CAÇADA

O contato das pesadas gotas da chuva com a folhagem das árvores produzia um ruído irritante, insuportável, na verdade. Talvez a irritação não fosse, de fato, o resultado causado pela tempestade que desabava. Era mais provável que o motivo real fosse a minha frustração, a incapacidade perante a situação, algo incomum às minhas atividades. Mais duas pessoas faziam parte da comitiva: um rapazote com espírito aventureiro, que nutria o desejo de seguir meus passos, e um sujeito local, um guia, que nos acompanhava seduzido pelo irresistível encanto do dinheiro.

Estávamos há quatro dias dentro da mata, sem qualquer sinal do nosso objetivo. A chuva insistente, tão comum nessa região, não ajudava muito, o cheiro de terra molhada confundia o olfato do cão farejador, o coitado estava mais perdido do que o guia. Mas, ainda assim, eu confiava mais no instinto dos animais do que no raciocínio cego da nossa espécie. Aprendi a respeitar as habilidades dos bichos, meu ofício exige tal atitude. Já percorri o mundo em busca de desafios, me envolvi em inúmeras expedições de caça, e aprendi que a natureza não pode ser domada, ela esconde muito mais do que exibe, e isso, eu guardo como ensinamento e regra de vida.

Exatamente por esse pensamento estou aqui. Ouvi inúmeros relatos de que um demônio circulava e fazia vítimas por essa área. Meu conhecimento de mundo mostrou, ao longo desses anos, que muitas das vezes a explicação para um fenômeno está aqui mesmo, no nosso plano, e que o lado sobrenatural se encarrega de explicar aquilo que não é comum aos nossos olhos, aquilo que fica escondido sob o manto da natureza.

Pela descrição dos ribeirinhos, o diabo, em questão, se encaixava perfeitamente numa figura conhecida, porém que não fazia parte da nossa rotina. Meu objetivo de caça costumava habitar muito mais as lendas e o imaginário do que a solidez do nosso chão. A chuva permitiu uma trégua, hora de seguir caminho.

Calor insuportável, insetos indescritíveis, terra encharcada, mata fechada e escura, estou no meu habitat. O cão saiu em disparada, atitude inédita nessa jornada. Saí em seu encalço, a dupla que me acompanhava fez o mesmo. O animal se embrenhou por entre os troncos e arbustos da floresta. Meu ímpeto fez com que eu o acompanhasse de perto, entretanto, o restante da comitiva ficou cada vez mais para trás, até desaparecer por completo do campo de visão.

Por uma fração de segundo, perdi o cachorro. Não entendi como ele pôde ter sumido daquele jeito. Seu rastro levou até uma fileira de árvores de troncos largos e escuros. Decidi subir em uma delas, talvez de lá ficasse mais fácil localizar o grupo, o animal, ou quem sabe, até a caça.

Funcionou, em parte. Consegui enxergar os contornos do cão, ele me pareceu perdido, desorientado. Mas não foi só o farejador que percebi, não mesmo. O animal estava em apuros, estava encurralado e ainda não havia notado. A figura que se aproximava era horrenda, perturbadora até mesmo para mim, alguém que já havia visto quase de tudo nessa vida. Aquela criatura seria o maior dos troféus, a coroação de uma vida, eu não poderia me contentar em exibir apenas a sua cabeça na parede, não mesmo. Um espécime como aquele merecia algo maior, uma exposição de corpo inteiro, na entrada da galeria. A queda de uma lenda, e o surgimento de outra...o maior dos caçadores.

O cão foi lançado ao ar com o dorso dilacerado por uma das aguçadíssimas hastes do monstro. Ele não conseguiu exprimir sequer um ganido quando de volta ao solo, teve o crânio esmagado por um robusto casco. A fera urrou e uma densa névoa foi expelida de suas narinas. Não perdi tempo e fiz mira pelo visor do rifle. Um ponto escarlate surgiu entre os olhos da criatura, mas, pela primeira vez em minha vida, hesitei. Meu indicador, embora talhado pela experiência, não conseguiu cumprir sua rotineira tarefa de envergar o gatilho.

Esferas em brasa me fuzilavam com um olhar. Enxerguei o infinito do tempo numa fração de segundo. Ele não recuou um só passo, e sua determinação me fez fraquejar, meus braços tremiam incontroladamente. Mantive a visão aumentada pela lente, assim pude constatar, estarrecido, que aquilo não era um ruminante como sua aparência poderia sugerir. Dentes, inúmeros, longos e afiados enfeitavam seu sorriso demoníaco, armas prontas para rasgar e fatiar.

O som de disparos quebrou, de súbito, o transe no qual estava mergulhado. O guia atacava a criatura. O chumbo cortava a escuridão e se chocava contra a carcaça espessa do gigante, o qual, surpreendido, foi ao chão. Ele saltou sobre a fera empunhando um longo facão, a lâmina dançou no ar, mas não conseguiu encontrar seu objetivo: a cabeça adornada do monstro. Seu intuito fora interrompido pelas linhas curvas das garras negras que enfeitavam as enormes patas, ganchos tão mortíferos como os de um leão. A caixa torácica do homem, presa em uma armadilha, fora aberta como a casca de uma ostra. Vísceras jorravam, enquanto o focinho do animal revolvia o tronco aberto num festim demoníaco.

O ajudante, que até então se mantivera imóvel durante toda a investida do companheiro, gritou, uma atitude estúpida, mas perfeitamente compreensível, e acabou por correr, se embrenhando na mata. A fera se ergueu com o semblante pegajoso e vermelho, mas nada satisfeito. O garoto seria estraçalhado. Saltei dos galhos apertando com convicção o corpo esguio e frio da minha ferramenta de caça, não haveria espaço para nova hesitação.

Levei alguns minutos até chegar ao local, não tive coragem suficiente para olhar os restos mortais do pobre homem. O garoto havia desaparecido do meu campo de visão, assim como a criatura. Engatilhei o rifle e entrei na mata. Segui cautelosamente, observando cada recanto obscuro da floresta. Embora o ser fosse enorme e pesado, poucos rastros ficavam evidentes. Tudo estava tão quieto quanto uma sepultura. O emaranhado desconexo formado pela vastidão das árvores lentamente foi dando lugar a uma outra composição, impressionante e irônica.

Uma gigantesca muralha verde se mostrou diante dos meus olhos. Era formada por uma espécie de árvore totalmente atípica da região, freixo, se meu conhecimento não me traía. O mais incrível era que os troncos estavam tão próximos que chegavam a formar uma verdadeira parede, as copas eram uma só, uma imensidão verde a vinte e cinco metros de altura.

De forma convidativa e ao mesmo tempo ameaçadora, uma passagem se oferecia na barreira vegetal. Eu sabia do inevitável risco que correria naquele inferno, mas não havia escolha, eu estava ali para trazer o meu prêmio, e além disso, o rapaz precisava de ajuda, e eu nunca abandonei um companheiro de missão. Beijei minha medalha e entrei.

O local era escuro, as trevas abraçavam aquela área de maneira muito mais intensa do que fazia com a floresta propriamente dita. Um cheiro nauseante estava impregnado no ar, eu sabia o que significava, era ali o covil do demônio. Segui por um longo corredor formado pelas árvores, muitos outros se cruzavam, formando uma mescla de caminhos sem início ou fim. Olhei para trás e já não sabia onde estava. Não havia céu sobre mim, nos pés, apenas ossos misturados a folhas secas e velhas.

Caminhei rente ao troncos, o único ruído que ouvia era o da minha própria respiração. Naquela altura minhas pernas pesavam uma tonelada, meus olhos ardiam com o sal do suor. O calor era sufocante. Pé ante pé procurei ganhar os metros em segurança, o círculo amarelo e tímido produzido pela lanterna me servia de olhos. Andei por horas sem chegar a lugar algum e sem nada encontrar.

O cansaço me alcançou e, vencido, fui ao chão. Pensamentos sombrios me dominavam. Morreria à mingua num labirinto de dor e desespero, onde dia e noite eram uma só coisa, uma eternidade tórrida e negra. De costas na relva, senti o contato incômodo e morno de um gotejar sobre meu rosto. Lancei o alcance da luz para o alto e imediatamente me arrependi de tê-lo feito. O horror dominou minha visão, um corpo esfolado pendia dos galhos distantes. Não havia como identificá-lo sob tais condições, mas eu sabia que era o ajudante.

Coloquei-me de pé o mais rápido que pude, não pelo assombro em meus olhos, mas pelo terror que invadia meus ouvidos. O som aterrador de um mugido fez tremer as colunas de madeira, bem como o próprio chão. Naquele momento, eu não era mais o caçador.

Corri sem saber para onde ir, a luz da lanterna me mostrava inúmeras ossadas e carcaças semi-devoradas espalhas em todas as direções. O estrondo de um verdadeiro estouro de manada me perseguia. Joguei a alça do rifle no pescoço e encalei um dos troncos, usava a força dos meus braços para chegar à copa. No entanto a criatura me alcançou antes disso, minha lanterna já havia se perdido pelo caminho, mas era absolutamente desnecessária naquele momento. As brasas rubras iluminavam o espaço abaixo de mim, vi todo o contorno do ódio a me ameaçar.

A besta investia com violentas cabeçadas contra o corpo da árvore. Uma chuva de folhas desabava com os movimentos. Meus braços já não agüentavam o peso do meu corpo, eu sabia que seria questão de tempo até a inevitável queda. O animal salivava abundantemente enquanto esmurrava o tronco do freixo. Enlacei o punhal em minha cintura e saltei, tentando evitar o encontro fatal com os afiados chifres. Senti o músculo de minha coxa direita ser perfurado pela arma pontiaguda da besta, uma dor indescritível me alcançou. Mas eu não me entregaria facilmente. Com sucessivos golpes, sangrei o ser com a minha lâmina, ele urrava de dor e ira.

Garras furiosas cravaram-se em minha carne e sem qualquer chance de defesa fui lançado para o alto. Minhas costas se chocaram contra a muralha vegetal e senti o estalido de algumas costelas se partindo. Busquei meu rifle, estava num canto, longe do alcance. Por sorte não havia largado o cabo do punhal. Com dificuldades, levante e esperei o ataque do demônio. Dois metros e meio de ódio em dentes, garras e chifres diante de mim. Ele raspou um dos cascos no chão e partiu em minha direção, segurei firmemente a faca com as duas mãos, fixei os pés no solo e esperei.

O impacto foi avassalador. Senti o peso de uma montanha de músculos a me esmagar. Mas, consegui fincar os quarenta centímetros de lâmina no abdome da fera, senti o calor do seu sangue escorrendo pelas minhas mãos, sorri, enquanto perdia a consciência...

Despertei tocado por um frescor suave. Nunca estive tão leve em toda a minha vida. Percebi um crânio reluzente como troféu. Aprendi muita coisas sobre caçadas e sobrevivência, situações que nunca poderia imaginar. Posso, agora, entender e acompanhar seus movimentos, pois estou incorporado à sua existência. Minha carne fora devorada. Minha vida fora absorvida por sua presença secular, pois é assim que ele se mantém forte e eterno. Mas meu espírito não morreu, ele corre junto a seus músculos, tenho incontáveis seres a me fazer companhia. Eu achava que sabia tudo sobre caçadas, mas agora que vejo através dos seus olhos, percebo as verdadeiras técnicas de emboscada e caça. Sinto orgulho de ter minha cabeça em osso pendurada em sua cintura, talvez ele reconheça que fui um valente adversário, embora tenha deixado apenas uma ferida ressequida em seu corpo. Mas isso não importa muito, o que interessa mesmo é saber que algumas caças são inalcançáveis, mas, felizmente, agora estou do lado certo.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 19/04/2010
Reeditado em 19/04/2010
Código do texto: T2206390
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