A Saga de Leanan & Scarecrow - conto 2 - A TRILHA DO ESPANTALHO

Aquela noite, há muito tempo atrás, estava mais escura do que de costume. No horizonte, o brilho esporádico dos relâmpagos iluminavam a paisagem deserta. Em ambos os lados daquela auto-estrada, nada se via que destoasse dos campos extensos de uma região serrana. Nem mesmo havia outros veículos para quebrar aquela monótona viagem - um trajeto longo entre duas grandes cidades cujos nomes se perderam no tempo.

Solitário, o motorista lutava contra o sono, bem como contra o relógio. Precisava chegar o quanto antes, por isso acelerava, enquanto elevava suas preces ao céu no desejo de que o cansaço não fizesse daquela estrada seu túmulo, um túmulo feito de peças metálicas disformes a emoldurarem um corpo destroçado, por alguma curva mal intencionada.

Esses pensamentos ora o assustavam, ora o divertiam. Lembrava-se das histórias de sua infância, carregada de fantasmas, monstros folclóricos e noites apertadas na cama, que poderiam ser amenizadas se houvesse a coragem necessária para procurar um banheiro. Nada de mais acontecia, ou melhor quase nada de mais acontecia. Quase.

Inesperadamente seu carro deu um forte solavanco; seus sentidos rapidamente entraram em sinal de alerta, o freio foi acionado. Respirando fundo ele desceu, verificou os pneus; nenhum estava furado.

De posse de uma lanterna, caminhou na direção do obstáculo que havia se interposto em seu caminho. Imaginava que havia atropelado algum pobre animal - naquela região era muito comum a morte de animais na auto-estrada.

O facho de luz alcançou a pobre criatura que jazia no asfalto. Seu sangue congelou, um pavor indescritível apossou-se de seu ser. Aquilo não era um animal. Ali no asfalto havia um corpo, um homem, deitado de costas. Tinha cabeça e mão direita decepadas. Usava uma camisa xadrez e calças jeans muito sujas. A cena era apavorante, a vontade de correr foi aumentando e só com muito controle ele permaneceu ali.

Certificando-se de que estava só, apontou sua lanterna em todas as direções. A não ser por um espantalho desengonçado e pendendo de uma cruz, nada mais havia ali que parecesse vivo. Examinou bem o corpo: a mão e cabeça que faltavam não estavam nas imediações, havia muito sangue, como se o pobre homem tivesse morrido barbaramente. O terror teve uma rápida metamorfose para o ódio, e ele desejou por um curto momento colocar as mãos no ser que havia cometido tal barbárie.

O ódio voltou a ser terror quando pensou que aquilo poderia ter sido obra de algum animal, embora naquela região não houvesse histórico de predadores de grande porte, nem de qualquer animal que atacasse homens. No entanto, como aquilo lhe pareceu plausível, decidiu retornar ao carro, como se um sinal de alerta houvesse sido ligado. Continuou sua viagem, que seguiu sem maiores incidentes.

Os dias passaram, e ele nada disse a qualquer pessoa sobre o ocorrido. Teorizava, criava hipóteses, buscava informações. Um ataque de animal selvagem começou a dar margem até mesmo a conspirações secretas e abduções.

Decorrido algum tempo, foi pensando menos naquilo, e já quase se esquecia por completo quando, certa noite, seus sonhos foram invadidos pelas cenas daquele dia. O corpo estava lá, a auto estrada, o espantalho...mas ele não estava mais na cruz, estava em pé, a fitá-lo.

O sonho o incomodou. Na verdade, o espantalho fora da cruz o incomodou, mas aquilo foi tomado como um mero sonho. Noites depois, um novo sonho: dessa vez as imagens eram difusas, havia algo mais ali, quase pode ver alguém ou alguma coisa atirando aquele corpo no asfalto; e o espantalho continuava em pé. fitando-o.

Os dias então começavam a passar mais lentamente. Ele estava nervoso, com os olhos perdidos ao longe, e houveram mais sonhos. Dessa vez, viu uma silhueta, parecia alguém...algo de feminino dançava naquelas sombras. Dessa vez o espantalho lhe sorria.

Um misto de medo e curiosidade o assaltavam todo o tempo, e crescia dentro dele a sensação de que só teria paz se resolvesse aquele mistério. Novos sonhos surgiam, os detalhes aumentavam. O espantalho, dessa vez, estava parado às portas de uma velha casa. Chovia, a porta entreaberta lhe convidava a entrar, a silhueta presente em outros sonhos havia desaparecido.

Os dias passavam, a agonia aumentava. Por fim, ele decidiu que voltaria naquele local para uma última olhada, sentia-se cada vez mais impelido àquilo. A noite estava fria, e munido de botas forradas e jeans, vestiu por cima da blusa de lã uma camisa xadrez de flanela, que o ajudaria a lutar contra o frio.

A viagem foi rápida, a ansiedade aumentava à medida que se aproximava do local. Lá chegando, parou o carro e pegou sua lanterna. Já não havia mais vestígios do que presenciara: sem sangue, sem marcas. Imaginou que o corpo havia sido descoberto pela policia, retirado, e que agora estavam a investigar o ocorrido. Com sua lanterna olhou em volta - nada havia ao redor. Caminhou a esmo por alguns metros e nada encontrou. Começou a rir-se de si mesmo, contornou uma grande pedra que escondia atrás de si um pequeno carreiro, que resolveu seguir.

Cerca de trezentos metros à frente observou que o céu se fechava. Pensou em voltar, mas um relâmpago revelou-lhe logo ali uma casa, que não podia ser vista em meio à escuridão.

As histórias macabras da infância lhe voltaram à mente. Um pequeno vacilo foi logo suplantado por sua coragem masculina - precisava provar a si mesmo que aquilo tudo era uma bobagem.

Aproximou-se da casa, não havia cercas, nem animais. Um novo relâmpago mostrou-lhe apenas uma cruz da qual pendia um maltrapilho espantalho. Uma onda de pavor percorreu seu corpo, mas ele já não conseguia sair dali. Aproximou-se mais, a velha casa estava no escuro. Tocando temerosamente a porta, abriu-a e entrou.

Lá dentro, uma surreal cenografia o esperava: a casa estava ludicamente iluminada por uma fogueira que ardia imponente numa bela lareira; a sala, ricamente decorada, em nada lembrava as ruínas que se viam do lado de fora. Seus olhos correram por todo o recinto, até encontrarem subitamente um outro olhar.

Uma mulher, vestida de negro, lhe sorria, e a delicadeza de seus gestos o encantou imediatamente. Sentia-se docemente violentado por aquele olhar. Sem qualquer reação, viu quando ela sorveu um último gole do mais vermelho vinho que já havia conhecido, e aproximou-se devagar, abrindo seus braços.

O abraço recebido foi terno, carregado de promessas e desejos. Um calor percorria seu corpo entorpecendo-o. Podia sentir aqueles seios roçando-lhe o peito, estava pronto para a entrega. Antes de sentir um beijo quente e embriagador a roçar-lhe o pescoço, pôde ainda ouvir as poucas palavras que aquela extraordinária mulher lhe segredou:

- Eu sou Leanan Sidhe.

A noite estava fria e escura, um princípio de chuva já se precipitava do firmamento, quando o sonolento motorista subitamente foi desperto por um solavanco.

Descendo de sua pick-up, protegido por uma capa de chuva e com lanterna em punho foi verificar o ocorrido. Estremeceu com a mórbida visão de um cadáver jogado no asfalto, sem a cabeça e a mão direita; usava calças jeans muito sujas, camisa xadrez e botinas forradas.

Apavorado, direcionou sua lanterna ao redor em busca de uma resposta para tão terrível cena, mas nada encontrou ali que pudesse lhe dar respostas. Sua angústia era partilhada apenas por aquele corpo decapitado e por um velho espantalho desengonçado, que pendia de uma cruz.