O PREÇO DE UM DESEJO

Seu olhar buscava o horizonte, examinava com estranho interesse os tons púrpuras que se espalhavam ao longo daquela linha inatingível. Talvez desejasse que sua própria alma fosse preenchida por uma fração das magnéticas cores que por ali se apresentavam.

Ele já não tinha forças, nem ânimo, para se levantar da cama. Até mesmo atos simples e corriqueiros lhe causavam uma insuportável dor devido ao esforço que precisava fazer. Entretanto, ele sabia que tais atribulações resultavam muito mais dos tormentos de sua mente do que das mazelas físicas.

O preço a ser pago por determinadas escolhas só fica de fato evidente quando os credores resolvem reclamar por seus direitos. Ele sabia que precisava se resignar, mas era difícil e até mesmo assustador pensar acerca de um futuro próximo e inevitável.

Uma certeza cada vez maior lhe assombrava, sentia-se cada vez mais convicto de que as aquisições que conseguira não compensavam o valor que teria de pagar no fim de tudo. Mas não havia chance para arrependimento, não havia possibilidade de retorno. Ele desejava morrer, mas sabia que isso seria impossível...

Se ele pudesse voltar no tempo, nunca teria cruzado o encontro das quatro vias naquele horário infeliz. Não teria se ajoelhado sob a luz da lua plena e chamado por aquele nome maldito. Jamais teria oferecido de bom grado o próprio sangue...

Ele queria esquecer os contornos daquela criatura, a qual chegara sorrateira e ameaçadora, escondida nas trevas da madrugada morta. A julgar pela aparência, o ser se assemelhava a uma ave, de plumagem, olhos, bico e patas negras, tão escuras quando as vibrações que sentia ao encará-la. Entretanto, ele tinha plena certeza de que aquilo diante de seus olhos não era uma ave, nem ao menos um outro ser vivo pertencente a esse mundo. Aquela criatura, que parecia exibir um sorriso debochado, apenas imitava uma imagem familiar a esse plano. Ela vinha de muito longe, atendendo a um chamado, com um propósito definido.

O animal emplumado parecia indicar uma direção, ele olhava fixamente para um ponto da encruzilhada. O homem, ainda que preenchido pelo mais absoluto pavor, não se intimidou com a situação e seguiu até o ponto sugerido. A ânsia de encontrar o tão desejado prêmio parecia verter de seus poros. Após vasculhar um amontoado de ossos, ele não pôde conter a satisfação ao constatar que seus apelos haviam sido atendidos. Finalmente ele o tinha nas mãos. As chamas que se acenderam com o toque de seus dedos não deixavam margem para dúvidas. Ele gargalhou naquela madrugada, com uma expressão enlouquecida no olhar e labaredas rubras nas mãos. Um ardor que não o atingia no corpo, mas que em breve viria a consumir sua alma.

- Arrependido, meu senhor?

A voz arrastada e sibilante quebrara subitamente o transe no qual ele havia mergulhado com a ajuda das lembranças distantes.

- Você sabe muito bem que minha alma não comporta espaço para tais sentimentos.

As palavras do velho foram proferidas com indignação e uma pontada de ímpeto, algo incompatível com sua atual situação, fato que não deixava de ser surpreendente.

- O senhor me parece preocupado. Seria com a chegada da hora?

O homem levou com dificuldades a mão enrugada até a altura do próprio peito, local de onde se originava a voz irritante e irônica.

- Cale-se! Você não faz a menor idéia do que é esperar por algo imensurável e inevitável.

Enquanto falava, o velho tinha sua fisionomia alterada por contornos ameaçadores, um vermelho intenso se apoderou dos seus olhos, um tom que se assemelhava, naquele instante, ao brilho emanado por algo na altura de seu tórax.

- Ah! Eu sei sim, meu senhor. Sei bem como é isso. O mestre se esqueceu de que eu o acompanhei ao longo dessas quinze décadas? Que o enchi de ouro, prata e pedras de valor enquanto o senhor me alimentava com o sangue de inocentes? O senhor me desejou! O senhor pediu por mim! Abriu mão do que lhe era mais precioso em troca daquilo que eu poderia oferecer. Não se esqueça, mestre, que o senhor cuidou de mim desde que eu rompi a casca chamejante daquele ovo.

- Não, eu não quero! Não posso deixar tudo assim.

- Sim, meu senhor, sim! A troca foi justa! Tão logo o mestre verta as primeiras lágrimas em cento e cinqüenta anos, o acordo será finalizado, sua parte será paga e seu destino selado de uma vez por todas.

O ser de coloração avermelhada e dimensões reduzidas, enclausurado numa prisão de vidro presa por um cordão de ouro ao pescoço do homem, falava com determinação, sem o menor pudor em demonstrar sua satisfação perante a danação do seu senhor.

- Nunca, demônio! Jamais, maldito! Eu acabo com tudo isso antes de derramar uma única lágrima.

Tomado por uma força inexplicável, o velho abriu a gaveta da mesa de cabeceira e retirou um revólver cromado. Em seguida, arrancou o cordão de ouro do pescoço e arremessou a garrafa contra a parede, reduzindo a cacos o invólucro de vidro no qual estava aprisionado o ser que o enchera de riquezas ao longo de muitos anos. Ainda tomado pelo desespero, ele encostou o cano da arma contra a própria cabeça, e antes de apertar o gatilho e acabar de vez com a própria vida, gritou para o pequeno demônio largado no chão.

- Fim de trato, infeliz! Dessa forma, ninguém, ninguém ficará com o meu tesouro, ele desaparecerá com a minha vida, e minha alma vagará para sempre no abismo entre os mundos.

Um estrondoso estampido se fez ouvir, o líquido escarlate manchou os lençóis de tecido fino.

Diante do inevitável fim, o velho pouco ligava para o destino de sua alma. Para ele, a maior das preocupações se resumia em saber que seu inestimável tesouro acabaria nas mãos de outras pessoas, e isso, para ele, era inadmissível. De acordo com seu pensamento, com o não pagamento de sua parte no acordo, as riquezas que recebera em troca também se perderiam, sem que ninguém jamais pudesse tocá-las, e isso era tudo que ele queria.

Ele só não podia imaginar que mesmo depois de morto, seus olhos, que só tiveram interesse pelo ouro por várias décadas, foram, no último instante, incapazes de conter as tão temidas lágrimas. O demônio guinchava, grunhia, vociferava palavras desconexas. Ele havia terminado sua missão, agora queimaria em tormento eterno nas chamas das profundezas. Mas, ainda assim, vibrava ao perceber que a luz vital de seu antigo senhor rodopiava no ar. Logo, ela seria compactada e envolvida pela casca de um ovo incandescente. Em pouco tempo seria solicitada em um pacto e renasceria no corpo de um novo e diminuto demônio. Seria alimentada com sangue fresco e traria fortuna em troca da alma do seu mestre.

Então, assistiria com prazer a angústia do seu senhor ao ver desaparecer toda a sua riqueza.

Como acontecia naquele instante com a alma do velho, que sentia em desespero as intenções daquelas pessoas que invadiam sua mansão desprotegida, movidas pelos sentimentos tão familiares, os quais ele havia conhecido tão bem.

* Henry Evaristo, você se foi, mas tenho certeza de que continuará a nos soprar inspiração...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/02/2010
Reeditado em 18/02/2010
Código do texto: T2094111
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