Cobaias

Quando estava quase chegando ao carro ela notou que a chave não estava em sua bolsa. Voltou correndo para o laboratório a passos acelerados fugindo da chuva que caía. Com o jaleco e cabelos molhados, entrou novamente no bloco principal. Pensou ter esquecido a chave em cima de sua mesa.

O vigia não estava mais lá, provavelmente estava fazendo rondas ou conversando com o vigia do bloco ao lado. Ela foi sozinha até o final do corredor que levava às escadas, subiu dois lances e caminhou por outro corredor até o seu laboratório. À noite, aquele local parecia muito mais sombrio. Responsável por um projeto de pesquisa de grande vulto, ela estava trabalhando até tarde e não raro era a última a sair. Como já passava das onze horas não havia mais ninguém lá.

Com doutorado em medicina, Dra. Carla trabalhava no Instituto de Ciências Biomédicas chefiando um grupo de pesquisa que estudava o impacto dos agrotóxicos nos seres humanos. Era um trabalho que visava a saúde e bem estar da população em geral e, por isso, Carla se orgulhava. E o fato de seu trabalho exigir o sacrifício de pequenos roedores como cobaias não a incomodava nem um pouco. Neste ponto, todos os cientistas de laboratório parecem ser unânimes: os fins justificam os meios. Sacrificar animais de forma sistemática e em nome da ciência, além de rotineiro, é algo plenamente justificável, afinal, a ciência está a serviço do homem. Pequenos sacrifícios hoje, grandes benefícios amanhã.

Chegando no laboratório, passou o crachá no trinco eletrônico e entrou. Procurou em sua mesa, nas gavetas, no chão - a chave não estava lá. Procurou de novo, mexeu e remexeu suas coisas. Nada. Deu uma última olhada, chacoalhou a cabeça nervosa e intrigada por ter perdido a chave, resmungou algumas palavras e saiu batendo a porta atrás de si. Estava aborrecida pois seria difícil encontrar um táxi naquela noite de sexta-feira chuvosa.

Decidiu ir perguntar ao vigia se alguém tinha encontrado sua chave mas, enquanto descia as escadas já próxima ao térreo, ouviu um fraco estampido que vinha do subsolo. Pelo que sabia ninguém deveria estar lá. Parou e esticou a cabeça olhando para baixo em direção às escadas. Estava tudo escuro. Não fosse uma das chefes e responsáveis pelo local teria esquecido o assunto, procurado um táxi e voltado para casa. Mas não, deveria averiguar quem estava lá. Talvez fosse o vigia fazendo não sei o quê.

Ao descer as escadas olhou para o corredor completamente escuro e percebeu que uma das portas estava entreaberta e a luz ligada. Era o laboratório do Dr. Adolpho. Ao que parece, pensou ela, ele também estava imerso em trabalho. Dr. Adolpho era um cientista brilhantemente obcecado. Com um certo olhar misterioso e personalidade introspectiva, ele era um dos nomes de peso daquele instituto tendo já recebido alguns prêmios e várias menções honrosas pelos seus trabalhos. Sua pesquisa era voltada aos anestésicos, suas propriedades e efeitos.

Mesmo mais tranquila ela estranhou o fato de ele estar lá naquele horário, então não resistiu a curiosidade e se aproximou da porta para dar uma espiadela. Daria boa-noite e iria embora. Ao empurrar devagar a porta ela paralisou - uma mulher semi-nua estava deitada e amarrada em uma maca. O seu rosto era uma mistura de terror e letargia como se estivesse drogada. Havia uma pequena incisão em seu abdômen que era mantida aberta por um instrumento cirúrgico. Seus olhos se voltaram aos olhos da Dra. Carla como se suplicasse socorro, foi quando ela esboçou um movimento e sentiu uma forte pancada.

Ao acordar poucas horas depois, sentia frio, náusea e uma forte dor de cabeça. Não soube quanto tempo permanecera desacordada. Percebeu estar deitada, semi-nua e presa a uma maca. Sua vista embaçada foi aos poucos ganhando nitidez. Na sua frente, o Dr. Adolpho segurava a sua chave.

- Procurando algo?

Dra. Carla estava confusa, quis se levantar, gritar, sair dali mas sua voz e seus membros não a obedeciam. Além de estar amarrada sentia que sua mente estava anuviada, provavelmente sob efeito de alguma droga. Olhou para o lado e na maca estava a mulher, agora completamente imóvel. Seus olhos esbugalhados, face contorcida e azulada, e boca semi-aberta de onde escorria um líquido branco indicavam que estava morta. Dra. Carla, sentindo um desespero que nunca antes havia sentido em sua vida, começou a chorar.

Dr. Adolpho pegou uma seringa e com gestos metódicos a encheu com um líquido incolor. Diabolicamente calmo e com os olhos cheios de satisfação, aproximou-se dela com uma bandeja repleta de bisturis e outros instrumentos.

- Você não deveria chorar minha querida. Está participando de algo que a história da ciência jamais viu. As implicações e revelações de minha pesquisa trarão benefícios para toda a humanidade. Seus filhos e netos me agradecerão. Você, assim como muitos outros cobaias estão contribuindo para o avanço de minha pesquisa de forma decisiva. Quando tudo terminar, meu nome será eternizado nos anais da medicina.

Ele segurou seu braço e introduziu a agulha. Aterrorizada, seu corpo ficou completamente inerte mas a sua consciência não. Dr. Adolpho começou a trabalhar em seu abdomên com o bisturi e apesar da dor terrível que sentia não conseguia se mexer e nem gritar. Ele observava atentamente as suas reações, sua expressão, batimentos cardíacos, respiração e fazia muitas anotações.

Aquele inferno se estendeu por quase duas horas, o que para ela pareceu uma eternidade. Já quase perdendo a consciência, o último som que ela ouviu antes de fechar os olhos para sempre foi a risada do Dr. Adolpho. Uma risada contida, aguda e sinistra - parecia guinchos de um rato.

Julho de 2010