UM RELATO FANTASMAGÓRICO

Eu, insone que sempre fui, estava demorando demais a adormecer. Era uma noite comum para mim, isto é, peregrinar, via pensamentos, vários lugares até o sono chegar. Mais uma noite tentando encontrar o arredio habitante noturno. E as horas passaram ligeiras. Meia-noite, uma, duas, três... Às três e vinte da manhã, ele chegou quieto e rápido. Trouxera-me uma oferenda; a desídia. Fizera-me pestanejar e levara-me para os desconhecidos - e agora assustadores - caminhos que o cercam.

Recordo-me que já dormia quando o telefone, que ficava bem ao lado de minha cama, tocou. Abri os olhos assustados e a decepção me abraçou quando vi através da janela que o céu ainda estava escuro. Qual não foi minha desaprovação em saber que teria de procurar outra vez o sono. Então, atendi o telefone.

A voz era grave e o volume baixo. A pessoa começou a pedir desculpas por ter ligado àquela hora, mas avisou que era algo importante. Eu perguntei quem era, pois não havia reconhecido a voz. Meu interlocutor disse solenemente, impostando a voz: “É Umbelino... do sítio”.

Como se precisasse utilizar “sítio” como parâmetro para sua identificação. Eu não conhecia mais ninguém com esse nome. O desconhecido sempre nos causa um sentimento inquietante. E até aquele momento, eu não sabia com quem estava falando. A partir da identificação do caseiro, eu relaxei um pouco mais. Mas comparo tal situação à melhora, de um enfermo, que precede a morte. O que se seguiu foram fatos – até certo ponto – inexplicáveis e depois... simplesmente assustadores.

“Então conte o que está acontecendo, Umbelino. As vacas estão parindo?” – perguntei desanimado.

Prontamente, ele refutou a hipótese do nascimento dos bezerros. Eu ouvia seu discurso sem guardar atenção especial ao que dizia. Mesmo ele estando com a voz trêmula. Mesmo àquela hora da madrugada...

O homem estava tão nervoso que por minutos não conseguiu dizer qual era realmente o problema. Tergiversava e não tangenciava o cerne do acontecimento. Mas ele concordou que as vacas estavam relacionadas ao problema, porém o foco se dava em outro local e sem o envolvimento direto dos animais que eram apenas marionetes. E quando ele disse o que acontecia, pestanejei, não de sono, mas de incredulidade.

“O que você está dizendo, Umbelino? Os objetos estão se movendo? Que sandice é essa, homem? Você está ligando de onde?”

O homem se concentrou no discurso e revelou que utilizava um telefone público localizado numa estrada que dava acesso ao sítio. E disse que o movimento dos objetos era o menor dos problemas que estavam acontecendo. Assustadoramente, ele afirmou que a perturbação tinha nascedouro na seguinte pergunta “Quem está movendo os objetos?” Um calafrio percorreu meu corpo. Então soube que os cavalos, os patos, as galinhas, o cão perdigueiro Max, enfim, todos estavam com estranhos comportamentos. Alguns bichos haviam se atirado no riacho que corta a propriedade e não haviam sequer feito um mísero movimento para salvarem-se. Apenas afundaram nas águas barrentas. Alguns morcegos voavam em direção às paredes da casa e batiam fortemente contra elas. Depois caíam mortos. Ele disse que havia centenas de morcegos mortos em volta da casa. Ele garantiu que alguns morcegos eram erguidos no ar e atirados na água por uma mão invisível.

“O que houve com os cavalos?” – perguntei curioso e atormentado pelo prejuízo que o sítio teria.

Um segundo e mais pungente calafrio percorreu meu corpo quando ouvi a resposta que não estava diretamente relacionada aos equinos.

“O quê? Um fantasma atazanando os animais? Como pode?” – tentei trazê-lo para um conversa menos sobrenatural usando a seguinte frase: “Acho que foi alguém com má intenção. Alguém que está espantando os bichos! Já ligou para a polícia?” - Umbelino era um sujeito honesto. Nunca iria mentir para mim. Isso sublinhou - com terrível certeza - a estória de que um fantasma estava assombrando o sítio. O homem pedia minha presença o mais rápido possível.

Atônito, avisei que não poderia ir àquela hora, mas ele me convenceu – com incrível renitência – que eu deveria ir naquele momento, se não ele continuaria a me ligar durante toda a noite. Eu avisei que em quarenta minutos estaria lá. O caseiro me agradeceu com fervor e garantiu que não iria embora. Avisou que me esperaria. Por último, a frase que mais me causou temor naquela conversa. Ele falou exatamente assim: “venha preparado para testemunhar a existência do sobrenatural”. Perplexo, eu desliguei o telefone. O arrependimento foi imediato, mas eu já havia dado minha palavra.

Foi quando os pelos de minha nuca ouriçaram-se. Eu sentei na cama e pus o dedo indicador na ponta do nariz, uma mania que tenho, levantando-o um pouco. Por alguns momentos, pensei naquelas derradeiras palavras “testemunhar a existência do sobrenatural”.

Dirigi como um alucinado pela noite. Àquela hora, não avistei nenhum veículo. Liguei o rádio VHF portátil e acionei a função scanner. Eu sou radioamador e procurava alguém para conversar àquela hora. Não ouvi ninguém.

Em trinta minutos atingi a estrada vicinal que conduzia ao sítio. Vi, num átimo, quando os faróis iluminaram, que o telefônico público estava com o fone pendurado, fora do gancho. Aquilo me trouxe péssimas idéias. Os postes marginais à estrada de chão estavam apagados. Em poucos minutos, cheguei ao sítio que também estava mergulhado numa escuridão imensurável. A única iluminação realmente potente se originava do meu veículo. Ao longe, eu vi Umbelino metido em jeans, camisa simples, chapéu de palha e botas negras. Trazia, à mão, um lampião alimentado a gás que pouco servia senão para clarear um metro à frente e, às costas, uma espingarda de cano duplo. Estava parado, olhando a cerca mais posicionada ao norte, perto de umas das janelas da casa. Ele virou-se lentamente e eu, assustado, pude ver seu rosto, pois ele estava na direção da luz do carro. O homem estava com uma fisionomia atormentadora. Por baixo do chapéu eu vi um homem taciturno, cujo rosto mantinha uma palidez fantasmagórica. Os olhos denotavam seu estado de espírito. Parecia que iriam saltar das órbitas de tão arregalados.

Subitamente, ele rumou para minha direção. Eu me assustei com seu ímpeto em chegar ao veículo. Abri a porta e ele vazou para dentro, puxando-a e abaixando o pino da trava.

Já dentro do veículo, ele falou com o rosto enterrado nas mãos e o lume no meio das pernas:

“Você acredita em fantasmas, senhor?” – sua voz saíra abafada.

“O que você está dizendo, Umbelino? Pare com isso, homem” – eu já estava atormentado.

Ele olhou para mim. E, outra vez, eu me assustei com sua feição. A luz mortiça do candeeiro dera contornos mais assustadores ao seu rosto, afinal ele estava ao meu lado. A face tornara-se amarelada, em razão da luz, e estranhamente séria. Então ele perguntou:

“Acha que estou louco?”

“Não é isso, Umbelino” – titubeei na resposta. Não quis revelar minha covardia.

“Eu estava olhando o capim se mover sozinho, senhor. Não poderia ser o vento, pois parecia que estava sendo amassado pelos pés de alguém que caminhava lentamente sobre eles.”

Nada falei. Olhei para frente tentando demonstrar descrédito!

“Acredite, senhor. Eu, então, desafio você a entrar naquela casa e passar essa noite lá. E não precisa ir para os quartos. O problema está na sala. Foi lá que a coisa entrou ao passar pela janela.” – ele apontou para a casa do sítio da qual sou dono. Era uma casa simples, porém aconchegante.

Sobre a morte de Umbelino, tenho a dizer que quando entrei na casa – empurrado por um arroubo de coragem - e encostei a porta, ouvi o som de um tiro. Tentei abri-la e ver o que havia acontecido. Mas ela parecia estar emperrada... parecia ter acabado de ser emperrada. Ou alguém a segurava! Assim, não pude voltar.

O disparo que o caseiro efetuou contra o próprio queixo foi e menor susto que senti naquela noite pagã.

Ao chegar à porta, vi vários animais voadores mortos. Muitos deles eram morcegos, mas havia pássaros dos quais não sabia as raças. A cena era funesta. Mas, desviando desses seres mortos, abri a porta e entrei na casa.

Corajoso, avancei no cômodo. A sala estava fracamente iluminada por outro candeeiro que jazia num canto, próxima a janela que estava aberta e dava para a cerca do sítio. O local estava gelado. Pela primeira vez eu comecei a ponderar a possibilidade de algo sobrenatural estar habitando a casa, pois, estranhamente, não estava frio nem ventava lá fora e, mesmo à noite, aquela casa sempre fora muito quente.

Meu rádio portátil estava no bolso. Ao sentar-me no sofá, retirei-o e imediatamente liguei-o. A luz amarela do visor iluminou meu rosto. Mesmo o aparelho nunca tendo captado outro radioamador dentro da casa, naquela noite eu resolvi ligá-lo.

Permaneci imóvel na sala e por momentos não ouvi nem vi qualquer coisa que pudesse considerar sobrenatural. Apenas o candeeiro que gerava um pouco de calor e claridade. Algumas vezes a antiga peça emitia uns estalos. Mesmo sendo normal, a cada novo estalo, que era intermitente e levava alguns minutos para acontecer, eu me empertigava. Mas a peça começou a falhar. E em pouco tempo se apagou lentamente. Foi quando eu achei que tivesse visto alguém ou algo que estava maliciosamente camuflado numa das sombras que existiam na sala. Esse ser antecipou seu movimento – num caminhar lento e com a cabeça baixa - em direção à janela, antes da luz minguar totalmente. Eu já não tinha saliva na boca quando vi a cena. Condicionei minha mente a acreditar que fora um engano de meus olhos... que havia sido impressionado por Umbelino. Mas meu cérebro se recusava a aceitar tal hipótese. E a memória me trazia aquele movimento rápido e espectral. Não ousei dizer nada.

Logo em seguida, escutei com imensurável pavor a janela se fechar. O lento som do roçar da janela nos caixilhos paralisou minha respiração. Sem motivo, o interruptor de luz que parecia um pingo fosforescente na escuridão chamou minha atenção. E quando reparava com mais perspicácia, o matiz esverdeado recebera outra tonalidade e num segundo depois voltara ao normal. Nesse momento, eu soube que a sombra havia cerrado a janela e passado na frente do interruptor.

Direcionei meu olhos para o canto que supostamente ela havia ido. Agucei a visão, mas o breu – como disse antes – era interminável. Eu tinha um isqueiro e nove cigarros. Mas não tinha coragem de acendê-los e tampouco riscar o isqueiro para iluminar a sala. Na verdade, eu não tinha coragem para fazer nada. Inclusive, eu desliguei o rádio portátil para diminuir a probabilidade de escutar algo, mesmo que fosse somente a estática do rádio transmissor. Pousei-o ao meu lado, no sofá de couro.

Depois eu me afundei na poltrona do sofá e fiquei torcendo para amanhecer logo. Sabia que o dia traria chances alvissareiras para mim ou mesmo coragem para fugir. Ainda não havia escutado nenhuma voz ou sussurro fantasmal que pudesse abonar a presença daquela sombra inumana na sala. Não tinha coragem para me locomover. Eu só queria ficar ali quieto, até o raiar do dia. Ainda existia um resquício de incredulidade em mim.

Subitamente, assustei-me com sons surdos que vieram das paredes. Imediatamente, rememorei o suicídio coletivo dos morcegos e outros seres noturnos que voam. Apesar de estar com os músculos retesados, mantive o controle porque já sabia do fato. Todavia, o imo psicológico ainda ostentava a chama do medo. Era um pêndulo que balançava ora para a razão, ora para o medo.

Alguns minutos passaram até que quase perdi o controle quando ouvi uma cadeira de balanço ser arrastada na sala. Peço a quem estiver me lendo agora que imagine a cena. Uma escuridão profunda. Uma pessoa que havia acabado de conversar sobre espíritos. Uma sombra relapsa em seus movimentos, com se quisesse ser vista ou que não se importasse se isso acontecesse. E um arrastar de cadeira. E o pior: você cônscio de que está sozinho no ambiente, pelo menos não com outra pessoa. É de tremer quaisquer pares joelhos.

A cadeira parecia que estava sendo conduzida para perto de mim. Intuí que o objeto havia ficado em frente ao sofá, onde eu estava. Instantaneamente, achei que ela poderia ser usada, então eu desejei que ela não fizesse o rangido característico de quando alguém a usava. Mas, àquela altura, eu não tinha querer. Alguém se balançou naquela cadeira porque o som da madeira rangendo me chegou aos ouvidos tão claro e lento que agarrei o couro do sofá com enorme força, em puro desespero represado. Eu não possuía coragem nem para gritar. Cri que aquilo que estava na sala também não me via na escuridão. Então eu tentei não fazer alarde e denunciar minha localização!

Mas concluí que a sombra havia se enveredado para a cadeira de balanço e já sabia minha localização na sala.

Quase desmaiei quando meu rádio portátil começou a chiar. Foi um susto acutíssimo. Era a estática que fazia estranhos e repetidos sons. Levei a mão para o local onde o havia deixado. Minhas narinas começaram a fremir. Fui acometido por uma sudorese desmedida. Horrorosamente, constatei que o rádio não estava mais aonde eu havia colocado. Por longos minutos, nada mais aconteceu. Nem mesmo ouvi o rádio.

Fiquei paralisado por horas, imerso na escuridão, sem ver ou ouvir mais nada. Tenho certeza que o cansaço me venceu; eu havia dormido.

Acreditei que tivesse acordado com a aurora. Os primeiros raios solares já alcançavam meu rosto. O breu que habitou o local estava se dissipando aos poucos. Quando virei para a cadeira de balanço a minha frente, vi o rádio sobre o assento da cadeira. Olhei mais detidamente e vi duas formas de nuança âmbar. Os raios solares emprestavam a coloração amarelada a algo translúcido. Meu coração disparou só de vislumbrar a hipótese de ter sido um espectro amarelado pelos primeiros raios solares.

Foi então que eu despertei com a respiração entrecortada. Mantive o rosto voltado para o teto tentando entender o que havia ocorrido. A cena sumira e eu tomava consciência de que fora um pesadelo. Instintivamente, levei a mão aonde havia colocado o rádio anteriormente. Encontrei-o e um sopro de felicidade me alcançou.

Julgando-me um tolo, ergui a cabeça e olhei para frente. Foi quando o horror alastrou-se instantaneamente por cada parte de meu fatigado corpo.

Olhando para mim, havia um espectro longilíneo e sisudo. Ostentava uma calvície acentuada, mas possuía um pouco de cabelo, desbotando para grisalho nas têmporas, ao derredor do crânio. Estava sentado na cadeira de balanço, fitando-me com atenção. O dorso encostado no espaldar da cadeira. As mãos sobre os braços de madeira, seguindo-os. O rosto com uma expressão nada amigável. No ínfimo tempo que fiquei ali, ele nada disse.

Com sobressalto instintivo, levantei-me e pulei pela janela, num mergulho inconsequente. As cicatrizes no meu rosto testemunham a meu favor. Depois corri para o carro. Lá, vi o cadáver de Umbelino que jazia sobre o banco do carona. Empurrei-o para fora e dirigi para longe daquela casa. Algum tempo depois, doei o sítio, e tudo que havia nele, à Prefeitura. Realmente, considero-me uma testemunha da existência do sobrenatural. E por último, acrescento que a insônia piorou, pois desenvolvi o pavor de dormir.

______________________________

Leia mais contos de terror clássicos e contemporâneos em

www.arquivodobarreto.com