VODOO

Desconfiou que estava sendo traída quando Antônio, o marido, começou a chegar a casa tarde da noite, sob o protexto de ter trabalhando até tarde na empresa. Mas não era mulher de escândalos, tinha classe. Guardava cuidadosamente no fundo do coração cada detalhe da pretensa traição, enquanto por fora continuava impassível, a tranquila e amorosa esposa de sempre.

- Querida, esta noite terei que fazer serão, não me espere para jantar - dizia Antônio.

- Claro, meu amor. Mas não chegue muito tarde, o centro da cidade é muito perigoso após certa hora - respondia a Dilce aparente.

- Pois sim! Pensa que me engana, seu cachorro... Você está é de caso com alguma vadia. Mas eu ainda vou descobrir quem é ela, ah se vou!... - era o que pensava a verdadeira Dilce.

Estavam casados há dez anos, e os dias de romantismo ficaram para trás há tempos, mas Dilce, apesar do seu jeito dúbio, amava de fato o marido. Na superfície, era a dona de casa perfeita, a mulher segura e comedida, que fora educada para isso e cumpria à risca o seu papel. O seu interior, entretanto, era um campo minado, pronto para explodir a qualquer momento.

Naquele dia, depois que Antônio saiu e as crianças foram para a escola, Dilce resolveu dar uma volta para espairecer, pensar em como deveria agir diante daquela ameaça à sua vida matrimonial. Era uma mulher inteligente, formada em Direito, mas que não exercera a profissão para cuidar da família. Aquela situação para ela era um desafio, jamais admitiria que algo assim acontecesse, mas tinha hojeriza à discussões e bate-bocas, precisava pensar bem no que iria fazer para não se arrepender depois.

Estava tão distraída ao sair de casa que, ao invés de se dirigir pelo habitual caminho, tomou a direção contrária. Quando deu por si estava andando numa parte desconhecida da sua própria rua, um lugar pelo qual nunca antes passara, esquisito e com casas decadentes e mal cuidadas, muito diferente da parte da rua onde morava. Parecia um outro bairro, e no entanto estava a apenas algumas quadras da sua casa.

Já começava a voltar por onde veio, quando algo chamou-lhe a atenção: uma faixa colocada no pequeno muro que um dia já fora branco dizia:

Mãe Inácia - fazemos trabalhos de bruxaria, resultados garantidos.

Ficou parada por instantes, curiosidade aguçada. Mulheres sempre se sentem atraídas diante do sobrenatural. Olhou para os lados e não viu ninguém. Certamente suas amigas também não frequentavam aquela parte pobre da rua. Deu dois passos na direção da casa, depois parou, indecisa. Fez meia volta e já retornava por onde viera, quando uma voz soprou-lhe no ouvido:

- Mas ele tem uma amante.

A sensação de ter ouvido realmente aquela voz foi tão impactante que soltou um grito abafado de surpresa.

- Meu Deus, estou ficando louca!... - pensou.

Não conseguiu resistir: encaminhou-se a passos rápidos e passou pelo portão enferrujado, antes que a razão a fizesse desistir novamente.

Tudo ali era velho e mal-cuidado: o amplo jardim parecia abandonado, a varanda suja e cheia de buracos no teto, a porta pesada e com a pintura descascada. Ficou pensando que tipo de pessoa moraria num lugar como aquele, e chegou a uma única conclusão: uma bruxa.

Suspendeu a mão para tocar a campainha, mas, para sua surpresa, a porta se abriu repentinamente e ela ficou frente a frente com uma velha de sessenta anos presumíveis, usando um vestido branco e um turbante que escondia a cabeça raspada.

- Desculpe... - balbuciou - Eu... Puxa, que susto a senhora me deu!... Podemos conversar um pouco?

A velha olhou-a de cima a baixo e fez um sinal para que entrasse. Atravessou uma sala escura e cheirando a mofo e encaminhou-se para um cubículo, que parecia ser uma espécie de escritório. Apontou para uma cadeira cuja perna era maior que a outra, fazendo com que Dilce ficasse o tempo todo preocupando-se em não levar um tombo.

- De modos que ele tem outra... - disse a velha, para sua surpresa.

- Como... Você sabe?...

A velha riu, mostrando seus dentes amarelados.

- Só existem dois assuntos que trazem mulheres como você até aqui, madame. Um é dinheiro, o que não me parece ser o seu caso. O outro é homem.

Depois de um minuto de silêncio, Dilce resolveu falar:

- Sim, é verdade, ele tem outra, e eu não suporto essa ideia.

- Sabe o que quer fazer?

- Como assim?...

A bruxa levantou-se até ficar face a face com ela. Tinha bafo de cachaça, e ainda eram nove horas da manhã.

- Algumas vezes, a mulher vem até mim para dar uma lição no seu homem: fazer com que ele seja abandonado pela amante, fazer com que ele fique broxa, sofra um acidente leve, essas coisas do amor... - sorriu debochadamente - Outras vezes, isso não é o suficiente para satisfazê-las, então elas querem algo mais...

Aquele modo de frisar algo mais a deixou toda arrepiada.

- N-não, por favor, nada disso. É somente uma pequena vingança, nada mais...

Ela pareceu desapontada com a resposta de Dilce. Disse simplesmente:

-Ah...

E tornou a sentar-se.

- Você me trouxe algo pessoal dele? - perguntou.

A esposa pensou e por fim retirou um lenço de dentro da bolsa.

- Ele me emprestou esse lenço na última vez quer saímos para jantar, e eu ainda não o devolvi.

Ela agarrou de um bote o pequeno pedaço de tecido xadrez.

- Ótimo, ótimo. Vai servir perfeitamente. Espere aqui.

Saiu da saleta e retornou quase quinze minutos depois. Trazia algo nas mãos.

- Isso vai te custar cem reais. Não costumo cobrar preço tão camarada, mas acontece que hoje eu quero me divertir.

Estendeu o objeto para ela, que ao recebê-lo nas mãos percebeu tratar-se deu um boneco.

- Mas... É um boneco!...

- Sim, querida, mas não é um boneco qualquer! Você verá que o que fizer a este boneco, acontecerá ao seu homem também...

Dilce ouviu aquilo fascinada.

- Vodoo? É um boneco vodoo?...

Ela riu, contente consigo mesma:

- Sim, é um boneco vodoo. Mas lembre-se, você tem que tomar muito cuidado com ele. E sobretudo, nunca espete a cabeça ou o coração, senão seu homem morrerá.

E sorriu mais uma vez, como a frisar que, decididamente, bruxaria era um negócio muito divertido...

*

Entrou em casa ansiosa e foi recebida com alegria por Xana, sua cadela, que não parava de pular ao seu redor.

- Não, Xana, agora não. Tenho muita coisa para fazer, mais tarde brinco com você.

A cadela pareceu não aceitar muito bem e Dilce precisou ser mais incisiva, ameaçando-a com o pé. Só então Xana desistiu de ter a atenção da dona.

Entrou no quarto e trancou-se, colocando o pequeno boneco vodoo em cima da cama. Era uma coisa bem tosca, que tentava imitar um corpo humano, parecia mais aquelas antigas bonecas de pano dos tempos da vovó. Será que funcionava?...

Pegou uma agulha dentro da cômoda e espetou suavemente no lado direito do pescoço do boneco, tornando a guardá-lo dentro da bolsa. Precisava ter certeza de que os cem reais foram bem empregados.

Quando Antônio retornou, horas depois, ela já o esperava:

- Mas já, querido?... Você não ia fazer serão?...

- Pois é, Dilce... Eu não estou me sentindo muito bem.

- O que aconteceu?

- Não sei, parece um torcicolo. Devo ter dormido de mau jeito essa noite.

- Funciona!... - Dilce mal se conteve de tanta satisfação - Agora nós vamos ver se você vai continuar a se divertir por aí com as suas vadias...

A partir daquele dia, a saúde do marido começou a passar por momentos delicados. Primeiro foi a perna direita que, de repente, ficou inchada. Em seguida foi a vez do braço esquerdo, que começou a ficar dormente, não permitindo um simples gesto como pegar um garfo para se alimentar. O estômago então, nem se fala, começou a colocar para fora tudo o que ele ingeria. Mas pior mesmo foi o desarranjo intestinal que o acometeu por mais de duas semanas. Não tinha hora nem lugar para acontecer, parecia que Antônio havia tomado uma cartela inteira de laxante de uma só vez. Chegou em casa por dias seguidos malcheiroso e envergonhado, o pessoal do escritório o havia apelidado de caganeira ambulante e ele teve que pedir alguns dias de licença do trabalho, de tanta vergonha que passou. E nenhum médico jamais conseguiu descobrir o que ocasionara tal anomalia estomacal.

Dilce estava muito feliz com sua pequena vingança. Os serões acabaram e ela tinha o marido só para si. Duvidava que alguma amante ainda iria querer algo com um homem que todos chamavam de caganeira ambulante!...

Antônio, por sua vez, era só atenção e carinho para a esposa, afinal, ela o estava tratando com tanta dedicação que a velha chama do amor parecia ter renascido das cinzas. Era meu bem para cá, meu amor para lá... Há muitos anos Dilce não era tão paparicada pelo marido, e ela estava adorando tudo aquilo. Decidiu então que estava na hora de se livrar daquele boneco, estava satisfeita com o rumo que as coisas haviam tomado e não precisava mais dele. Sentia que tinha as rédeas da sua vida novamente na palma da mão.

*

Dessa vez não foi por acaso que tomou a direção do fim da rua, tão logo Antônio voltou a trabalhar e as crianças saíram para a escola. Novamente ficou cara a cara com aquela mulher que lhe provocava calafrios, mas era a única que poderia dizer como fazer para se livrar com segurança do boneco vodoo.

- Então você quer se livrar dele... - Mãe Inácia parecia um tanto quanto decepcionada com sua cliente. Ela olhou a interlocutora com profundo desprezo.

- Eu deveria ter sabido. Madames são todas iguais, não têm coragem de levar a vingança até as últimas consequências... Fique sabendo que ele pode estar bonzinho agora, mas nada o impedirá de fazer novamente.

Dilce sustentou o olhar da bruxa, mesmo morrendo de medo.

- Correrei o risco.

- Sinto muito, não tenho boas notícias para você. Acontece que esse feitiço não pode ser desfeito.

Dilce desesperou-se:

- Como assim não pode ser desfeito?... Você tem que desfazer, eu não quero mais o boneco!

- Lamento por você, filha. Deveria ter se certificado das regras antes de assinar o contrato. É assim que as coisas funcionam. Você terá de cuidar para que nada aconteça a ele ou seu homem sairá prejudicado.

- Mas... Você não me contou isso! Eu jamais teria concordado se soubesse que não poderia ser desfeito!...

- Tarde demais, filha. Deveria conhecer o negócio antes de se meter nele. Não percebeu que o preço era barato demais? Há sempre um resíduo a ser pago... - a bruxa levantou-se e encaminhou-se na direção da porta - Mas não se preocupe, é só ter cuidado com o boneco, ele pode durar a vida inteira...

A última coisa que Dilce ouviu, ao sair daquela casa, foi a gargalhada da velha, que a perseguiria durante anos, até a hora da sua morte.

*

Estava arrasada, percebendo que se tornara escrava da bruxaria que a libertara. Pensou em destruir o boneco, mas desistiu ao lembrar-se do que ele provocara no marido. Decidiu comprar uma caixa resistente e trancar o boneco lá dentro, de modo que ninguém nunca colocasse os olhos nele.

E assim procedeu.

Os meses foram passando, transformando-se em anos e a vida retomou seu curso normal. Às vezes Dilce se lembrava da bruxa e corria para o porão, onde escondera a caixa com o boneco, somente para se tranquilizar de que tudo estava bem. Antônio nunca mais dera motivos de desconfiança, as crianças cresciam saudáveis e tudo corria dentro da rotina segura e agradável da família de classe média.

Foi quando aconteceu.

Era uma manhã de primavera, calma e ensolarada. Levantou-se, cumpriu toda a rotina de dona de casa: despediu-se do marido, mandou as crianças para a escola e preparava-se para tomar banho quando avistou Mãe Inácia do outro lado da rua, olhando fixamente na direção da casa. Fechou a cortina, coração acelerado. O que será que ela queria ali, tantos anos depois do último encontro que tiveram?...

Tornou a espreitar pela fresta do vidro, lá estava ela, mais magra, pele amarela, mas com o mesmo sorriso sarcástico no canto dos lábios. A velha bruxa apontou o dedo em sua direção, era como se a enxergasse, e deu a gargalhada que tanto apavorara Dilce pelos anos afora. Depois virou as costas e caminhou em direção ao final da rua sem se voltar.

- O que terá sido isso?... - pensou Dilce, preocupada.

Correu para o porão, abriu a caixa e suspirou aliviada ao ver que o boneco continuava em perfeito estado. Sentou-se no chão empoeirado, olhando a figura amarelada, quase infantil, que a fitava com olhos vazios.

- Deus, eu não deveria ter feito isso!... - lamentou-se.

Ouviu a porta da casa bater e passos andando pela cozinha. Subiu as escadas correndo e deparou-se com Antônio.

- Querida, onde você estava?...

- Ah, eu... Estava fazendo uma limpeza no porão. E você, o que aconteceu? Não deveria estar no escritório?...

- Eu esqueci de levar uns documentos, não posso passar sem eles hoje. Mas já estou saindo novamente, até à noite.

Beijou-lhe rapidamente os lábios e tornou a sair.

Dilce encaminhou-se para o banheiro. Estava suja por ter sentado no chão imundo do porão, precisava realmente fazer uma limpeza ali. Despiu-se lentamente, ainda preocupada com a aparição da bruxa no seu portão. Ligou o chuveiro e começou a se ensaboar, tentando entender o significado daquilo.

De repente, parou:

- O boneco! Esqueci de colocá-lo de volta na caixa...

Saiu como um raio do banheiro, molhando toda a casa e parou ao perceber que a porta do porão estava aberta: na pressa, esquecera de fechá-la também! Atravessou a cozinha de um salto e desceu apressada as escadas. Sentiu um frio na espinha ao deparar-se com a caixa virada no chão... Vazia.

- Meu Deus, o boneco, onde está o boneco?...

Começou a revirar o porão, jogando tudo o que via à sua frente, em busca do maldito boneco, sem encontrá-lo.

- Cadê você, vamos, apareça!...

Completamente desesperada, teve a atenção atraída por um ruído atrás da escada que subia para a cozinha. Pegou um pedaço de madeira e aproximou-se na ponta dos pés, tentando não fazer barulho. Quando conseguiu ver o que era, sua expressão suavizou-se:

- Xana!... Você quase me mata do coração...

A cadela abanou o rabo, mas parecia muito ocupada despedaçando algo entre os dentes.

- O que é isso que você...

Dilce não conseguiu terminar a frase: um grito horripilante saiu da sua garganta, assim que conseguiu vislumbrar, entre as patas da cadela, a figura destroçada de um boneco de tecido.