A canção de Leonildo

Para Leonardo Nunes Nunes.

Existem mais coisas entre o céu o a terra, Horacio, do que sonha a nossa filosofia. Shakespeare, seu filho da puta; entra neste grupo também Hamlet por ter dito esta maldita frase – que tenho dúvidas se através da pena de William ou se o infeliz tinha vida própria. Eu teria vivido muito bem sem levar este famoso trecho em consideração, sem ao menos saber que ele existia. Mas existe, e eu e meu velho amigo Leonildo sabemos muito bem disso. Se estivesse vivo, Leonildo estaria esbravejando da mesma forma que eu.

Conhecia Leonildo desde pequeno, crescemos juntos, estudamos juntos, e até fomos para a faculdade juntos, embora tenhamos feito cursos diferentes. Depois da faculdade, nossas vidas também seguiram rumos diferentes, mas sempre mantivemos contato. Leonildo sempre foi mais inteligente, e mais criativo; assim, não foi surpresa alguma quando ele tornou-se escritor profissional.

Quando começou, foi de forma despretensiosa, escrevendo contos e publicando-os na internet. Seguiu assim por alguns anos até que seu primeiro romance foi publicado. Foi do anonimato ao estrelato em apenas alguns anos. Era um poucos escritores que conseguia manter a média de um livro por ano, todos sempre liderando as listas de mais vendidos – o que era uma surpresa, levando-se em conta que Leonildo escrevia, pasmem, livros de terror. Este fato também contribuiu para aumentar a sua notoriedade.

Mesmo com toda a fama conquistada, Leonildo não era adepto dos holofotes. Procurou manter o jeito reservado de sempre. Ao menos uma vez por mês nos encontrávamos, como nos velhos tempos, para atualizar os assuntos e jogar conversa fora. Nunca perdemos este hábito.

Depois do seu quinto livro publicado, Leonildo começou a ficar estranho. Não mais nos encontrávamos durante os quatro primeiros meses do ano, período em que ele estava trabalhando em um novo livro. Embora antes isso não o afastasse de mim antes, neste espaço de tempo era como se Leonildo não existisse – era simplesmente impossível encontrá-lo! Somente quando finalmente entregava os originais para a editora é que os encontros voltavam à velha rotina. Eu podia perceber que além de sua aparência física desgastada – o que eu supus ser por conta do ritmo de trabalho –, em nossas conversas ele mostrava-se assustado, algumas vezes disperso. Eu poderia até dizer que algumas vezes ele parecia distante e paranóico. Um dia, em uma de nossas conversas, ele sentenciou-me algo que parece estranho, surreal, e fruto e uma mente perturbada, que provavelmente já não distinguia mais o real da porcaria que ele escrevia. Ele disse:

– Preciso parar de escrever. Eu quero parar de escrever, mas eles não me deixam. Da última vez que tentei, fiquei desmaiado por dois dias no meu quarto. Quando acordei, fui direto para a minha mesa e escrevi sem parar, até terminar o romance. Não quero que eles me peguem novamente.

– Não estou entendendo o que você quer dizer. Quem são eles? – perguntei.

– Você não iria entender, ninguém iria entender. Todos pensam que eu escrevo aqueles livros, mas na verdade, apenas transcrevo aquilo que eles me pedem. Começou de forma inocente, mas agora, tornei-me escravo deles. Eles não me deixam parar.

Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, a conversa foi encerrada. Os olhos do meu velho amigo jorravam cansaço e tristeza. Passei uma semana amargurado por ele.

No verão seguinte, durante o sumiço habitual de Leonildo, fui procurá-lo em sua casa, ignorando os pedidos que ele sempre fazia questão de reforçar quando chegava esta época. Eu estava realmente preocupado com a saúde de meu amigo, além de ter ficado intrigado com a estranha conversa que tivemos semanas antes. Entrei em sua casa sem ao menos bater à porta. Para não correr o risco de ser pego e mal interpretado, fui à noite. Ao entrar na escura sala, enquanto esperava meus olhos adaptarem-se à escuridão, fui surpreendido por uma estranha música; uma mistura de dança húngara com a tristeza que assombra algumas obras de Beethoven. Devo confessar, neste momento, que quase fiquei hipnotizado pela música.

Recuperado do quase transe, dirigi-me ao quarto aonde eu sabia que Leonildo estaria escrevendo. A porta estava aberta, e uma estranha luz violeta saía de dentro do aposento. A música que eu ouvi na sala estava agora em alto volume. Aproximei-me em passos leves, tomando cuidado para não chamar qualquer atenção. Quando cheguei à porta, fui tomado pelo pavor ao ver meu velho e pobre amigo sentado em sua cadeira, digitando alucinadamente no teclado. O ritmo lembrava mais um pianista executando uma obra de Chopin do que um escritor que trabalha as palavras. O mais estranho, se é que isso é possível, não era a velocidade com a qual ele digitava, e sim a sua cabeça, que dançava acompanhando a nefasta música, pendendo para esquerda, direita. Olhar o fundo de seus olhos foi o maior erro que cometi em minha vida. Ao invés de um olho comum, com íris, retina, todo o que havia era uma imensidão azul-esverdeada que parecia mudar de cor acompanhado os graves da música.

Por um tempo, minha presença não foi notada, mas logo ele me viu – ou me ouviu, pois duvido que aqueles olhos fossem capazes de ver qualquer coisa – me chamou, implorando por socorro. Sua voz emanava desespero, um pedido de um moribundo, eu diria. Ao entrar no quarto, senti uma estranha presença, mas não era capaz de ver nada. Senti alguma coisa roçando em minhas pernas, braços, e eventualmente, em minha barriga. Tomado pelo medo, aproximei-me de meu amigo na esperança de tirá-lo dali. Foi inútil, ele parecia pesar toneladas, e seus dedos pareciam magneticamente atraídos para o teclado. Cheguei perto de seu rosto ao vê-lo balbuciando algumas palavras:

– Na minha gaveta... por favor... isso precisa parar...

Abri a gaveta e encontrei um revólver, carregado. Olhei para ele, que suava e tinha sua pele definhada. Eu não tinha certeza do que fazer, mas aqueles olhos, por um momento, pareceram suplicar a ajuda que o libertaria. Não pensei duas vezes – e hoje me pergunto se tomei a decisão correta – e disparei contra sua cabeça. Sangue e miolos atravessaram a parede na mesma hora em que ouvi um grito que torceu a espinha e fez meu cérebro rodopiar duas vezes. A música cessou, e meu amigo, estranhamente, tinha um enorme sorriso em seu rosto.

Hoje, sete anos após este bizarro incidente, ainda ouço aquela estranha música à noite, enquanto meu quarto assume uma estranha coloração violeta. Tenho escrito, algo que jamais imaginei fazer em toda a minha vida, e estou perto de assinar um contrato de publicação com uma grande editora. Não saio mais de casa – não por vontade própria, as portas e janelas, simplesmente, não abrem. A arma usada para libertar Leonildo, que eu tinha certeza que estava comigo, misteriosamente sumiu. Ao contrário de Leonildo, porém, eu não tenho ninguém que possa me visitar enquanto eu estiver escrevendo.