A HERANÇA

Um anjo de asas abertas, cabeça baixa, olhar triste e distante. A estátua cinzenta e marcada pela ação do tempo mantém os braços esticados e apontados para baixo, as mãos espalmadas e unidas seguram um ramo de flores, como se fosse uma oferta de paz e proteção para aquele que busca o descanso eterno aos seus pés.

A lápide resguardada pelo querubim registra os detalhes da curta vida de uma das primeiras vítimas do mistério que há tempos ronda as cercanias daquela terra esquecida. O cemitério local e a pequena igreja são pontos de vital importância para a fé e dedicação dos populares. Por conta disso, até mesmo o monumento funerário erigido em memória daquele recém-nascido, o qual teve a vida tomada sem ter sido banhado nas águas sagradas, ostenta ao seu redor um bem cuidado tapete de cravos amarelos, mesmo sem que nenhum membro de sua família fixe moradia na cidade nos dias atuais.

Diante daquela área arborizada, olhando diretamente para a escultura, estava um homem, cujo filho acabara de sofrer uma das maiores crueldades imagináveis, de acordo com a tradição local. Quando uma pessoa é escolhida para batizar uma criança, esta não fica encarregada apenas de fazer parte de um rito religioso. O padrinho carregará para toda a vida uma responsabilidade comparável ao do próprio pai, no que se refere ao bem-estar do pequeno. Além disso, para aquele povoado, essa pessoa seria um instrumento divino capaz de livrar, através da sua benção, todo tipo de má sorte ou pestilência que possa vir a recair sobre aqueles que iniciam a vida.

Com a missa marcada, os preparativos finalizados, com a criança, pais e padre esperando, o escolhido para padrinho não apareceu. Justo naquele momento, no início da Quaresma, isso foi acontecer. O período entre as Cinzas e a Páscoa caracterizava-se como extremamente difícil, onde a fragilidade da alma fica exposta e o confronto com forças nefastas se torna provável. Deixar um inocente sem a proteção das águas tornava-se, portanto, uma temeridade.

O que o pai poderia fazer? De acordo com o pensamento coletivo, quebrar o acordo firmado e simplesmente trocar de padrinho às vésperas da cerimônia, sem a prerrogativa do escolhido ter sido tocado pelo abraço gélido da morte, poderia trazer tanto infortúnio quanto deixar a criança pagã.

Portanto, só lhe restava a alternativa de colher resquícios da cera derretida pelas chamas sagradas e espalhá-los em cada ponto do local de repouso do filho. Seria preciso resistir à Quaresma, pois não se realizavam cerimônias de batismo durante esse período; proteger o primogênito das sete luas vindouras, porque o demônio caminharia livre durante a noite, e as trevas seriam seu reino; e o mais importante: localizar aquele que traria alívio para a vida da criança.

A lua surgiu como um lamento triste e melancólico. Seus contornos arredondados exibiam uma coloração avermelhada nas bordas, despejando uma iluminação diferente sobre as desertas retas de terra batida do vilarejo. Não existiam muitas vias transversais, era possível contar apenas sete em toda a cidade, as residências postavam-se lateralmente até os limites municipais. Porém, no final de cada uma das chamadas avenidas, encontrávamos um importante marco local: o cemitério, a igreja, a praça, o cartório, o posto policial, a prefeitura e o hospital.

A casa do jovem casal localizava-se numa das encruzilhadas formadas pelo encontro das retas de barro com as vias principais. No interior da residência, uma jovem recém saída da adolescência se balançava numa cadeira de madeira. Nos seus braços, envolto por uma manta azul, estava o precioso tesouro. A primeira vista, a cena lembrava uma menina brincando com sua boneca. Postado à frente da porta, com um cigarro de palha no canto da boca, e com uma velha espingarda no colo, estava o dono da casa.

Um toco de vela queimava ao lado do homem, a chama solitária balançava com a brisa sorrateira que entrava pelas frestas da porta. O silêncio quase absoluto só era quebrado pelo som produzido por alguns animais que circulavam livremente pelos quintais das casas, uma tentativa ousada de persuadir o demônio, levando-o a aplacar sua sede de sangue com a oferta, amenizando, assim, sua ira arrebatadora.

Embora a esperança estivesse fincada como uma âncora no peito daquelas pessoas, a incerteza acerca do futuro cultivava um ferida em seus corações. Imaginar que o apetite da besta não pudesse ser contido com a carne e o sangue de galinhas e porcos doía tanto quanto uma punhalada certeira. E a dor aumentava intensamente perante a possibilidade palpável de que o pequeno e desprotegido ser, que repousava tranqüilamente no colo da mãe, pudesse representar uma tentação irresistível para a fera, afinal, o conhecimento local ensinava que a maciez e a fragilidade de um não batizado atiçavam os instintos da besta de forma incomparável.

As horas se arrastaram como uma procissão para os mortos. O silêncio era total, pois até mesmo os bichos já não se faziam presente. Os olhos do homem estavam vidrados na madeira da porta, enquanto a jovem mãe cochilava embalada pelo ritmo cadenciado da cadeira. No mesmo instante em que ele quase sucumbia a uma espécie de transe, causado pela monotonia, um estrondo sem precedentes se fez ouvir, não só trazendo-o de volta a realidade, como também despertando os outros membros da família.

A barulheira no lado de fora era infernal, definitivamente havia algo de errado. O rapaz se levantou do posto de vigia, conferindo imediatamente o poder de fogo da velha companheira de seu finado pai. Olhou pela fresta, mas nada conseguiu distinguir nas trevas externas. Ouviu passadas ruidosas, como se algo corresse ao redor da casa. O bebê chorava de maneira estridente, a jovem tentava conter o desespero do filho tapando-lhe a boca com a palma da mão. Uma tentativa inútil. Como controlar a situação se ela não conseguia reter as próprias lágrimas?

O demônio estava no telhado. Definitivamente as peculiaridades da maldição haviam guiado o olfato do assassino até ali. A besta rondava toda a extensão da cobertura, talvez estivesse em busca de uma brecha para investir em busca do prêmio. Não havia medo no sangue daquele pai, ele desejava mais do que tudo sair e enfrentar, de peito aberto, o inimigo. Entretanto, ele sabia que não poderia deixar as duas pessoas mais importantes da sua vida entregues à própria sorte.

Um novo estrondo foi ouvido. A manifestação mudara de cenário, a porta da cozinha estava sendo forçada. Parecia que o demônio entendia que ali as trancas apresentavam mais sinais de fraqueza. Decidido, o homem partiu para o encontro definitivo, só um sairia vitorioso do inevitável embate.

A folha de madeira tremia com as investidas do demônio, o choro da criança parecia deixá-lo descontrolado. As pancadas eram cada vez mais fortes, seria questão de tempo até que a porta cedesse. O cano da espingarda apontava diretamente para o vão lacrado, não haveria espaço para hesitação. Na primeira chance, o chumbo desbravaria caminhos tortuosos através do couro maldito daquele ser.

Após um breve intervalo, onde a expectativa e a apreensão mesclaram-se num só corpo, um violento choque abriu um grande buraco na superfície lisa e envernizada. Através da abertura era possível perceber a escuridão absoluta e perturbadora da noite, mas as trevas não traziam tanto incômodo quanto a respiração pesada e ruidosa do intruso.

O homem tentava a todo custo manter a serenidade perante o ataque iminente, entretanto sua determinação fraquejou quando uma órbita amarelada e fria investigou o interior da casa através do ferimento da porta. Sem que percebesse, o nervosismo justificado acionou o gatilho, liberando o poder de fogo contra o olhar faminto da besta.

O projétil não atingiu plenamente o alvo, pelo contrário, colaborou para que mais estilhaços de madeira voassem pelo ar. Para assombro do atirador, um braço de aparência inacreditável lançava-se através da recém aumentada abertura. O membro apresentava uma coloração escura e lustrosa na pele, a qual era revestida por uma pelagem rala e eriçada. A mão de proporções anormais não diferenciava muito dos contornos humanos, a não ser, claro, pelo tamanho e pelas unhas convertidas em garras negras e curvas, as quais cravavam-se na superfície amadeirada, arrancando pedaços e abrindo caminho.

Os antigos afirmavam que derramar sangue impuro nos domínios do próprio lar significava a certeza de infortúnios na vida, mas aquele homem não pensou duas vezes. Envergou mais uma vez o ferro curvo do gatilho, liberando uma nova carga contra o invasor. Desta vez o tiro se mostrou certeiro, um jato extremamente rubro e brilhante voou pelo ar, deixando um rastro no assoalho da cozinha. O urro emitido pelo demônio fora medonho, mas ainda assim o atirador deixou escapar um sorriso de satisfação, afinal, o maldito sentia dor, poderia ser morto.

Gotas amaldiçoadas se espalhavam pelo chão e paredes. Ter de queimar a casa e despejar sal na terra seria um ato que traria satisfação ao invés de pesar àquela altura. Ele faria tudo de bom grado, se em troca pudesse ver as chamas consumirem a carcaça derrotada da criatura.

Mas o maldito não se entregaria fácil. A dor injetava ira em suas veias, e a ira se convertia em força. Uma nova e decisiva investida pôs a porta abaixo, revelando de uma só vez os contornos demoníacos do ser.

O sangue dos animais mortos escorria pela mandíbula escancarada, um aperitivo que não havia saciado a voracidade do seu apetite. O desejo pelo protegido do homem extrapolava a plenitude que qualquer outra refeição poderia lhe proporcionar. Ele sentia fome, ansiava pela carne inocente, mataria todos aqueles que tentassem interferir contra esse objetivo.

O jovem pai era habilidoso, manuseava como ninguém a espingarda de caça. Efetuou dois disparos contra a criatura, que cambaleou e foi ao chão. Rapidamente a arma se mostrava recarregada, duas novas chances de acabar definitivamente com a besta.

O corpo esguio do ser era perfurado, o sangue maldito manchava cada parte do ambiente. Entretanto, inacreditavelmente, ele continuava vivo, pior do que isso, se mostrava mais forte, como se a repetição dos golpes tivesse lhe proporcionado uma espécie de imunidade. O veneno do metal já não ardia tanto em seu corpo, nada poderia contê-lo agora.

O desespero do rapaz ficou evidente com a constatação do fim da munição. Com as duas mãos no cano da espingarda, investiu contra o demônio, tentando golpeá-lo com o cabo da arma. A fera parecia sorrir. Facilmente se desvencilhou do golpe, para em seguida cravar os ganchos negros nas costas do inimigo. O homem vertia lágrimas, não por ele, mas pela possibilidade irremediável que estava por vir, a qual ele se mostrara incapaz de evitar.

A besta envolveu o frágil pescoço com sua mandíbula. Em seguida, começou a pressionar lentamente, fazendo com que seus afiados dentes penetrassem na pele do homem, rompendo vagarosamente tecidos e músculos, como se quisesse proporcionar a maior dor possível ao valoroso oponente. Com um movimento rápido, arrancou um grande pedaço de carne, deixando o corpo sem vida cair no chão.

Vitorioso ele inspirou fortemente o ar, sentindo o cheiro de sua presa. Caminhou sobre duas patas até o próximo cômodo, o som do choro de mãe e filho denunciavam o esconderijo. Os olhos da besta brilhavam, ao passo que os da garota pareciam querer explodir. Ela escondeu o rosto e abraçou o pequeno, iniciando uma oração.

A demora do ataque lhe causou uma certa apreensão, sensação não tão intensa quanto a surpresa que a dominou ao ouvir um urro que pôs fim ao silêncio reinante. A jovem abriu os olhos e não pôde acreditar no que via: a fera rolava pelo chão, estava mortalmente ferida. Um homem surgiu em meio as trevas, ergueu um machado e decapitou a criatura com um só golpe. A lâmina virgem da ferramenta gotejava o líquido impuro.

O padrinho desaparecido ressurgia. A mulher, ainda sem acreditar, agradecia aos céus por aquele homem ter aparecido para cumprir sua missão, que era proteger a vida e zelar pelo bem-estar do afilhado. De fato, não haveria um melhor momento para esse retorno.

Imediatamente, ambos olharam para o demônio derrotado, este já não exibia contornos bestiais. O ser que jazia sobre um tapete de pêlos caídos era um homem. Seu algoz se aproximou, a expressão formada no rosto suado denunciava que o velho decapitado era um conhecido.

O padrinho o havia encontrado pela manhã, horas antes do batizado. Na verdade, aquele velho fora o responsável pela sua ausência na cerimônia. O encontro dos dois fora casual, num vilarejo vizinho, onde o escolhido fora buscar as vestes que havia encomendado para a ocasião. O velho estava recostado numa árvore, ostentava um traje elegante. Uma chamativa corrente de ouro lhe enfeitava o pulso, combinando perfeitamente com o relógio fino.

Tossindo muito, o velho chamou por ele, que prontamente atendeu. Retirando o chapéu que lhe protegia do sol, ele pegou na mão do rapaz e lhe explicou que estava às vésperas da morte, e que não possuía nenhum parente vivo para herdar o que lhe pertencia. O jovem achou estranho, mas continuou ouvindo. Dando a entender que procurava um herdeiro, o velho perguntou com uma voz decidida: “Você quer?”. Movido pela ambição, o rapaz nem cogitou a hipótese de recusar.

Então, o velho se levantou, virou-se para ele e disse: “Você vai receber, em breve”. Em seguida desapareceu pelas ruelas locais. A princípio, o jovem imaginou que a loucura havia dominado a mente daquele homem. Mas, de maneira estranha, começou a se sentir mal, uma ardência corroía seu estômago, ele deixou cair o pacote com as roupas e partiu para um matagal ao lado da via, onde corria um riacho. Ele se ajoelhou na margem, mergulhou as mãos e jogou a água no rosto. Antes de perder os sentidos, se sentiu confuso por não reconhecer o próprio rosto refletido no espelho d’água.

A noite já espalhava seu manto quando acordou. O incômodo havia desaparecido, mas um sentimento de urgência lhe consumia. Ele havia perdido a cerimônia, consequentemente a criança continuava pagã, justamente quando o período difícil se iniciava. Assim, ele chegou até a casa dos compadres, uma voz em sua cabeça lhe dizia para levar uma lâmina que nunca havia cortado madeira.

Com o velho morto aos seus pés, finalmente pôde perceber o quanto ingênuo havia sido. Um ensinamento da falecida avó lhe invadia a mente. Ela costumava dizer que nada vem de graça, uma oferta de aparente bom grado pode esconder más intenções. Infelizmente a ganância o havia cegado, o que levou o conselho a permanecer oculto naquela ocasião. Agora, o real desejo do velho ficava evidente, assim como o conteúdo de sua herança. Um fardo que ele havia aceitado carregar de livre e espontânea vontade. Como resultado, só restava a ele se conformar até chegar a sua vez de passar adiante o legado maldito.

A ardência voltava com mais intensidade, seria questão de tempo até o início da mudança definitiva em sua vida. Antes de perder completamente a sanidade, ele olhou para a confusa garota e disse: “Comadre, fuja daqui!”

*Esse conto foi elaborado de acordo com o folclore brasileiro, conforme indicação do amigo Igor Balestra.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 15/01/2010
Reeditado em 15/01/2010
Código do texto: T2031018
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