O PREGO ASSASSINO

Nunca confie em pregos. Um dia eles podem querer se vingar.

O prego em questão não tem muita coisa em especial. Talvez seu espírito rancoroso, e seu ódio descarado, muito bem disfarçado por alguém que não tem como expressar seus sentimentos, nem que sejam tão podres quanto ao que aquele prego sentia.

Sua história é como a de qualquer prego. Comprado em sacos de meio quilo, e perambulando de parede em parede. Aquele, o específico, o que talvez estivesse possuído pelo demônio andou em muitas paredes. Na sala, na cozinha, e por fim no quarto. A cada viagem, mais ódio ele nutria por Dona Etelvina.

Não que a velha beata fosse alguém uma pessoa má. Pelo contrário, gastava as merrecas da pensão e da aposentadoria, e sempre deixava um pouquinho para contribuir com o sopão dos pobres nas noites de sexta-feira. Eu mesmo se acreditasse em santos diria que ela estaria neste rol.

Mas para o prego, uma inimiga voraz tinha cruzado seu caminho. Confesso inclusive, que tinha muitas afinidades com aquele prego. Talvez não chegasse ao ponto que ele chegou. Assim é a natureza, uns são mais covardes que os outros. Aquele prego não tinha nada de covarde. Então azar de seus inimigos.

Coisa ruim como aquele prego não se compadecem nem mesmo com velhinhas como Dona Etelvina. Sopa pra os pobres, os sete filhos adotados, as gorjetas para os garçons, e nem mesmo sua cordialidade para os rapazes serviam para amenizar o ódio daquele prego por ela.

Ela por sinal, nunca desconfiou de tanta animosidade. Seu inimigo era desconhecido. Pelo contrário, tinha nele um grande aliado, pendurando seus santos pelos cômodos da casa apertada. Logo os santos, motivo de tanto ódio daquele prego por ela. Antes ela o tivesse colocado para segurar vasos de samambaias.

Era quase meia noite quando ela entrou, passou as três trincas e a chave na porta. Afinal o mundo hoje está perigoso. Ela era velha, mas nunca desprevenida. Como de hábito, nas noites de sopão, abortou o banho. Entrou no quarto, vestiu sua camisola, e foi até o banheiro depositar sua dentadura num copo onde passaria banhando-se a noite inteira.

Realizadas toda higiene, que não vem ao caso comentar, tamanho escrota era a cena. Não é bonito ver uma velhinha pelada. Por isso fechei os olhos. Com o som da descarga, abri-os novamente para acompanhar seu trajeto até o bidê ao lado direito da cama.

Duvido senhora mais devota que Dona Etelvina. Nunca vi tanta variedade de santos como na casa dela. No bidê iluminado por um par de velas estava a imagem de Santo Antonio. Seria uma depravada Dona Etelvina? Queria ela ainda um casamento? Não pude ouvir sua oração.

Do alto da parede, bem no centro da cabeceira da cama firmando um quadro de Santo Expedito o prego observa-a. Se tivesse dentes estariam cerrados. Ele estava decido. Daria um fim àquela guerra fria. Seus nervos não eram de aço. Ou eram?

Um sopro apagou as velas.

A cama estava tão macia quanto na outras noites. As pálpebras enrugadas cobriram as órbitas oculares. Pelo menos em seus sonhos, ela podia encontrar-se com o falecido Adroaldo, seu falecido esposo. Mal sabia ela que aquela noite seria a ultima sem ele.

Apenas os mosquitos cruzavam o ar quente no quarto de forro baixo, como esquadrilhas norte-americanas de ataque. A pele da velha tava tão enrustida que não sentia os insetos sugarem seu sangue. Na parede de reboco frágil o prego dançava um estranho balé. Girava em círculos. Forçava fazendo pressão, como fazem as mães ao parirem. Rodopiava. E girava de novo. Precisava abrir espaço pelo buraco.

Ele suava em bicas. Tinha ânsia pela liberdade. E faltava pouco para o relógio despertar quando o prego finalmente alcançou seu objetivo. Literalmente foi cuspido sobre a cama.

Era um quadro pesado o que segurava. Madeira de boa qualidade. Talvez por isso tanta raiva de Dona Etelvina. Não posso acreditar que fosse apenas pelos santos. O fato é que o quadro era bem pesado, e sem as agarras do prego caiu bem na testa de Etelvina. Algum ruim sem dúvida, mas que não causaria dano maior que um galo.

Para o que aconteceu depois, não peço a compreensão de vocês. Eu mesmo não conseguiria compreender, ou até mesmo explicar. É sobrenatural. E não há explicação para o sobrenatural. O fato é que o prego ergueu-se. De que forma? Não pergunte-me como. Ele, movido por toda raiva começou a perfurar a carne daquela pobre senhora que gritava como um porco diante o matadouro. Ele só parou quando ele não emitia mais qualquer sinal de vida.

Já era de manhã quando a polícia descobriu o corpo deformado sobre a cama. Graças ao padeiro que fez a denuncia. Três homens caminhavam cuidadosamente pelo quarto, e segurando com as próprias mãos o vômito incontido. O líder aparente era um homem de cabelos morenos, bigode abastado, vestindo um blazer da 25 de março. Era ele que conduzia a perícia, e que entregou a um dos policiais um envelope plástico com um prego ensangüentado aprisionado.

- Silva, aqui esta a prova do crime. Leve para a perícia tirar a digitais. Temos a obrigação de descobrir o maníaco que fez isto com essa pobre velhinha. Disse levando as mãos á boca, vomitando pela quinta vez.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 09/04/2010
Código do texto: T2186306
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