A ALMA ARREPENDIDA

Chatô, esse era seu apelido. Não revelarei seu nome porque não convém. Mas garanto que os últimos acontecimentos são por demais incríveis. Tão simples e tão incríveis. Antes, porém, preciso dizer que trabalho com os mortos. Herdei, de meu valoroso pai, um empreendimento mortuário. Sou o proprietário da única funerária de minha pequena cidade. A empresa tem razão social discreta, mas seu nome fantasia é sublimemente interessante: Esquina do Além. A empresa é situada numa angular esquina, no centro da cidade.

Tudo porque fiz uma promessa ao meu preclaro amigo. Como grande parceiro, dei minha palavra que atenderia a seu estranho pedido. A promessa consistia em furar seus os ouvidos e extrair seus olhos quando morresse. No momento em que tomei conhecimento do teor da promessa, adverti-o que não compactuaria com desmedida sandice. Mas ele disse que era para não ouvir nem ver as mazelas do inferno. Inquiri-o sobre a possibilidade de ele ir para o Paraíso. Prontamente, ele argumentou que no Céu não precisaria ouvir ou ver. Sua alma estaria enlevada por condição tão celestial que ouvir ou ver seriam somente detalhes.

E esse dia chegara. Chatô morrera dormindo. Ao raiar do sol, já era cadáver. O doutor Eliseu atestara sua morte. Antônia, viúva de Chatô, me informara o ocorrido por telefone. E prontamente avisara com sua voz lamuriosa: “Ele exigiu, há muito tempo, quando morresse que você viesse vê-lo. Meu marido queria que você, Henrique, arrumasse o corpo para o velório.”

Aparvalhado com a repentina notícia da morte de meu amigo, assenti. Confirmei que ele me revelara aquele pedido, entretanto, não revelei os sádicos detalhes.

“Mas não tenho certeza se deixo você levá-lo. Estou pensando em arrumá-lo aqui mesmo e depois alguns parentes colocarão o corpo no esquife.” – planejou a viúva.

“Respeite o pedido de seu marido, Antônia.” – disse com pesar.

“Não dispomos de dinheiro, Henrique. Já estávamos devendo muito na praça.”

“Não custará nada. Farei porque prometi ao meu amigo que cuidaria de todos os trâmites antes do sepultamento.”

A mulher começou a chorar. Emocionado, também fui às lágrimas. Ela me agradeceu e desligou o telefone.

Tudo correu relativamente bem. Dois empregados da funerária foram à casa da viúva e trouxeram-me o corpo de Chatô. Cumpri minha promessa. Sozinho na sala de arrumação de cadáveres, eu furei os ouvidos com um fino bisturi e retirei os olhos, costurando as pálpebras logo depois. Embevecido pelo renitente pedido de meu amigo, fui além. Retirei-lhe a língua, decepando-a num corte côncavo que se aproximava de maneira bizarra de suas amígdalas. A mesma língua que havia me pedido que fizesse os outros procedimentos post-mortem.

O velório seguiu com sua normal tristeza. O enterro, mais triste, foi rápido, pois chovia muito. Às cinco horas daquela escura tarde, o corpo fora sepultado no cemitério municipal.

E foi naquela mesma noite chuvosa que meu pesadelo começou.

Acordei às quatro horas da manhã com uma luz amarelada no tubo de imagem da televisão. Eu ainda era solteiro e já órfão de pai e mãe. Por estar sozinho, tudo ficou mais assustador.

Ao conseguir focalizar com perfeição, vi que a luz na televisão, que estava desligada, era um mero reflexo. Quando me voltei para a possível origem do facho de luz, vi o espectro de Chatô que refulgia à luz do abajur, emprestando a coloração âmbar à mortiça luz. Sua imagem parecia misturar-se com a pouca claridade do cômodo.

O cenho do morto estava franzido. Os olhos ainda costurados. O fantasma estava virado para a direção da televisão, no meu quarto. Com um pulo, levantei da cama e permaneci ao lado do armário, tentando me esconder. Fitei a coisa, mas ela não me fitava. À penumbra do abajur, vi que ele movera o esquálido pescoço a fim de perscrutar outro ângulo do quarto. Um simples movimento; uma lentidão apavorante.

A aparição retornou por mais cinco noites. Quando aparecia eu a olhava e depois me retirava sorrateiramente. Meu destino era a funerária. Durante esses dias, e noites, não cheguei a um raciocínio lógico sobre a imissão de meu finado amigo em minha residência. Na sexta noite, criei coragem e chamei seu nome. “Chatô” – a voz saíra hesitante. O espírito permaneceu imóvel. Ainda assombrado, segui para a funerária a fim de passar mais uma noite.

Com mais duas noites, embalado pela cotidiana maneira como o espírito regressava, fui ao seu encontro, no canto do quarto. Quando me aproximei horrivelmente perto, Chatô virou-se para mim. O ar me faltou por segundos. O coração disparou insanamente a bater! Ele nada disse, mas suas sobrancelhas arquearam-se, as pálpebras se esticaram, mas não se abriram e ele pareceu vivenciar aquele momento com imensa expectativa. Tinha certeza que ele não me via, nem me ouvia, mas havia notado minha presença.

Subitamente, a alma abriu a boca e mostrou o toco de língua apodrecido que eu havia deixado após extrair a maior parte. Apontou várias vezes para o interior de sua boca. Em seguida, esticou a mão esquerda e, num gesto livre, fez um movimento como se tentasse escrever na carcomida palma de sua mão. Encetou um falar pesado, da qual palavra nenhuma eu logrei entender. Eram murmúrios desconexos; sons ininteligíveis.

Tive medo. Deixei a residência naquele mesmo momento em direção à funerária. Nas noites anteriores, pensara que pudesse ser um jogo de luz, minha imaginação ou mesmo o espírito que somente iria aparecer e depois de um tempo iria desaparecer igualmente como surgira, silenciosamente.

Durante o longo e cansativo dia, entendi o que a alma penada queria. Então, planejei que não iria fugir de minha casa se o espírito de Chatô tornasse a se fazer presente. Seria a primeira noite completa na qual eu permaneceria em minha casa desde as primeiras aparições da alma angustiada.

À primeira hora do novo dia, eu o vi. Avizinhei-me à alma de Chatô e a felicidade pareceu invadi-lo. Emitira aqueles lamentos indecifráveis. Fizera o mesmo gesto com as mãos e apontara para sua arroxeada boca. Prontamente, estendi um bloco de notas e um lápis. A alma penada rabiscou um pequenino texto que continha as seguintes palavras:

“Estou decepcionado, nobre amigo, pois a promessa não consistia em retirar minha língua. Porém também estou profundamente arrependido de tê-lo feito passar por isso. Foste além do que lhe fora solicitado. Assim a culpa é tua. Há uma fila no Paraíso. Uma espécie de reunião com Deus. Todas as almas têm o direito de solicitar a ressuscitação ao corpo. Nas últimas semanas, todos os pedidos foram deferidos. A solicitação deve ter fundamento com sustentação oral. Ache uma língua para mim. A cegueira e a surdez não têm interferência negativa. Pelo contrário, são motivos de solene deferimento. Assombrar-te-ei até encontrares outra língua com a qual possa falar.”

Assombrado, aqui estou a ponderar – seriamente - a extração da língua de algum defunto-cliente da Esquina do Além para entregá-la a Chatô. E não há negociação, pois a alma é surda, muda e cega.

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