Em má companhia

– Saía daqui, seu intrometido!

– Não posso menina! Disse a voz robótica. O som era intrusivo, e a pequena Rebeca não suportava mais sua companhia.

– Porque faz isto?

– Para sua segurança, Rebeca!

– Eu não quero estar segura. Eu não quero a sua presença! Saía daqui, seu intrometido!

– Não posso! Só recebo ordens sob o comando de voz do Senhor Asimov.

Rebeca não concordava com super proteção de seu pai. Nem suas contas milionárias, suas máquinas incríveis criadas pelas Indústrias Asimov, valiam o preço de uma liberdade. Aquela tortura, vinte e quatro horas por dia, tinha que ter fim. Não podia mais ser seguida segundo por segundo por um estranho, gélido e indiferente companheiro, o qual apenas desejava colher informações, e definir seus passos baseados em algoritmos matemáticos, tornando-a também uma máquina, biológica.

Tudo começou quando ainda era bebê. Na verdade antes disso, desde a concepção de Rebeca Asimov. Foi quando a menina se divertia numa placenta, que PSR-B1 foi projetado. O senhor Asimov não acreditava nos homens, corruptíveis e influenciáveis, nenhum deles seria o suficiente para proteger sua herdeira.

Então ele planejou cada circuito de seu novo invento. Cada placa metálica foi pensada cuidadosamente. Quando Rebeca nasceu já estava acompanhada no berçário pela estrutura de quase dois metros, câmeras e telas espalhadas por toda a estrutura revelando assaz curiosidade sobre o bebê que chorava ecoando por todo o hospital sua chegada ao mundo.

Uma sombra. Onde um estava, ou outro ia também. No banheiro, ou na casa da árvore. O robô seguia como um cão adestrado, cada passo da jovem Rebeca. Assim ele viu-a completar seu primeiro aniversário. O primeiro dia de aula. Tudo ficara registrado por suas câmeras que gravavam ininterruptamente o dia-a-dia da criança mais rica do mundo.

Não raro as vezes que ele dedurou Rebeca. Como quando ela encontrou-se ás escondidas com Ruan, filho de um serviçal da mansão. O senhor Asimov era muito exigente em relação às amizades da filha. Tinha como filosofia do “diga-me com quem andas que te direi quem és”, e mesmo numa frase tão antiga, baseava-se nela para tolher as companhias da filha.

Talvez tenha sido este o evento que começou a minar a relação entre a jovem, e o seu protetor. Em épocas mais infantis, a companhia lhe soava agradável, e era muito interessante provocar as amiguinhas com algo que nenhuma delas poderia ter. No entanto com seu amadurecimento, a vigilância começou a tornar-se um castigo da qual ela não se fazia merecedora.

Porém, ela já tinha chegado aos sete anos. A idade que dizem perdermos a proteção angelical. Em que começamos a migrar para um mundo malicioso e mais lascivo, que até então a pureza dos querubins em nossas almas não nos permite ver. Era um sorriso dissimulado com que ela fitava a câmera central do PSR – B1. Em sua mente, nem tão inocente quanto outrora, um plano tinha sido elaborado.

Jogou no chão seu urso de pelúcia, num gesto imitando alguém que ela já mais conseguiria saber quem foi. Como Pedro ás margens do Ipiranga, ela desfez-se do pequeno e fofo animalzinho, e gritou “Independência ou morte.”

Começou seus passos seguidos pelo fiel, e algoz robô.

– Em breve me livrarei desta lata idiota!

– Que disse menina?

As escadas lhe pareciam mais infinitas que em qualquer outra oportunidade. Estava tão próxima de seu desejo, que lhe parecia uma eternidade cada degrau galgado ao andar superior da mansão Asimov.

O corredor estava vazio, e nenhum dos cento e cinqüenta abelhudos serviçais dera o ar da graça. Tudo corria perfeitamente bem em seus planos. Seus passos mais demorados frutificavam de seus anseios, algo comum frente a grandes decisões.

Há sempre que pesar a balança. Porém toda vez que colocava sobre a balança seu escudeiro robótico, esta tendia velozmente para um dos lados. Não devera haver arrependimentos... Não deveria haver hesitação.

Ela tocou o botão, e a porta digital abriu seu manto energético, dando vista para o quarto, tingido em tons de azuis. Eram épocas de grandes avanços, porém nenhuma máquina foi capaz de solucionar o ronco. Com um velho motor movido a combustíveis fósseis, o velho Asimov repousava.

– O que quer no quarto de seu pai?

– Silêncio, seu robô abestalhado! Se ele se acordar torra seus circuitos.

Ela caminhou lentamente até o homem que tanto zelava por sua segurança. Fora o ronco, sua expressão era amena. Típico de quem não precisava preocupar-se com os bilhões depositados no banco. E certo sonhava com uma de suas tantas namoradas, e que irritavam tanto a sua mãe. A garota, como um felino manhoso se aninhou sob as cobertas.

– Mande este robô idiota para de me seguir.

A lâmina era gelada, mas o motivo de tanto sobressalto era a pequena Rebeca dar-lhe uma gravata, e deixar a o canivete a menos de um centímetro de sua jugular.

Máquina não tem sentimentos. No entanto não há como não falar da expressão tensa de PSR – B1 ao acompanhar a cena. Uma vida estava em risco, e para salvá-la ele poderia ferir as leis da robótica colocando outra em risco. O que fazer? Máquinas não possuem o poder de decisão. Ele continuou parado. Estático. Imóvel.

Em sua tela de cristal líquido a máquina começou a exibir vídeos de momentos ternos entre pai e filha. Comemorações de aniversário, abraços, e até mesmo as horas em que o velho cientista se despia da forma sisuda de bilionário, parando tudo para brincar com a pequena em sua casa de bonecas.

Nem mesmo isso chamou a atenção da pequena que se mantinha firme em sua disposição de liberdade. Seus olhos, avermelhados como os dos grandes líderes ante feitos históricos, não a permitia observar nada que não fossem os grilhões libertos entre ela e PSR – B1.

Asimov tentou falar. Sua voz saiu afogada e inaudível. Rebeca não desejava suas explicações, e cada ameaça de castigo o fio malévolo ficava mais próximo de seu pescoço. Os olhos esbugalhados do homem que aparentava ter uns sessenta anos revelavam todos seus medos perante uma situação dramática e impensável.

Recordava-se do instante que recebera a notícia tardia de sua paternidade. Por muitos anos maculou-se com os mais variados pecados como desculpa para o castigo de não tornar-se pai. Então quando menos esperava sua quinta esposa lhe brindou com tal informação.

Uns diziam que a proteção elevada provinha de sua idade. É natural que pais mais velhos, se tornem protetores. O robô foi um divertimento durante a gestação. Um hobby projetado em sua ampla sala nas indústrias Asimov. Foi germinado ao tempo que a pequena Rebeca, e a intenção eram pura e simplesmente protegê-la, num mundo cada dia mais conturbado e caótico.

– Diga Papai. Só te peço que desligue esta anomalia papai! Mande-o parar...

As lágrimas, e a feição tristonha feriam a Asimov mais que a própria faca. Ele arfava galgando o ar impedido de lhe chegar aos pulmões, por causa dos braços da jovem, que ele não conseguia compreender de onde viera tanta força.

– Mas Rebeca... O construí para o seu bem... Para sua segurança...

– Acha que é fácil, deitar e acordar vigiada por um trambolho desses... Ser espionada todo o momento... E a cada instante produzindo ao senhor coisas que lhe desagradam... Que passariam despercebidas num relacionamento normal.

– Seu velho pai é um homem tolo, mina filha. Cheio de medos, e o principal é perder-te. Não sabes por quanto esperei sua chegada... Ninguém a tomará de mim.

– Você me perdeu quando criou essa máquina papai... Mostre-me que ainda podemos ser felizes... Mostre-me que ainda pode ser um pai normal... Esqueça suas manias de inventor... Abandone seus receios... Desligue esta porcaria!

Havia um dilema a ser resoluto. Se fizesse o que pedia Rebeca, Asimov temia o distanciamento ainda maior de sua filha. Além disso, um trabalho de meses e aperfeiçoado pelos anos seria perdido, assim como o controle que tinha sobre sua rebenta. O velho tinha noção que anos mais difíceis vinham pela frente. Teria ainda que enfrentar a adolescência e a juventude, época que lhe seria muito útil o PSR – B1. No entanto uma lâmina nervosa, num momento tenso é algo muito persuasivo.

– PSR – B1, Desligar!

O robô congelou. Não moveu um único rolamento. Não piscou um único circuito. Enfim ele não gravava os passos de Rebeca. A companhia de anos a fio, se desfazia naquele instante, num único comando de voz. Pela primeira vez a jovem não tinha seus segundos, seus minutos de vidas gravados e arquivados no HD de um servidor criado especialmente para guardar a memória da Rebeca Asimov.

O gosto do ar a penetrar em sua mucosa tinha um renovado sabor. Deixara de ser ácido. Tenso, pesado e volumoso... O oxigênio percorria os pulmões com a alegria inveterada de um menino... A alegria que só a liberdade pode promover. Rebeca suspirou profundamente. Queria ser inundada pelo ar não poluído pela presença de um robô cortando o fluxo energético da vida diuturnamente.

– Estou livre!... Estou livre!... Repetia ela entusiasticamente.

Asimov aguardava poder saborear a mesma sensação, mas antes disso a faca deslizou na pele do velho, como deslizasse numa fatia de queijo, arrancando suas cordas vocais, puxadas pelas pequenas e ávidas mãos de Rebeca. Era a única forma dela se certificar que aquele robô não seria ligado novamente.

* Este conto está concorrendo no desafio literário do Site Contosfantasticos.com.br

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 22/04/2010
Reeditado em 22/04/2010
Código do texto: T2212501
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