Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 3

(continuação de Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 2)

O lugar apeteceu o vampiro. Era o esconderijo perfeito, aquele porão. Lá, gatos, ratos, e outras pragas deviam passar as noites e mesmo os dias na mais completa escuridão. Se tivesse mais tempo, o visitante certamente olharia mais a fundo um lugar deste tipo. Porém, hoje, tendo em vista as circunstâncias...

Andou mais um pouco, até encontrar a frente da casa, que apresentava uma sacada de aparência pobre, revestida tanto de buracos quanto de azulejos de pinturas amuadas e cores irreconhecíveis. Dois pilares descascados de madeira seguravam o teto, que se destacava de modo a cobrir a sacada como uma última e forçosa medida arquitetônica, buscando exibir um mínimo de requinte e aconchego. Gramíneas e pestes vicejavam por entre as folgas dos azulejos.

O homem deteve-se junto à porta. Uma porta comum, solitária, colocada à esquerda de uma janela de veneziana, segura por algumas tábuas ali pregadas. Não havia nenhuma tábua bloqueando a porta, mas eram evidentes os furos no batente de madeira. Três ou quatro tábuas tinham sido deixadas, sobrepostas, bem ao lado da porta, com montículos de matéria ferruginosa - o que havia sobrado dos velhos pregos - espalhados em volta delas.

O homem vestido de preto franziu o nariz, desconfiado. Talvez tivesse alguém dentro da casa...

Talvez não.

Os raios do sol já enalteciam os morros de uma serra que se distanciava no oeste, fazendo seus olhos super sensíveis arderem. A noite não passava de ruínas.

Bateu na porta, afoito, apenas para mostrar respeito aos velhos tabus. Um dos algarismos que formavam o número da casa desprendeu-se e caiu - de 31 que era, a numeração sofreu uma queda brusca, transformando-se em apenas 1, enquanto o algarismo 3, metálico, quicou por duas vezes no piso de azulejos, e foi sumir no meio do capim, junto à área calçada.

Sem ter tempo para interpretar presságios, o homem inquieto bateu outra vez na porta. E mais outra.

Irritado, girou a maçaneta, que produziu um ruído áspero. A porta abriu-se, e ele penetrou na casa.

Sentindo-se mais aliviado por já estar longe do alcance das chamas mortíferas do sol, o homem vestido de preto fechou a porta, sorridente, refugiando-se na escuridão. Passou a conferir o local onde se encontrava, enquanto suas vistas se ajustavam à falta de luz. Viu que estava em uma sala de visitas abandonada, sem mobília, com uma única passagem que dava em um corredor. Blocos de argamassa seca caídos das paredes formavam montes de sujeira em torno destas. Um lugar definitivamente imundo, aquele.

Deu o primeiro passo em direção ao corredor, e parou de repente.

Luz!

Viu com espanto, o reflexo do sol pontilhando as paredes e o piso de madeira na sua frente. O sorriso sumiu de sua face.

A porta!

A luz... A MALDITA LUZ... em todos os lugares.

Horrorizado, ele piscou e encolheu-se para se livrar dos efeitos degenerativos do reflexo. Seus olhos ardiam, fogo em brasa.

A PORTA AINDA ESTAVA ABERTA!

Protegendo-se da luz, movido com incrível rapidez por intermédio do poder de que dispunha, ele virou-se para fechar a porta. Instintivamente abriu os olhos.

Tudo estava escuro.

A porta continuava fechada, como ele a havia deixado.

“Bem vindo...”, soou a voz do demônio, vinda de trás de si.

Só então ele percebeu que não estava sozinho naquela sala, e que a luz que vira não passava de uma alucinação.

Súbito, os vermes passaram a se mover mais rápido dentro de seu estômago.

Ele tombou ao chão, sabendo que era tarde demais para tentar qualquer coisa.

* * * * *

( As vespas solitárias não vivem em colônias, no entanto, sob alguns aspectos, são ainda mais interessantes que as vespas sociais... Alguns tipos costumam fazer seu lar nos ninhos de outros insetos... As vespas fêmeas, adultas, costumam trabalhar e se sacrificar por sua prole, mesmo que nunca venham a ver suas crias... A larva de vespa solitária tem predileção, conforme seu tipo, por uma dada modalidade de inseto, entre aranhas, besouros, formigas, e outros... Os adultos alimentam-se de nectar e sucos de frutas, contudo, caçam presas que são picadas por seus ferrões paralizantes e levadas ainda vivas para a toca... Quando a vespa adulta consegue reunir um estoque de presas suficientemente grande, ela deposita um ovo em um dos corpos das vítimas e a seguir fecha o ninho hermeticamente. Em poucos dias, a larva eclodirá do ovo, encontrando ao seu dispor um abundante suprimento de alimento fresco...)

Enciclopédia Delta Universal - Adaptado

* * * * *

Ele despertou, sentindo a agitação de um corpo rompendo a paz do ambiente. Odores pesados exalados por materiais em decomposição preenchiam o espaço, deixando o ar denso. Ouviu passos, descompassados, como os passos de um aleijado, dando voltas, indo de lá para cá, de cá para lá. E outros ruídos, de coisas sendo... posicionadas... empilhadas?

O vampiro estava caído, entorpecido, sem conseguir mover-se, seu corpo escorado em um canto qualquer em meio à treva. Piscou com força os olhos, procurando ajustá-los ao ambiente para poder enxergar o que estava acontecendo. Apertou as pálpebras uma de encontro à outra, várias vezes, forçando-as contra os olhos, depois abrindo-os e girando-os. Seus olhos doíam.

Não conseguia ver nada.

Apenas pode ouvir uma risada esganiçada e curta, e os mesmos passos claudicantes, que agora se aproximavam.

- Não adianta tentar ver - disse uma voz nas imediações. - Você está cego. Mesmo com a luz acesa, tenho certeza que você não está conseguindo ver nada. É perda de tempo...

Mais passos em falso, afastando-se desta vez. Mais riso. E mais coisas sendo empilhadas. Lenha... tábuas. Sim, os ruídos eram inconfundíveis. Tábuas estavam sendo empilhadas em algum lugar ali perto.

Os olhos doíam.

- Ahhh... - o vampiro tentou se concentrar para sair daquele transe, daquele torpor que o imobilizava e o impedia de usar seus sentidos. Não obteve sucesso. Seu corpo mais parecia uma pilha de carne sem vida. Notou que mal e mal podia mover os dedos.

- Não adianta também ficar tentando se mexer - disse a mesma voz, vinda mais de longe desta vez.

O vampiro reconhecia aquela voz. Tratava-se daquele mesmo homem disforme que o havia abordado na cidade.

- O efeito do... veneno, isso vai durar ainda muitos dias - concluiu o demônio.

- V-v-ve... vene... no? - tentou perguntar o vampiro, percebendo que sua voz, espatifada, cacofônica, refletia o estado moribundo que empestava seu corpo inteiro. Suas mãos, dedos crispados, elevados no ar, pareciam dispostas a agarrar uma brisa que não existia.

- É. Veneno, meu caro. É isso mesmo que você ouviu. Podemos chama-lo desta forma - a voz tentava soar simpática, o que a deixava ainda mais tétrica. Horripilante.

Seus olhos doíam, e os vermes não paravam de escaramuçar o seu estômago. Malditos vermes. MALDITOS!

Desesperado, o vampiro tentou se mexer, enxergar, fazer qualquer coisa. Contudo, seu corpo continuava dando a impressão de ter finalmente reencontrado a morte que por tantos anos havia sido adiada, desejoso inclusive de reconciliar-se com esta.

Se não respira, não vive.

Um ligeiro tremor foi todo o movimento que decorreu de seus esforços; um reflexo de seus nervos... um calafrio inútil percorrendo sua espinha de alto a baixo.

“Veneno, meu caro. É isso mesmo que você ouviu.”

Seus olhos... e os vermes... Malditos vermes.

- Sabe de uma coisa - recomeçou a voz do demônio, encoberto pela penumbra causada pela cegueira. - Sou uma pessoa piedosa, até certo ponto. Além do mais, ficar observando você se debatendo desse jeito...

Os passos mancos voltaram a soar mais alto, mais próximos.

- Acho que fiquei compadecido com a sua bravura - disse, muito perto do ouvido do homem agonizante. Tanto o hálito do demônio quanto seu sotaque irreconhecível recendendo a podridão e morte.

O demônio afastou-se um pouco, ou elevou a cabeça, e riu o seu riso de bruxa velha, deixando o vampiro, tão acostumado com as vezes do predador, absolutamente apavorado perante as terríveis perspectivas de ter se tornado presa.

(continua em Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 4)