O PANFLETO

A brisa fresca de outono balançou seus cabelos, mas a inquietação em seu coração a privava de qualquer senso de percepção. Ela vivia num constante estado de letargia, uma espécie de ausência existencial em relação à vida. Repetia mecanicamente seus afazeres sem conseguir extrair gosto ou relevância em qualquer coisa que se propusesse a fazer. O alimento não tinha sabor, as flores não exalavam perfume, o mundo nublara-se em tons de cinza, a vivacidade multicolorida não mais existia para seus olhos turvos. O sono era uma raridade. Os açoites noturnos chegavam em forma de pesadelos sufocantes. No entanto, os tormentos delirantes não eram seu pior inimigo. Na verdade, seu desespero maior respondia pelos sonhos doces e suaves que freqüentemente lhe abraçavam, pois em cada despertar deparava-se com o desmoronamento de seus alicerces, com a ruína daquilo que desejava para si mesma. A realidade era insensível e cruel.

Debruçada na janela, fora momentaneamente atraída pelo improvável movimento de um pedaço de papel. Parecia um panfleto ou algo do tipo. A folha subia e descia em rodopios espiralados. O vento, com uma lufada mais forte, projetou o folheto a uma grande distância, fazendo com que ele flutuasse ao alcance de suas mãos. E mesmo sem saber a razão, ela esticou-se para agarrá-lo.

Ao passar os olhos pelos borrões negros oriundos de uma velha gráfica, ela percebeu surgir em seus lábios algo que há muito não ostentava: um sorriso espontâneo. Um sentimento renovado corria em suas veias, a esperança brotava como um oásis para um sedento. Ela poderia reencontrar a felicidade perdida, afinal.

As letras manchadas no pedaço de papel indicavam uma área longínqua, desconhecida para alguém que sempre relutou em deixar a segurança e a comodidade encontradas nas ruas calmas do subúrbio. Mas a convicção, a certeza de que conseguiria reverter uma situação que o mundo insistia em julgar como perdida, mas que no fundo de sua alma se mantivera viva, plenamente possível de ser conquistada, a movia contra todas as dificuldades.

O coletivo, o terceiro que utilizava, a deixou numa estrada larga e empoeirada. A trilha barrenta terminava numa espécie de vila de moradias simples. Poucas pessoas transitavam pelo local, o qual era cortado por várias vias paralelas. A rua que ela procurava era a última, já próxima de um extenso matagal. A casa localizava-se no final da viela. Não havia muros ou cercas na residência. Mas ela teve certeza de estar no endereço correto após conferir o número pregado na parede revestida por uma camada envelhecida de tinta amarela.

Um cachorro esquelético rosnava de forma ameaçadora para ela. Entretanto, como se tivesse recebido um ordem, imperceptível a bem da verdade, o animal se recolheu para os fundos do quintal. A porta se abriu num tom convidativo. Com passos hesitantes, ela adentrou pelo terreno e cruzou o vão oferecido pela folha, onde um verniz desgastado tentava amenizar as profundas ranhuras da madeira.

Uma meia luz quebrava a escuridão. Ela chamou pelo nome estampado no folheto. Na segunda tentativa, uma voz rouca e arrastada respondeu embaraçada pelo ruído irritante de uma tosse seca. Conforme solicitado, ela entrou pela sala, cruzou um corredor e então deparou-se com uma senhora de cabelos acinzentados postada em uma mesa tão corroída quanto a porta de entrada.

A mulher estava de cabeça baixa, e ao levantá-la instigou um sobressalto na visitante. Seu rosto ostentava sulcos profundos e cicatrizes frias, numa mescla repugnante e que provocava um inevitável mal-estar.

A velha não deixou que a jovem se manifestasse de qualquer forma. Tão logo ficaram face a face, ela pôs-se a despejar uma série de orientações que deveriam ser cumpridas à risca. A mulher ouvia atentamente a tudo, limitando-se a menear a cabeça de forma afirmativa. No fim do monólogo, a conselheira indicou um local onde deveriam ser colocadas algumas cédulas.

Poucos minutos depois ela estava fora da residência. Sentia-se aliviada por estar livre daquele ambiente que fazia seu sangue gelar com calafrios intermitentes. O sol já baixava no horizonte. Em algumas horas estaria em casa.

Ela estava cansada, completamente abatida pelo desgaste da viagem. Mas a obsessão em sua mente a impedia de imaginar qualquer coisa que não fossem as diretrizes traçadas e o objetivo a ser atingido. A lua não passava de um fio opaco a se mostrar na noite sem estrelas. Rapidamente, ela espalhou tudo que precisava sobre o mármore da cozinha. Repetiu incessantemente os versos decorados no percurso de volta para casa. Salpicou o conteúdo do sachê fornecido pela velha em cada ponto da mesa. Finalizou as atividades pingando uma única gota do próprio sangue sobre o objeto principal, no centro da pedra.

Então, exausta, ela se jogou na cama desarrumada. A ansiedade a dominava. Por vezes duvidou e praguejou sobre as intenções do destino. Julgava a si própria como uma injustiçada. Mas em breve tudo estaria resolvido. Achava que não conseguiria dormir, mas contrário às suas próprias expectativas, foi tocada por um sono sereno, sem sonhos ou pesadelos, apenas dormiu, como há muito não dormia. E seu sono durou exatas setenta e duas horas.

Despertou com um ruído estranho vindo da escadas. Um aroma diferente invadiu-lhe as narinas, algo semelhante ao encontrado no ar após uma tempestade. Misturado ao cheiro de terra molhada, quase imperceptível, ela notou, ou assim imaginou, uma distante fragrância, uma leve fagulha que fez acender um turbilhão de lembranças em seu peito. Ela sorriu. Encheu-se de ânimo. O quarto estava entregue às trevas, mas mesmo em meio à escuridão ela conseguiu descrever os contornos diante de si. Finalmente tudo que desejara estava se realizando! O experimento no qual empenhara seus esforços havia funcionado!

Ela já não encontrava mais razão para viver desde que seu marido a abandonara. Mas agora tudo seria diferente. Ele estava de volta. Os erros seriam reparados, eles teriam uma nova chance.

De fato, ela nunca entendeu a atitude inesperada daquele que tanto amava, e talvez se soubesse não teria insistido tanto em querê-lo de volta. Pois a pessoa que ela havia escolhido para lhe fazer companhia por toda a vida era um homem de muitos segredos. Dentre eles, o maior de todos o obrigava a confrontar a si mesmo desde a adolescência. Ele não encontrava qualquer explicação para a sede de sangue que o consumia. O desejo insensato de satisfação com a dor alheia. Durante todos os anos de casamento, ele tentou domar a fúria assassina dentro de si. Ele liberava seus demônios contra inocentes escolhidos aleatoriamente e tentava manter a sanidade diante da mulher.

Entretanto, com o passar do tempo, ele passou a temer pelo pior, e encontrou na repentina fuga uma maneira de proteger a única pessoa que ele queria bem nesse mundo. O homem nada disse ao partir, pois não haveria como confrontar a dor da despedida. Ela ficou sozinha. Plena em dúvidas e frustrações. Mas a dor chegaria ao fim com o seu retorno.

Com a ajuda da velha feiticeira, ele voltava ao lar. Mas já não era a mesma pessoa. Ela nada sabia a respeito dessa mudança. Algo não saíra como planejado numa das investidas para aplacar sua ferocidade. A vítima escolhida conseguira uma improvável reviravolta. O desespero aliado às armadilhas do destino conspiraram para que o chumbo fatal se alojasse em sua cabeça pondo fim na vida de matanças.

Porém, seu descanso fora interrompido por um chamado. Uma técnica antiga e quase esquecida o fizera romper as barreiras do tempo e da morte. Suas mãos carcomidas abriram espaço pela terra enegrecida da cova rasa e clandestina na qual seu corpo se refugiava. Ele caminhou por três luas até encontrar aquela que a chamava. Com um grito ela o encontrou, mas suas mãos trataram de silenciá-la para sempre.

O corpo da mulher era carregado sem vida para uma nova moradia. Um lugar distante da luz. Em parte ela realizava seu desejo, pois estava, finalmente, nos braços daquele que tanto lhe fazia falta. No entanto, seus olhos não eram mais capazes de contemplar tal felicidade. Estariam juntos, unidos por toda a eternidade. Sobre eles a terra úmida. Nos corpos frios, os vermes a devorar-lhes a carne...

A brisa quente da noite sem lua invadiu o quarto agora vazio. Um folheto amassado, que até então jazia sobre o criado-mudo, encontrou a liberdade pelo vão da janela aberta. Em seu corpo, letras negras diziam em destaque: “Trago a pessoa amada em três dias”.

O papel rodopiava ao sabor do vento. A vontade própria que constituía sua estrutura lhe obrigava a continuar sua incessante busca. Mais cedo ou mais tarde ele encontraria uma nova pessoa a quem ajudar.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 24/05/2010
Reeditado em 16/01/2012
Código do texto: T2276789
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