Antes da Meia-Noite (*)
 
           
Príncipe Felipe, no dia do aniversário de 21 anos, se casaria. Porém, acordou com um gosto acre na boca. O palácio despertara cedo para ultimar preparativos. A eletricidade corria no ar. O mestre de cerimônias, gordo e calvo, dava ordens sem cessar exaurindo-se ao passo que sugava de todos as mínimas gotas de suor. Até o final do dia os servos sabiam que estariam exaustos, mas trabalhavam com ânimo redobrado diante do farto pagamento que os esperaria.
            Felipe gostaria de estar animado, mas não sabia o que o esperava. Conheceria a esposa somente no momento exato da cerimônia. Abriu as cortinas pesadas e vermelhas reluzindo o sol no rosto. Bocejou, enquanto três pássaros azuis pousavam na mansarda. Fez uma reverência aos três:
            - Bom dia, senhores. – Para sua surpresa, um deles respondeu:
            - Não sabe o que te espera.
            - Não sabe mesmo. – Emendou outro.
            - Boa sorte, se puder... – Disse o terceiro antes de voarem para longe.
            O Príncipe ficou aterrorizado. Não pelo fato dos pássaros falarem, o que era comum em um reino encantado, mas pelo que lhe disseram. Aprontou-se rapidamente e mandou chamar o Mago Real. Ficou aflito, por que as horas corriam e o Mago tardava. Quando chegou já soaram as 12 badaladas do meio-dia e o tempo virara ameaçando chuva torrencial.
            - Alteza? – Fez o Mago uma reverência ao entrar no salão real.
            O Príncipe contou-lhe o que ocorrera. O Mago, parente distante do famoso Merlin, tirou do baú que um vassalo carregara uma pesada bola de cristal. Estendeu um tapete persa negro com enigmáticas escrituras douradas e sentou sobre o mesmo tendo a bola diante de si e cruzando as pernas ao estilo oriental. Diante da aflição do Príncipe, recitou dezenas de frases em línguas estranhas. Diante dos olhos apertados de agonia do noivo, a bola esfumou-se. Figuras estranhas apareceram no seu interior. O Mago abriu os olhos e ficou atônito. Encarou o Príncipe como se estivesse diante da face da própria morte:
            - Alteza?
            - Sim?
            - O Senhor, nessa noite, diante do altar, não poderá dizer ¨não¨ e nem ¨sim¨ quando lhe perguntarem se aceita se casar até que chegue a meia-noite.
            - Meia-noite? O casamento está marcado para as 20 horas. Como irei fazer?
            - Atrase-se.
            - Atrasar-me por 4 horas?
            - Sim. Eu posso dar um jeito...
            - E depois? O que faço?
            - Depois, poderá aceitar ou recusar, a escolha será sua e não fará mais diferença.
            O dia correu rápido e, quase à hora da cerimônia, o Rei e a Rainha souberam que o Príncipe estava passando muito mal. Foram vê-lo e quase quedaram de espanto quando o viram literalmente com a língua azul e ardendo em febre. O Mago postado ao lado, com ares de que não era nada com ele.
            - O que houve? – Perguntou o Rei?
            - O Príncipe está doente. – Respondeu o Mago.
            - No dia do casamento? – Falou a Rainha. O Rei sentou-se em uma poltrona em desespero.
            - Se esse casamento não se consumar, o Reino de Casaca nos declarará guerra. Esse matrimônio é a única maneira de termos paz.
            - Sei da gravidade, Majestade, disse o Mago, farei o que puder, mas a cerimônia irá se atrasar.
            - Daremos um jeito de entreter a noiva e sua família. Explicarei o caso...
            Às 20 horas, a comitiva da Princesa chegou trazendo Pai e Mãe, duas personagens carrancudas.
            - O Rei de Casaca ficou irado quando soube que a Cerimônia se atrasaria. Teria declarado guerra ali mesmo, se não fosse pelos apelos da sua Rainha.
            - Se não casarem até a Meia-Noite, considere o trato desfeito. – Disse o Rei de Casaca.
Muitos festejos foram organizados para entretê-lo. Nesse ínterim, o Príncipe já estava melhorando, pois o efeito da poção que lhe fora ministrada passava. O Rei de Casaca exigia logo o fim das danças e da música e o início do matrimônio. A Noiva, sob um denso véu em seu lindo vestido branco, esperava em um cômodo junto à sua mãe. Faltando meia-hora para a meia-noite, o Rei de Casaca ameaçou deixar o baile, porém, nesse exato momento, trombetas anunciaram que o Príncipe entraria. O Bispo posicionou-se. O Príncipe, visivelmente abatido, pediu mil desculpas pelo seu mal-estar. O Rei de Casaca era pura fúria:
            - Vamos logo com a cerimônia.
            Com o Príncipe no altar, trombetas soaram e cânticos majestosos cobriam a entrada da princesa. O Mago, impaciente, consultava o relógio. Os ponteiros desaceleravam sua marcha para o Príncipe e corriam desesperadamente para o Rei de Casaca. A Princesa chegou no altar e o véu foi erguido. A multidão quedou de susto emitindo um ¨Oh¨ de horror.
            - O que é isso? – Perguntou o Príncipe diante de uma mulher muito, muito mais velha aparentando ter 200 anos.
            - Fui vítima de um feitiço. – Respondeu a princesa. – Se você não me aceitar até a meia-noite de hoje, quando completo 18 anos, sabendo como eu sou, ficarei assim eternamente. No entanto, se disser sim, voltarei a ser bela e seremos felizes para sempre...
            - O Príncipe olhou para o Mago que balançou a cabeça negativamente.
            O Rei de Casaca estava aflito. Os pais de Felipe estavam indignados:
            - Por que não falaram isso antes?
            - Não podíamos. – Disse o Rei de Casaca. – O feitiço somente poderia ser revelado momentos antes da cerimônia, ou o encanto duraria para sempre.
            O Príncipe olhou no fundo dos olhos da princesa. Tirou uma das luvas que a vestiam e percebeu que, apesar do rosto envelhecido, sua mão era de uma maciez de seda. Virou-se para o Bispo e ordenou:
            - Já é quase meia-noite. Faça a pergunta.
            Para surpresa de todos, o Príncipe respondera:
            - Sim, eu aceito.
            - Seu idiota! – Bradou o Mago.
 
            - Cale-se Mago. – Ordenou o Rei. Nisso, para surpresa de todos, a Princesa transmudou o rosto bi-centenário em uma linda jovem, arrancando um ¨oh¨ de admiração de todos.
            - Não estou entendendo nada. – Disse o Rei de Casacas, ao que o Pai do Noivo intercedeu:
            - Há 21 anos esse Mago lançou terrível feitiço sobre todos nós no dia do nascimento do Príncipe Felipe por invejar a nossa felicidade. Se o Príncipe dissesse ¨não¨ a uma mulher asquerosa no dia do casamento, o que seria óbvio, o Mago ficaria ainda mais poderoso e seríamos seus escravos. Consegui modificar o feitiço com a ajuda de três bruxas, inimigas do Mago, que por ele foram transformadas em pássaros azuis interessadas em se libertar com o fim dos poderes do mesmo. Se o príncipe dissesse ¨sim¨ ou ¨não¨, o Mago, esse ardiloso, também perderia seus poderes. O único modo do Mago vencer seria nosso filho não dizer nem ¨sim¨ nem ¨não¨. Felipe não poderia saber do feitiço por ninguém, ou o Mago ficaria poderoso para sempre. Agora, à meia-noite, nosso povo poderá ser o que sempre foi.
            - E o que vocês são? – Perguntou o Rei de Casacas. O relógio badalou meia-noite. Todos daquele reino se transformaram em brutais formas assumindo a grotesca aparência de lobos famintos. A última coisa que o Rei de Casacas, sua comitiva, o Mago e a infeliz princesa viram, foram os dentes e garras daquela asquerosa raça avançando sobre seus corpos frágeis, servindo como prato a um inusitado banquete...

(****  Texto criado para atender a desafio da entidade Orkutiana: Contos de Fadas Macabros)