O GATO

Lá fora a tempestade desabava. Em minha cabeça, os pensamentos eram açoitados pela angústia com rigor semelhante à fúria das águas. Parecia que todas as dificuldades da vida tinham resolvido conspirar ao mesmo tempo contra mim.

Um ruído estridente me tirou dos devaneios nos quais eu estivera mergulhado nos últimos minutos. Percebi um brilho em meio à escuridão que assolava o beco ao lado de minha residência. Alcancei a lanterna que ficava debaixo da cama, nenhuma lâmpada resistia por muito tempo naquela área povoada por todo tipo de escória.

De posse do objeto, lancei o facho de luz em direção à viela. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com a cena revelada pelos olhos da lanterna: Um gato estava com uma das patas presa numa calha, e, logo abaixo, um cão de médio porte rosnava de maneira ameaçadora para ele.

Mesmo com o mundo desabando em águas, os animais tentavam se engalfinhar sem qualquer cerimônia. Tentei espantar o cão com gritos, uma tentativa inútil. Olhei ao redor em busca de algo com o qual eu pudesse investir contra o animal, encontrei um sapato solitário e o fiz voar pelo basculante. Acertei o focinho do cachorro, que proferiu um ganido e recuou um pouco, mas não abandonou o local.

Eu não acreditava no que estava prestes a fazer, mas, ainda assim, o fiz. Joguei o impermeável desbotado no corpo e saí rumo à tempestade. Contornei o prédio decadente, do qual alugava um quarto, e cheguei ao beco. O cão montava guarda no mesmo lugar. O corpo do bicho era revestido por uma pelagem completamente alva, em contraste com o gato, que exibia o negro absoluto como marca.

Tentei não demonstrar receio do cão, embora o medo me dominasse por completo. Porém, ao contrário do que se poderia imaginar, ele nada fez além de me observar. Então, recolhi o sapato do chão. Em seguida, agarrei o gato e o soltei da armadilha montada pela calha. Com o felino nos braços, recuei lentamente e saí da viela. O cachorro não tirou os olhos de mim nem por um segundo.

Já dentro do quarto, fiquei me questionando se eu havia ficado louco. Afinal, o que levaria uma pessoa a sair no meio de uma tempestade para resgatar um gato da fúria de seu inimigo natural? Sinceramente, não encontrei respostas. O que posso dizer é que apenas segui um impulso, nada além disso.

O felino estava muito assustado. Ele não conseguia emitir um simples miado, apenas se encolhia, enquanto tremia o corpo magro. Pobre animal. Estava numa situação tão adversa quanto a minha. Vasculhei o armário e a geladeira em busca de algum alimento. Encontrei uma caixa com um vestígio de leite fora da validade, nada mais. Despejei boa parte num copo e ofereci ao bicho. Levei à boca o que restou na caixa.

O gato avançou rapidamente, sorvendo o líquido com sofreguidão. Afaguei sua cabeça. A expressão em seus olhos me dizia que eu havia conquistado um amigo, alguém para compartilhar a miséria intransponível de minha vida. Um uivo assustador sobrepôs-se ao tamborilar da chuva. Olhei pelo vão entre as lâminas de vidro, era o cão executando uma sinfonia perturbadora. Virei os olhos para o gato, este se encolhia tomado pelo medo. Falei para ele, como se fosse possível que compreendesse: “Não se preocupe, você está a salvo agora”.

Ao ouvir minha voz, ele se lançou no ar, saltando em meus braços. No entanto, a fraqueza ainda o dominava, o que culminou numa ação imprecisa. Tentei agarrá-lo, porém suas garras riscaram minha pele provocando uma dor imensa. Ele foi ao chão, mas pousou suavemente aparando a queda com a firmeza delgada das patas.

Filetes de sangue escorriam do meu braço. Senti uma raiva imensa, tive vontade de jogar o gato à própria sorte. Foi quando ele se aproximou novamente, abaixei para agarrá-lo. Entretanto, de maneira estranha, o animal começou a lamber as gotas rubras que manchavam a cerâmica gasta do piso.

Fiquei hipnotizado. Ele, então, se aproximou mais ainda e deslizou a língua áspera pela minha pele ferida. Achei repugnante, mas algo em mim parecia concordar com aquilo. Subitamente, ele parou e saiu em disparada pelo basculante e ganhou as ruas.

Desperto do transe, corri até a pia do banheiro e deixei a água correr sobre o ferimento. Os talhos pareciam bem piores do que eu poderia imaginar. Não encontrei um reles anti-séptico que fosse, nem mesmo uma gota de álcool para esterilizar os cortes. Assim, só me restava enrolar o braço numa toalha e suportar a dor.

A tempestade diminuíra sensivelmente de intensidade. Não passava, agora, de um chuvisco. Uma rápida olhadela confirmava que o cão já não permanecia em seu posto, de certo saíra em perseguição ao maldito gato. As horas se passaram, a sonolência me dominava, a ardência convertera-se num leve incômodo. A lembrança do felino estava quase diluída em minha mente, quando percebi aquele brilho familiar em meio às trevas que tomavam o quarto.

De imediato acendi as luzes. Assustado, me deparei com o olhar cintilante do bicho, mas não eram só os seus olhos que brilhavam. Ele trazia algo na boca. Mesmo temeroso, me aproximei, estiquei a mão e, maravilhado, percebi que era uma maciça pepita de ouro. Aquele maldito gato vadio trouxera um achado entre seus dentes amarelados. Mal consegui conter o entusiasmo. Enfim, dentre as inúmeras mazelas que me assolavam, um pouco de sorte.

Na manhã seguinte, converti em espécie o inusitado presente, o que, de fato, proporcionou um pouco de alívio à minha dura rotina. O meu improvável benfeitor passou o dia todo fora. Entretanto, com o cair da noite ele retornou. Diante de sua presença, senti a ardência em meu braço voltar a agir. A área ao redor do ferimento exibia uma tonalidade avermelhada.

Mesmo com o incômodo, eu não conseguia sentir raiva do animal, afinal, fora ele o responsável pela primeira refeição decente que eu tive em muito tempo. Mais uma vez me ajoelhei e chamei por ele. O felino se aproximou balançando a cauda sinuosa. Perguntei se ele tinha fome. Deixei escapar, ainda que inconscientemente, minhas dúvidas acerca da origem do ouro bruto.

Em resposta às minhas palavras, de maneira quase imediata, ele saltou novamente sobre mim. No entanto, desta vez, tratou de cravar as afiadas e negras unhas em meu peito. Com o movimento de suas patas, gritei de dor. Sem me soltar, o bicho executou, mais uma vez, o ritual de sorver o sangue que brotava dos riscos recém abertos.

Nunca senti semelhante agonia. Parecia que minha carne cozinhava nas labaredas do próprio inferno. Quando achei que fosse entrar em colapso, o gato me deixou, para novamente desaparecer na noite. Tentei erguer o corpo, mas a dor me consumia de tal forma que não consegui. Fiquei estirado no chão, totalmente entregue.

A sonolência me possuía, perder os sentidos parecia algo inevitável. Foi quando o vi. O gato estava de volta. Como se fosse íntimo em minha vida, ele se aproximou do meu rosto e despejou o conteúdo de sua boca: inúmeras e variadas pedras multicoloridas. Eu não precisava ser nenhum especialista para deduzir o valor inestimável das gemas à minha frente.

Como por um passe de mágica, superei a dor. Passei a ignorá-la por completo. Só tinha olhos para o tesouro oferecido pelo gato. Imediatamente entendi a dinâmica da situação. Mesmo parecendo loucura, ofereci minha perna para o animal, o qual não hesitou nem por um momento e passou a retalhar minha carne com dentes e garras. O sangue jorrava. Eu tentava conter os gritos mediante incomparável dor, enquanto o gato se fartava com o banquete proporcionado pelo meu corpo.

Satisfeito, ele me largou e partiu. A queimação absurda que eu sentia não me incomodava, pois eu sabia que todo aquele sofrimento seria recompensado. O bicho não tardou a retornar, meu coração disparou ao vê-lo. Ele trazia uma nova remessa de felicidade, muitas pedras de diamante foram depositadas ao meu lado.

Porém, desta vez, sem esperar por qualquer tipo de proposta, ele partiu. Não dei muita importância, embora eu estivesse tentado a oferecer mais do meu sangue. Assim, tratei de cuidar dos novos ferimentos.

Os dias se passaram. Consegui vender algumas pedras no mercado negro, apenas o suficiente para viver dignamente. A maior parte ainda estava comigo. As feridas em meu corpo não cicatrizavam de jeito nenhum, entretanto essa não era a maior das minhas preocupações. O que me intrigava mesmo era o fato do gato não ter retornado mais.

Passei noites e noites procurando por ele sem sucesso algum. Praticamente já estava resignado com tal situação quando, finalmente, o encontrei. Eu estava no beco e pude vê-lo no basculante do meu quarto. Corri o mais rápido que pude, entrei em casa e percebi que ele estava no mesmo lugar. Foi então que notei que ele carregava algo na boca, mais pedras preciosas. Mas não era uma nova remessa para mim. Minhas coisas reviradas deixavam evidente que aquilo em sua boca era o meu tesouro. A minha vida!

Tentei agarrá-lo, mas ele escapou. Pelo vão, constatei que ele atravessava a viela, então fui atrás dele. Segui em seu encalço por muitas quadras, eu não desistiria do que era meu. O bicho invadiu uma praça e cruzou toda sua extensão, chegando até um descampado enfeitado por muitas rochas.

Vez ou outra o gato olhava para trás, certificando-se de que estava sendo seguido. Evidente que estava. Eu não o deixaria escapar por nada nesse mundo. Ele seguiu por uma espécie de gruta, um declive ornado por salientes contornos rochosos. Muitas gemas ficavam pelo caminho, eu as recolhia uma a uma. Um cheiro nauseante invadiu-me as narinas, nada que me fizesse desistir.

Visualizei algo que se revelou como uma pilha enorme e reluzente. Era ouro e toda sorte de pedras preciosas. Mas nem sinal do gato. Caminhei decidido rumo ao tesouro, mas meu ânimo desabou quando percebi o cenário escondido pela montanha multicolorida: um emaranhado de corpos. Muitos em avançado estado de decomposição, outros ainda frescos. Esqueletos inteiros e ossos soltos compunham o restante de tão aterradora visão.

Imediatamente fui trazido de volta à realidade. E com a consciência, vieram também as circunstâncias da situação. O ar tornou-se irrespirável para qualquer ser vivo. Então, saído das trevas, surgiu o maldito. Ele parecia pouco se importar com o ambiente ao redor.

Meus pulmões queimavam. Minhas feridas ardiam em carne viva. Tentei sair daquele lugar, mas não tive forças. O gato saltou e cravou os dentes em meu pescoço, sua fúria rasgava o tecido macio com extrema eficiência e facilidade. Caí no chão e comecei a me debater enquanto o bicho roubava meu líquido vital. Eu ouvia, juro que ouvia, o som emitido pela garganta do demônio quando esta era regada pelo meu sangue.

Meu coração ainda batia quando ele me largou. Eu vi seu corpo negro seguir até o monte formado pelas pedras. Ele abocanhou um punhado delas e partiu. Arrastei-me com muito custo por toda a extensão da gruta. Em cada pedaço de rocha, deixei minha marca com sangue e carne. Cheguei até a borda da caverna, percebi uma luz alva. Eu já tinha visto aquele ser envolto por ela. Era o cão. O cão branco que encurralava o gato quando o vi pela primeira vez.

O animal exalava uma luminosidade branda. Ele me encarava com reprovação. Imediatamente percebi sua missão. Porém, ao mesmo tempo, me dei conta da natureza do ser enclausurado naquele corpo felino. Entendi que ele havia partido para confortar outra alma desesperada com sua mórbida oferta. Meus braços já não demostravam força. O cão não esboçava qualquer intenção de me ajudar, talvez eu já tivesse sido julgado por ele. Seus olhos me diziam que meu espírito não valeria à pena, e que este seria apenas o primeiro dos julgamentos. Resignado, deixei meu corpo descer pela garganta de pedra, aumentando o número de corpos esquecidos, sem direito a perdão. Todos tão perto da riqueza, mas sem possibilidades de fazer uso dela.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/07/2010
Código do texto: T2360492
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