"Dei-me amor, ou sua alma"

O dia avançava rompendo os limites do anoitecer, quando uma figura morbidamente feminina apareceu frente ao cemitério onde eu passava.

- Dei-me amor, ou sua alma!

Não dei ouvidos ao tal fantasma e segui meu caminho a passos leves, apreciava um cigarro filado de um amigo meu, na subida do arvoredo. De repente eu senti um calafrio, não ventava e nem fazia frio naquele anoitecer, só podia ser a presença daquela fêmea diabólica. Então, enquanto atravessava uma encruzilhada ela apareceu novamente com seus olhos escuros, eram verdadeiros furos no seu rosto branco, e um vestido da mesma brancura, porém manchado pelo tempo. Ela disse:

- Dei-me amor, ou sua alma!

“Mas que danação!”, pensei. Ela estava me seguindo e eu já estava ficando nervoso com aquele vulto pálido em minha frente. Mas a noite era minha amiga e eu estava protegido. Caminhei toda a quadra antes de dar a ultima tragada e atirar fora meu cigarro. Fiquei com medo. Me senti desprotegido, vendo o cigarro se apagando no chão de maneira tristonha. Me arrastei por mais duas quadras até passar por um jardim escuro, de apenas flores mortas. Novamente o calafrio e em segundos ela aparece na minha frente.

- Dei-me amor, ou sua alma!

Ora, eu não tenho tempo para conversar com almas penadas, e meu caminho é longo demais, além do que, preciso degustar uma boa dose de cevada gelada entre meus dentes, deixar que o malte caia todo na minha garganta. Sim, degustaria ainda naquela noite uma boa cerveja gelada. Mas ainda estava longe da glória. Precipitei-me e subi um jogo de escadas enorme que daria logo de cara com aquele bar de sempre. As escadas pareciam mais sujas do que nunca e um dos postes de luz estava desligado, deixando um vão escuro no meio do terceiro par de escadas. Mas que azar o meu, senti o mesmo calafrio tortuoso! Porque isso? Porque agora? Quando que ela vai me largar de mão? Talvez nunca...

- Dei-me amor, ou sua alma!

Senti o bafo gelado saindo daquela boca tocar meu rosto e por um instante me senti morto como ela. Mas como de costume ela logo desapareceu sem deixar vestígios e completei o jogo de escadas já me sentindo aliviado, pois estava lotado o velho e bar e eu poderia apreciar aquele liquido gélido percorrer minha garganta. Feito isso, sentei ao pé do balcão e apreciando as pernas delicadamente vulgares de uma garota, me tranqüilizei. Fiquei certo de que estava a salvo, o relógio estava a romper as 12 horas quando uma dor me pegou de súbito. Senti meu estômago virar, as minhas entranhas pareciam se dilacerar e uma sensação de desconforto geral me pegou de assalto. Corri para o banheiro para vomitar, quem sabe fosse o almoço daquela espelunca onde tenho passado os meus últimos dias, talvez também a cerveja, ou a terrível combinação com uísque. Tantas alternativas que não me veio a mais simples.

- Dei-me amor, ou sua alma!

Eu ouvi! Levantei a cabeça e dentro daquele banheiro sujo estava ela. Sim, calma e gelada, mas também pudera, estava morta. Então senti que tudo aquilo fazia sentido. Eu sentia vontade de vomitar, mas o vômito não vinha e a todo instante... minha cabeça parecia explodir, ela repetia aquelas palavras na minha volta:

- Dei-me amor, ou sua alma!

- Dei-me amor, ou sua alma!

- Dei-me amor, ou sua alma!

- Dei-me amor, ou sua alma!

Por fim, vomitei e ela desapareceu. Ao me olhar no espelho, tive a ultima visão do meu reflexo, um rosto magro, já com profundas olheiras e despenteado. Entregue a morte. Ela levou minha alma e eu descobri que nunca tivera amor. Hoje eu sigo pelas encruzilhadas, cemitérios, jardins de flores mortas, escadarias, esquinas escuras, procurando, farejando, pedindo:

- Dei-me amor, ou sua alma!

Pois preciso de um dos dois para viver....

Reny Moriarty
Enviado por Reny Moriarty em 10/11/2009
Reeditado em 23/08/2010
Código do texto: T1915764
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