O BEIJO

O perfume doce de seus cabelos invadiu-me as narinas trazido pela brisa fresca da noite. Mal pude conter minha ansiedade durante as longas horas que nos separaram. Quis de imediato tê-la sob meu domínio, mas seus traços únicos e simétricos, que tanto me fizeram lembrar de uma época há muito esquecida, exigiam que o cenário se mostrasse à altura do que a ocasião solicitava. Algo muito diferente das vielas úmidas e escuras, as quais invariavelmente compunham o pano de fundo das minhas ações.

A conheci na noite anterior, posso até mesmo dizer que foi ela quem me encontrou, pois seus olhos de límpidas safiras enlaçaram-me como num feitiço. Um chamado mudo fez com que eu tomasse assento ao seu lado. O calor de suas mãos contrastava com o imutável gelo de minha pele morta. Seu sorriso fácil sugeria a irrelevância do detalhe. Viajei por alguns instantes ao observar cada curva do seu rosto. Era possível enxergar nele os detalhes perfeitos que costumavam acelerar o ritmo em meu peito. Se eu tivesse um coração, este estaria prestes a explodir.

Fixei meu olhar nos contornos magnéticos dos seus lábios, um conjunto irresistível de maciez tenra e tonalidade desejável. Como eu quis sentir a ardência rubra do seu toque. Mas, como tudo que nos é caro, tal prêmio não seria conquistado de forma imediata. Eu poderia esperar. Tamanha raridade não era merecedora de impetuosidade de minha parte. Com a mesma desenvoltura que se fez surgir, ela partiu, não sem antes fazer brotar um sorriso em meu semblante pálido, foram poucas palavras, porém mais do que suficientes para minhas pretensões, eu seria bem-vindo em seus domínios!

Agora estou aqui. Inspirando o ar noturno. Peneirando os aromas delicados de sua presença. Devo confessar que um nervosismo incompatível com a minha condição me domina, algo inadmissível para alguém com as eras a seu favor, mas perfeitamente compreensível quando se trata de humanidade. Pela primeira vez em muito tempo, a ferocidade de minha existência era subjugada por um sentimento tão pueril, mas que ainda assim se mostrava tão arrebatador quanto.

A janela, levianamente aberta, era um convite apropriado à minha investida. Com a leveza de uma sombra me esgueirei pelas saliências frias das paredes. Agachado na sacada, quis absorver a doçura do ambiente antes de impregná-lo com a viscosidade do meu caminhar. A luz tênue de um abajur quebrava a escuridão absoluta, algo desnecessário para o faiscar dos meus olhos. Analisei cada recanto dos seus aposentos. No calendário de cabeceira, a indicação do décimo terceiro dia do quarto mês, já não me interesso tanto pela escravidão proporcionada pelo tempo...

Ela estava estirava sobre a maciez alva de um lençol de seda, uma comunhão perfeita com os leves trajes que revestiam seu corpo. Seus braços enlaçavam uma almofada, como senti inveja daquele pequeno utensílio. Seu sono era doce e silencioso. Como uma folha ao vento, coloquei-me aos seus pés. Prendi seu tronco entre meus joelhos, tomando todo o cuidado para não despertá-la. Observei sua respiração. Deslizei como uma serpente traiçoeira e esperei a resposta. O azul dos seus olhos se deparou com o vermelho injetado dos meus, mas nenhum grito escapou de sua boca, a qual de maneira surpreendente me oferecia um sorriso.

Também sorri. Exibi meus dentes. Entretanto, estes não eram brancos e exuberantes como os dela, os enfeites em minha boca eram amarelados, frios e bestiais. Não esperei pela usual rejeição e cobri seus lábios com um beijo. Senti o calor de sua vida, algo que extrapolava toda a intensidade que um simples contato seria capaz de proporcionar. Uma ardência sem fim se expandia em meu peito. A brancura do lençol era maculada pela presença invasiva e marcante do sangue. Mas não era o líquido vital da jovem que jorrava em profusão sobre o colchão. O sangue ali presente era negro e morto, tão antigo como a própria vida.

Uma estaca maliciosamente oculta pela almofada estava agora cravada em meu peito. No entanto, nem a dor de uma nova morte fora capaz de separar-me daqueles lábios. Em poucos instantes o mundo não mais se lembraria de mim, mas meu último suspiro seria marcado pela toque único daqueles lábios. Intensidade que nunca tive antes em minha existência e que nunca mais voltaria a ter, infelizmente.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 14/04/2010
Reeditado em 14/04/2010
Código do texto: T2196816
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