquele território proibido, tantas vezes recomendado pela chefia para que fosse evitado. Naquele andar exclusivo, apenas o pessoal autorizado poderia circular, mas ele já não tinha nenhum receio em quebrar regras, já havia se desfeito de todos os pudores. Há muito que aquela mulher de estatura reduzida, a mesma que executava religiosamente o mesmo percurso todas as noites, envolta por um xale negro e revestida por uma aura misteriosa, lhe chamara a atenção. Como fazia todas as sextas-feiras, a mulher dirigiu-se às escadarias, nunca utilizava o elevador, talvez fosse esse o fato que tivesse tanto atraído a sua atenção sobre ela. Carregava o costumeiro pacote semanal. Com isso, de certo, ela levaria algum tempo para vencer o espaço entre o térreo e o referido andar.

Quase sem se dar conta, já estava pressionando o botão que o levaria ao local desejado. A luminosidade intermitente, que anunciava a chegada ao andar indicado no mostrador, contrastava com a escuridão absoluta que assolava o ambiente. Um odor diferente dominava todo o local, nunca havia sentido nada semelhante, era tão forte e penetrante que chegava a queimar-lhe as mucosas das narinas. Lágrimas vertiam de seus olhos vermelhos. Usou a parte inferior da camisa sobre o nariz e a boca como proteção. Ele não conseguia entender, achava estranho o fato de todo o andar parecer tão abandonado, e ainda assim uma névoa nauseante se espalhar por toda parte sem ter um origem definida. Apesar de tudo, o inusitado fenômeno não fora capaz de evitar que percebesse algo ainda mais extraordinário; ele poderia jurar ter visto a mulher entrando pela porta da sala comercial que fora convertida em residência. Como isso era possível? Nenhum ser humano seria capaz de vencer aquela distância tão rápido. Só havia um elevador no edifício, e este fora utilizado há pouco por uma só pessoa, ele mesmo.

O homem estava assustado, como nunca estivera em sua triste vida, no entanto, a curiosidade era maior, e ele não conseguiria viver sem descobrir o que acontecia por trás daquela porta. Em seu pensamento a idéia de que não teria outra oportunidade de voltar ali tornava essa investida como única. Ouviu um som, um clamar de muitas vozes, falavam em uníssono, pediam ajuda. Um estrondo ecoou às suas costas revelavando que a porta do elevador acabara de se fechar, o som, desproporcional para o que seria, transformou a vontade irresistível que lhe consumia em um ato de puro instinto. Assim, correu até a folha de metal e começou a apertar incessantemente os botões com setas em alto relevo. Luzes multicoloridas corriam sobre os números posicionados na parte superior da porta lacrada. Movido pela urgência, desistiu do elevador e pôs-se em direção às escadarias, seus olhos rubros e irritados só poderiam estar lhe pregando alguma peça; no lugar onde deveriam estar os degraus, nada havia além de uma parede com o reboco em decomposição.

Não, ele não queria acreditar, seria alguma sina que o perseguia? Viver enclausurado seria seu destino? Como odiava esse maldito emprego. A névoa se tornava mais espessa, o odor tornava insuportável a permanência naquele corredor, precisava achar uma saída. Foi então que uma coisa óbvia lhe ocorreu, a residência da mulher, certamente ela estaria envolvida nisso tudo, mas não havia outra alternativa, além disso, por mais que aquela estranha figura tivesse alguns segredos, ele também tinha os seus, um passado muito perturbador, que ele não hesitaria em reviver se fosse preciso.

Como se pudesse adivinhar o pensamento que rondava a sua cabeça, o interior do apartamento da mulher se oferecia com a porta escancarada. Seus pulmões estavam prestes a explodir, praticamente se jogou pelo vão, esparramando-se pelo chão de uma sala completamente vazia. Uma vez dentro do recinto pôde respirar livremente, filetes de sangue escorriam de suas narinas. O local não estava em trevas, mas também não se apresentava plenamente iluminado, na verdade, a luz tênue que se espalhava por ali não provinha de nenhuma lâmpada ou coisa parecida, era uma iluminação quase natural.

Ele permaneceu deitado no assoalho por algum tempo, estava totalmente sem ação, a espécie de transe que o invadia fora subitamente quebrada por um som irritante e contínuo, era um gotejar. Não consegui localizar a origem do ruído, mas um suave toque em seu pescoço servira como indício. Levantou-se de súbito e esfregou a mão na nuca, não precisava ver claramente, sua experiência o advertia sobre a natureza daquele líquido pegajoso. Um rastro escuro se estendia como uma serpente sinuosa por um corredor que levava a um outro cômodo. Decidiu que não tinha outra coisa a fazer a não ser seguir aquela linha, como desejava ter nas mãos o antigo instrumento de trabalho, o objeto metálico que lhe dava segurança e poder.

Estava indefeso, pelo menos era assim que se sentia, e por conta disso caminhava com passo cautelosos. Já havia feito e visto muita coisa na vida, mas não sabia o que iria encontrar, e isso o preocupava além do que gostaria. Ao dobrar o corredor e se deparar com uma sala mais ampla do que a anterior, teve a certeza de que estava preparado para tudo, mas não para aquilo. Uma grande bacia, diretamente conectada a um tubo no chão, totalmente preenchida pelo mesmo líquido escarlate que vira, era dali que se originava o rastro. O pior, além da visão de todo aquele sangue, algo aterrador até mesmo para ele, dentro da grande bacia ainda estavam alguns corações, sem dúvida humanos. Ele teve vontade de correr, de gritar, de pedir ajuda, mas não fez nada disso, pois fora levado ao chão, vitimado pelo golpe desferido pela pequena mulher de xale negro.

- Dezessete – disse para o homem acorrentado a uma cadeira.

- O que? - Respondeu, sem entender o que estava acontecendo.

- Dezessete corações. Era essa a quantidade que havia no recipiente.

O homem continuava sem entender, enquanto a estranha não interrompia o seu relato.

- Eu tenho uma missão – dizia ela – uma missão bem clara e definida, levo alimento para aquele que tem fome. Um vez por semana, dezessete corações, nem mais, nem menos. Sabe, tenho minhas vantagens enquanto viva e espero ser recompensada além desse plano. Por isso pago muito bem pela discrição, que é algo imprescindível no meu negócio. Nunca antes alguém havia pisado nestes domínios sem que eu autorizasse, a não ser você. A vida tem seus altos e baixos, e você, mais do que ninguém, sabe disso. Portanto me ocorreu que posso utilizar isso que você tem em seu interior para meu proveito, na verdade, sou a responsável por fornecer a matéria que ele precisa, mas a essência vital, essa não sou eu que providencio. Mas, como você veio de tão boa vontade até aqui...acho que ele não vai recusar, não é? Então ele gritou...

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Ele odiava aquele trabalho. Detestava. Estar fadado a subir para recolher a carga, descer para descarregá-la. Durante dez anos estivera confinado a uma caixa de metal e praguejava por isso, agora, ganchos afiados atrelavam-se à sua carne impedindo que se mexesse, deveria servir de condutor para os perdidos, precisava levá-los para a danação eterna. No percurso, sentia sua alma queimar, a cada apertar do botão, mil lâminas o faziam lembrar de seus erros. Subia torturado pela dor de sua alma, descia compartilhando o sofrimento dos outros. Ele detestava aquele trabalho.

Esse texto é o complemento do conto "O Andar" de Xande Ribeiro

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Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/10/2009
Reeditado em 13/10/2009
Código do texto: T1864099
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