A Saga de Leanan & Scarecrow - conto 3 - TAKE ME

O dia quente e abafado de sábado finalmente terminava. Uma brisa começava a soprar, trazendo a promessa de uma noite de temperaturas mais amenas. Uma noite que se anunciava negra e estrelada.

O tédio já se fazia sentir naquele espírito atormentado, e só não era pior pela expectativa do prazer que supostamente o aguardava sob o manto noturno.

Sentindo excitação e sensualidade, dirigiu-se ao guarda-roupas, à procura do traje adequado à ocasião, algo que lhe conferisse a familiaridade inexistente com este mundo, no chamado “horário comercial”. Maquiagem branca, olheiras cuidadosamente delineadas, um lindo e antigo lenço bordado e um ank adquirido às pressas numa loja qualquer compunham o visual de mais um postulante ao universo underground.

Um belo jantar e a última faixa de um desconhecido CD de vocais graves. A personagem estava pronta. O palco estava à sua espera.

Intermináveis minutos dentro de um ônibus renderam-lhe olhares inamistosos de skinheads, piadas infames dos manos, e a necessidade de muita paciência. À medida em que o ônibus avançava, via pela janela que o número de adolescentes vestidos de forma semelhante à sua aumentava... estava, enfim, chegando!

Alguns minutos gastos na fila, e a escuridão do ambiente já podia ser avistada. Imediatamente lançavam-se aos seus olhos pessoas que dançavam, bebiam e tocavam-se lascivamente. Um mal disfarçado sorriso veio-lhe ao rosto. “A noite promete”.

Música, dança...drogas, bebedeira...diversão, luxúria e transe dividiam o mesmo espaço.

Com a consciência alterada por substâncias químicas e adrenalina, entregou-se ao ambiente. Foi então que seu olhar cruzou com o de uma figura que parecia não pertencer ao local. Ela não dançava, não conversava, não sorria. Refugiava-se num canto escuro, apenas observando.

“You'll never understand, the meaning in the end...”

A música chamou sua atenção. Havia esperado a noite toda por ela. Num sinal de aprovação, olhou para o DJ, que parecia controlar a multidão ao seu bel prazer, executando coreografias que eram imediatamente imitadas pelos demais. Achou curioso e exótico o DJ estar naquela estranha roupa de espantalho, mas em festas como aquela, nada era motivo de surpresa.

A música causava-lhe incontroláveis efeitos. Voltou a olhar aquela ruiva inamistosa, e avançou serpenteando em sua direção.

“Your purity and rage, your passion and your hate, you promised more than bliss, with your god and with your kiss”

Aproveitando-se da própria letra da música, soprou-lhe um beijo. A fascinante ruiva lhe assentiu com um sorriso. Sentindo-se mais confiante, aproximou-se, cantando os versos da canção, como a lhe fazer uma ode.

“...I'm on my knees, I beg your mercy, my soul is my loss, I'm well hung from your cross...”

Tocou sua mão, convidando-a a entregar seu corpo à música. Dançava e movia as mãos em gestos sensuais, chamando-a à pista, mas a moça permanecia interte; apenas lhe sorria e permitia que segurasse sua mão. Postando-se mais perto, aproximou seu rosto ao dela.

“...Take me, take me in your arms my love and rape me, don't hide behind your rage I know you love me, and always will...”, cantava, como a dirigir-lhe uma súplica.

Atendendo aos seus anseios ela o abraçou, puxando-o para junto de si. Os corpos se entrelaçaram, enquanto as pessoas na pista continuavam mergulhadas em transe. Muitos eram os universos que conviviam lado a lado, mas nenhum deles parecia perceber o outro.

“...You're my possession, of that my love there really is no question, don't hide behind your rage, I know you love me, and always will...”

Ainda abraçados e alheios ao êxtase reinante na pista, ela arranhou-lhe as costas fortemente, arrancando-lhe expressões de dor dionisíaca...

“...Take me...”

Carícias caminhando paralelas à violência.

“...Rape me...”

Percorria-lhe o corpo o arrepio causado pelo atrito de unhas...e dentes!

“...Love me...”

Nem todos os desejos podem ser satisfeitos.

“Take me...”

O público continuava em hipnose coletiva, desejando desejar, e ninguém se importou quando um corpo caiu abafadamente ao chão, a garganta dilacerada. Em tal ambiente, performances como aquela já eram esperadas. Nada mudou: todos dançavam, o DJ continuava no controle...

...e no canto escuro, a bela ruiva delicadamente limpava os lábios num lenço bordado. Um troféu a mais na sua extensa galeria de caça!