CORAÇÃO NEGRO

A porta se abre bruscamente dando passagem aos dois forasteiros. Atrás deles a escuridão da noite marca presença. Os homens que se encontram na taverna lançam olhares desconfiados sobre os recém chegados. A longa aba dos chapéus projeta uma sombra sobre os seus rostos ocultando a face dos forasteiros. Uma espessa e longa manta de couro sobre os ombros envolve o corpo até os calcanhares de forma que pareçam gigantes. As botas sujas dos forasteiros indicam que vieram de longe.

Ignorando os olhares e o silêncio dos outros ocupantes da taverna os forasteiros ocupam uma mesa próxima a entrada. O taverneiro, um homem robusto e de semblante severo, aproxima-se.

- O que querem? Indaga o taverneiro.

- Duas canecas do seu melhor vinho. Responde um dos forasteiros. O taverneiro caminha até o balcão e, após alguns minutos, retorna trazendo a bebida.

- São duas moedas de prata. Um dos homens deposita nas mãos do taverneiro a quantia.

- Sabe nos dizer para que lado é o mosteiro de São Sebastião? Indaga o forasteiro que está à direita da mesa.

- Rumo ao sul, através da floresta. São umas duas horas de cavalgada.

- Obrigado! Agradece o forasteiro.

- Pretendem ir ainda hoje até lá? Indaga o taverneiro.

- Sim! Responde o interpelado. O taverneiro coça a barba rala do rosto por alguns instantes.

- Nunca os vi por aqui, não sei o nome de vocês e nem quero saber, mas recomendo passarei a noite na vila.

- Por quê?

- É lua cheia. Responde o taverneiro.

- Agradecemos, mas já estamos de partida. Fala o forasteiro sentado a esquerda da mesa, cortando as palavras do outro. O taverneiro silencioso os deixa voltando para detrás do balcão. Os forasteiros permanecem por alguns minutos antes de partirem. Após montarem em seus cavalos seguem em direção a floresta.

- O que será que ele quis dizer com lua cheia? Indaga Samuel ao irmão.

- Do que você está falando?

- Do taverneiro. Insiste Samuel.

- Sei lá! De repente queria apenas nos arrumar a companhia de prostitutas. Responde Elias com olhar fixo no caminho sinuoso a sua frente. Atrás dele Samuel ergue o olhar e fita uma lua prateada pairando acima das copas das arvores. Então alguma coisa salta sobre ele, rápida como um raio. Sente o impacto do seu corpo contra o solo, seu peito dói. Uma forma negra e disforme rosna sobre ele. Os cavalos relincham nervosos. Ouve uma explosão e um intenso clarão cega-lhe.

- Samuel, você está bem? Indaga Elias erguendo-o.

- Acho que sim. O que aconteceu? Quem ou o que me atacou?

- Não sei! Quando ouvi o barulho do seu cavalo me virei e vi algo em cima de você. Joguei uma dessas e a coisa fugiu tão rápido que nem deu para saber se era gente ou animal. Samuel examina a pequena trouxa de tecido.

- O que é isso?

- É uma invenção do padre José. Aí dentro tem pólvora e prata em pó. Quando atirada no chão ela explode. Segundo ele essa mistura é capaz de espantar até mesmo o capeta. Mesmo assim acho melhor acendermos tochas. Assim Elias procura galhos de arvores e em pouco tempo há luz ao redor dos dois irmãos. Samuel passa as mãos no peito dolorido. Então percebe quatro cortes paralelos no gibão. Retira-o e aproxima da luz.

- Que criatura teria força suficiente para rasgar um gibão de couro de anta? Indaga Samuel. Elias examina-o.

- Uma onça pintada, mas aquilo não se parecia com uma. Chegou a tocar sua pele?

- Não! Ainda bem que reforçamos este gibão. Responde Samuel.

- E você ainda falou que não precisava! Vamos ter que continuar a pé, os cavalos fugiram. Os dois seguem cada um empunhando uma tocha numa mão e uma pistola noutra.

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O sol já despontava no horizonte quando vislumbram os muros e luzes do mosteiro. Ao chegarem diante dos portões chamam pela sentinela. Uma portinhola abre revelando um par de olhos assustados.

- Quem são vocês e o que desejam? Indaga uma voz tremula atrás do pesado portão.

- Somos emissários de sua excelência o Bispo Almeida. Aqui nossas credenciais. Desejamos falar com o seu superior. Responde Elias mostrando o selo Bispal. Passado alguns minutos os portões se abrem. Elias e Samuel são recebidos por um jovem padre e ao seu lado um noviço ainda adolescente.

- Boa noite! Espero que tenham feito uma boa viagem. Sou padre Carlos Lemes e meu senhor incumbiu-me de os recepcionarem.

- Obrigado, padre! Eu me chamo Elias e este é meu irmão Samuel. Não querendo abusar da hospitalidade, desejamos um pouco de comida e água antes de falarmos com seu superior. Fala Elias.

- Claro! Josias os conduzirá até o refeitório. O padre com um gesto ordena o adolescente, que obedece imediatamente. Elias e Samuel agradecem seguindo o noviço. Atravessam o pátio que no centro há uma bela fonte jorrando água. Do outro lado há uma capela com estatua de São Sebastião a entrada. Apesar da presença de inúmeras pessoas pelos corredores e salas, quase todos são noviços, o silencio impera.

Josias os acomoda numa mesa no amplo refeitório. Então é servido pão preto, chá, café, queijo e leite. Em seguida o noviço os deixa indo juntar-se aos outros nas orações matinais.

Passados alguns minutos o padre Carlos o leva até ao escritório do MonSenhor, responsável pelo mosteiro. Do lado esquerdo a entrada há uma estante, ao centro uma mesa, do lado direito um oratório com imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora e São Sebastião. Uma silhueta negra e esguia diante da janela os aguarda.

- Sejam bem vindos a São Sebastião, senhores! Saúda o MonSenhor.

- Obrigado! Agradecem os irmãos. Então ele se move, sua face delgada e pálida fita-os com indiferença.

- Sentem-se. Fala o MonSenhor. “Fui informado que vocês são emissários de sua excelência o Bispo. Mas não sei o motivo por que foram enviados”. Elias abre o alforje entregando-lo uma carta lacrada com o selo bispal.

- O bispo Almeida ordenou que entregássemos esta carta ao senhor. Fala Elias. O MonSenhor rompendo o lacre põe-se a ler a missiva.

- Pelo que pude ver sua excelência está preocupa com as mortes que ocorreram na vila. Só não compreendo a razão de tamanha preocupação aponto de envia-los até aqui, uma vez que já relatei o que ocorreu a sua excelência. Fala MonSenhor.

- Sua excelência recebeu suas cartas, mas ele está muito preocupado com o rebanho da Santa Igreja. Pois, foram dez mortos só essa semana, sendo que a ultima vitima foi um membro do mosteiro. Argumenta Elias.

- De fato foi uma tragédia o que ocorreu com frei Angelo. Eu pessoalmente investiguei todos os casos e posso garantir que foram lobos ou cães selvagens que atacaram.

- Me desculpe, padre, mas há relatos de corpos despedaçados, como cães ou lobos seriam capazes de fazerem isso? Indaga Samuel. O padre fita-o com desdém.

- É ainda muito jovem para compreender algumas coisas, mas esses animais são capazes de façanhas que até o mais experiente caçador duvida. Responde MonSenhor.

- Temos certeza, tanto nós quanto sua excelência, que o senhor empenhou em suas investigações. Mas o bispo ficará mais tranqüilo quando tiver absoluta certeza sobre o motivo e a causa dessas mortes. Intervém Elias.

- Claro! Podem contar com a colaboração minha e de todos em São Sebastião. Afinal é o tempo de vocês e o dinheiro do bispo que serão gastos. Elias e Samuel agradecem retirando-se do escritório.

- Elias se alguém me contasse da existência de uma pessoa tão pálida quanto MonSenhor eu não acreditaria. Ele parece irreal, quase transparente.

- Concordo com você. Mas vamos fazer logo o nosso trabalho e voltar para a capital da província. Fala Elias. “Eu vou verificar os aposentos do frei Angelo e você vá até o local onde ele foi encontrado morto. Chegando lá examine tudo, vê se consegue alguma pista do que aconteceu”. Os irmãos separam-se.

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Seguindo indicações, dadas por testemunhas, Samuel deixa os muros do mosteiro e segue rumo ao norte por uma estrada que corta a floresta. Havia caminhado por quase uma hora quando avista o local indicado. Saindo da estrada ele chega junto a uma rocha. Extensas manchas de sangue cobrem um dos lados da rocha. Vasculha o solo em busca de pistas. Pois, havia passado apenas dois dias da morte de frei Angelo. De acordo com o relatório foi um camponês que encontrou o corpo. Ele estava caído ao lado da rocha e a garganta tinha um profundo corte. Ao contrário do que aconteceu com outros o corpo do frei estava inteiro.

Então ergue os olhos e vê um grupo de freiras seguindo pela estrada. Samuel, intrigado, aproxima-se.

- Perdoe-me, irmãs, mas este não é um local seguro. Ele fixa o olhar na que se encontra à frente do grupo. Seus olhos claros estavam em perfeita simetria com os lábios vermelhos, o corpo coberto pelas vestes negras impregna-lhe uma beleza angelical. Samuel impressiona-se com a jovem freira.

- Estamos voltando para o convento de Santa Clara e conhecemos a região. Responde a jovem freira.

- Para que lado fica o convento? Indaga Samuel. A jovem freira indica a direção sul. “Importa-se de eu acompanha-las?”.

- O senhor é um desconhecido para nós e como eu disse conhecemos a região. Obrigada, mas não precisamos de sua companhia.

- Posso saber o seu nome, irmã? Indaga resignado Samuel.

- Eu sou irmã Teresa, esta é a irmã Maria Gertrudes e aquela é irmã Madalena. Responde a jovem freira. Em seguida elas seguem o caminho. Ele as acompanha com o olhar até sumirem na curva da estrada. Sozinho Samuel retorna ao que estava fazendo.

Examina com cuidado o ambiente ao redor da rocha. Então seus olhos captam uma trilha de sangue. Havia uma mancha maior e sucessivas manchas menores indicando a direção sul. Samuel a segue.

No mosteiro Elias visita a cela do frei Angelo, a qual resume-se num cubículo onde há uma cama, um criado mudo e um baú. Além de roupas encontrou apenas livros de orações, imagens de santos e um rosário. O frei tinha uma vida sem muito conforto, como deve ser a vida de um clérigo num mosteiro.

Depois entrevista alguns religiosos que o conhecia e segue até a biblioteca. Pois, foi informado que ele a visitou com freqüência, além do costumeiro. Chegando lá procurou saber quais os livros que mais interessavam ao frei nas suas últimas visitas.

- Sãos esses os últimos livros que Angelo leu. Fala o bibliotecário ao colocar uma pilha de livros sobre a mesa. Elias agradece passando a examina-los com atenção.

Samuel chega diante de um enorme e extenso muro de pedra, é onde termina a trilha de sangue. Ele constata que está diante do convento de Santa Clara. Caminha até a entrada e identifica-se para a freira como emissário do Bispo. Ela o conduz até a presença da Madre Superiora.

- Seja bem vindo ao Convento de Santa Clara, meu jovem! Saúda uma sorridente senhora de pequena estatura.

- Obrigado, Madre! Eu e meu irmão fomos enviados por sua excelência o bispo para investigar a morte do frei Angelo.

- Nós lamentamos muito a morte do jovem. Que Deus e seus anjos cuidem de sua alma. A Madre faz o sinal da cruz.

- A senhora o conhecia? Indaga Samuel.

- Sim! A cinco anos, quando o teto da capela caiu, ele e mais dez outros noviços foram enviados pelo MonSenhor para ajudar-nos na recuperação. Era alegre e prestativo. Lamentável o que aconteceu. A presença de lobos sempre foi aceita neste vilarejo, mas agora está se tornando um problema. Comenta a Madre.

- Lobos, existem lobos nos arredores? Surpreende-se Samuel.

- Sim! Os camponeses sempre reclamaram que suas ovelhas apareciam mortas, mas de uns anos para cá a população de lobos deve ter aumentado consideravelmente para que ataquem até seres humanos. A noite é possível ouvi-los uivando ao redor do convento. Samuel permanece pensativo por alguns instantes.

- O frei Angelo retornou aqui após a restauração da Capela?

- Sim! Ele estava fazendo uma pesquisa e consultou nossa biblioteca algumas vezes. Ele conversava com irmã Teresa, pois, ela é encarregada dos livros.

- Irmã Teresa, a de olhos claros?

- Sim! De onde a conhece? A Madre volve os pequenos olhos para Samuel.

- A caminho daqui encontrei-a na estrada.

- Ela e mais duas outras vinham da vila onde levaram mantimentos para um camponês doente. Explica-se a Madre.

- Madre foi uma honra conhecê-la, mas tenho que continuar meu trabalho. Com a sua permissão partirei. Fala Samuel

- A honra foi toda minha. Quando desejar pode retornar. A Madre acompanha Samuel até a saída.

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De volta ao mosteiro Samuel dirige-se aos aposentos onde está seu irmão Elias. Encontra o irmão mais velho atrás de uma enorme pilha de livros.

- Que livros são esses? Indaga Samuel.

- Esses foram os livros que frei Angelo estava lendo antes de morrer. Responde Elias sem erguer os olhos. Samuel aproxima-se e lança um olhar nos títulos dos livros.

- Sobre o que ele estava lendo? Elias retira o olhar de sobre o livro e fita o irmão mais novo.

- Lobisomem.

- Lobisomem? Mas o que exatamente? Indaga Samuel.

- Pelo o que pude perceber, até agora, tudo que se conhece sobre essas aberrações. Ele iniciou sua pesquisa estudando a lenda do rei Licaão, que foi transformado em lobo após servir carne humana a Zeus. Há também referencia aos lupercais em Roma antiga. E foi até onde pude perceber.

- Mas o que ele procurava?

- Ainda não sei. Mas o que você descobriu?

- No local onde encontraram o corpo do frei descobri uma trilha de sangue que me levou até o convento de Santa Clara. Lá descobri que o bom frei também visitava a biblioteca. Outro detalhe que me chamou a atenção foi que as mortes aconteceram no perímetro compreendido entre o convento e o mosteiro. Outro fato, também curioso, é que o relato de mortes violentas intensificou-se de uns cinco anos para cá.

- Isso é interessante! Fala Elias.

- A Madre Superiora me relatou que neste mesmo espaço de tempo, durante a noite, é possível ouvir os lobos uivando ao redor do convento.

- E daí? Indaga Elias.

- Nada de mais. No entanto consultei aldeões e caçadores da região e todos afirmaram que as alcatéias, a séculos, não descem da montanha. Mas Pedro, ancião da aldeia Sul, me disse que já viu um lobo rondando o convento e que, por tudo que é mais sagrado, jurou que era o maior lobo que já viu.

- Isso é muito interessante. Verifique mais sobre a presença de lobos nos arredores. Fala Elias voltando o olhar para os livros a sua frente.

- Elias o que o frei estava fazendo de noite fora dos muros do mosteiro? Indaga Samuel. Elias ergue novamente o olhar na sua direção.

- Isso também me intrigou. MonSenhor me disse que ele estava fazendo pesquisa sobre uma espécie de coruja que habita a floresta local.

- Mas por que ele lia sobre lobisomem e não sobre coruja?

- Já lhe disse que não sei. Impacienta-se Elias.

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Elias e Samuel caminham silenciosos pelos corredores que conduzem até a sala de MonSenhor. A frente dos irmãos vai o noviço Josias. O jovem parece incomodado com a presença de Elias e Samuel.

Ao entrar no escritório do clérigo encontram ao seu lado o padre Carlos. Ele os saúda retirando-se em seguida.

- Por favor, sentem-se. Fala MonSenhor. “Hoje está fazendo vinte dias que vocês chegaram aqui, como estão indo as investigações?”

- Estão em andamento. Responde Elias.

- Claro! Mas já descobriram alguma coisa além do que eu informei? Insiste MonSenhor.

- Hoje partiremos de volta a capital e relataremos ao Bispo o que descobrimos. Sugiro que encaminhe sua solicitação a sua eminência. Completa Elias inabalável. MonSenhor o fita demoradamente.

- Evidentemente farei isso. Quando partirão?

- Nesse exato momento. Nossa bagagem já se encontra no lombo dos cavalos nos aguardando no pátio. Obrigado por sua cooperação. Agradece Samuel.

- Sou eu que agradeço a vocês. Tenham uma boa viagem. Os irmãos deixam o escritório do clérigo e rapidamente chegam junto a sua montaria.

- Preparou tudo como lhe pedi? Indaga Elias ao irmão.

- Sim! Responde Samuel.

- Ótimo! Não quero ter surpresas desagradáveis. Rosna Elias. Então partem do mosteiro de São Sebastião.

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A noite chega com o seu manto negro cobrindo o mundo. Duas figuras sombrias e silenciosas deixam os portões do mosteiro de São Sebastião caminhando na direção da floresta. Após alguns minutos chegam a uma clareira onde encontram o terceiro homem que passivamente contempla o céu.

- Pensei que não viriam. Fala o contemplador do céu.

- Como não viríamos? Temos que cumprir nossa maldição. Retruca um dos recém chegados. O contemplador sorri.

- Essa é a diferença entre vocês e eu: para mim isso não é maldição, mas poder dado por Deus.

- Não profira essa blasfêmia, Carlos. Repreende um dos recém chegados. Carlos sorri com escárnio.

- Blasfêmia? Nós somos as blasfêmias, MonSenhor. Carlos lança o olhar sobre o jovem ao lado que, de joelhos, agarra-se a um crucifixo. “Não adianta rezar, meu caro Josias, nada o livrará da sua sina”.

- Sina? Você é o responsável por todo o mal que eu causo. Enfurece-se o noviço.

- Ora, vejam vocês, quem nos visita esta noite? Assustados MonSenhor e Josias volvem o olhar na direção da floresta de onde dois homens emergem. “Os irmãos Elias e Samuel. Eu senti o cheiro de vocês a quilômetros”. Fala com ironia Carlos.

- Que surpresa para nós descobrirmos tão rápido o líder da matilha. Responde Elias com o olhar fixo sobre Carlos.

- Não seja modesto, meu caro Elias. Reconheci o seu valor desde aquela noite em que os interceptei na estrada que leva até o mosteiro. O olhar sinistro e o sorriso maléfico de Carlos recaem sobre Samuel. “Mas que noite fantástica essa. Veja quem, também, nos brinda com sua agradável presença?” todos movem o olhar na direção indicada pela mão de Carlos. Uma figura feminina arqueada, nua, com os cabelos desgrenhados e rosnando feito um lobo aproxima-se do grupo.

- Foi por causa dela que você, Carlos, matou frei Angelo. Afirma Samuel.

- Surpreendente, meu jovem, a sua capacidade mental. Debocha Carlos. A mulher-lobo move o olhar na direção de Samuel. Apesar do rosto sujo e transfigurado ele reconhece os olhos claros e belos de irmã Teresa que o encantaram desde a primeira vez que os viu. “Ela é o nosso ‘bichinho’ de estimação. A jovem freira é totalmente humana, mas sofre de uma grave doença mental. Em noites de lua cheia acredita que é um lobo. Assim sai por aí a correr entre os animais e quando o dia nasce volta a sua antiga e misera condição humana. Não se recorda de nada, apenas ora aos céus pedindo perdão e que não tenha ferido ninguém”. Acrescenta Carlos que se aproxima da mulher-lobo. Ela rosna furiosa.

- Licantropia é a moléstia que a tormenta. Mas com vocês é outra coisa que acontece. Interfere Elias.

- Do que você está falando? Indaga temeroso Josias.

- Calma, Josias, nós sabemos o que vocês são e como chegaram a este ponto. Iniciamos as investigações pelo período que os camponeses relatam da primeira aparição de um enorme lobo aqui, nessas redondezas, ou seja, uns dez anos. De lá para cá se tornou comum encontrar ovelhas e homens mortos em noite de lua cheia. Somente a cinco anos é que o índice de mortos elevou-se. Fala Samuel. Após um breve momento de silêncio ele retoma a fala. “Então verificamos os relatórios sobre as pessoas que chegaram ao mosteiro e ao convento nesses períodos. Constatamos que, ao menos uns onze anos, o padre Carlos está no mosteiro e dos oito clérigos que chegaram na mesma época somente ele ainda permanece aqui. Os outros foram transferidos para outras localidades, muitos se tornaram abades, outros ocupam cargos importantes dentro da Santa Igreja”.

- A cinco anos, de acordo com o oficio enviado por sua excelência o bispo, MonSenhor foi enviado para assumir a direção do mosteiro. O acompanhava frei Angelo e você, Josias. Então passamos a investigar cada um separadamente e descobrimos coisas interessantes. Acrescenta Elias.

- Mas afinal de contas do que vocês estão falando? Irrita-se Monsenhor.

- Acalme-se, Monsenhor! Acho que não precisamos encenar para os nossos amigos Elias e Samuel. Eles já conhecem o nosso pequeno segredo. Mas espero que não demorem muito, pois, já é quase meia noite e creio que não irão gostar do que virão. Fala confiante Carlos. Elias se aproxima dele fitando-o nos olhos.

- Acredite, não temos medo de vocês, criaturas do inferno. Carlos sorri zombeteiro.

- Veremos até onde vai sua coragem, meu amigo. Nessa floresta nós somos os caçadores e gente como vocês são caças. Zomba Carlos.

- Acha que não sabemos lidar com monstros como vocês? Acredita que somos meros camponeses? Fala Samuel.

- Claro que não, meu amigo. Quanto mais difícil for a caçada mais ela me estimula, pois, é o desafio que aguça os instintos do caçador, essa é uma lei natural. Argumenta Carlos.

- Vocês são aberrações, nem homens, nem feras, criaturas amaldiçoadas pelo Todo Poderoso. Fala Elias.

- Devo discordar de você, meu amigo. Se formos amaldiçoados pelo Todo Poderoso o que pensar de Sua suprema sabedoria quando permite que seres humanos matem cruelmente seu semelhante, que mães afoguem seus filhinhos indefesos, que pais torturem seus rebentos. Não vou questionar a vontade divina, apenas aceito minha condição como parte dos seus desígnios. Talvez sejamos instrumentos de Sua vontade, ou, quem sabe, sejamos servos de Sua santa ira, ou ainda, estejamos no mundo para castigar os viventes como o objetivo de os fazerem crer Nele. Não sei a resposta, mas de uma coisa estou certo, não somos amaldiçoados, somos seus mais fieis vassalos. Então Carlos, banhando pela luz prateada da lua cheia, cai de joelhos contorcendo-se de dor, seu rosto transfigura-se, suas mãos e pés tornam-se garras, seus gritos tornam-se urros. Ao seu lado Monsenhor e Josias também sofrem a mesma metamorfose. Em poucos minutos os três clérigos transformam-se em lobisomens. Uníssonos uivam. Suas alvas presas reluzem ao luar, os corpos estão cobertos de pêlos negros e seus olhos vermelhos fitam Elias, Samuel e a mulher-lobo. Num ímpeto Elias lança ao solo uma pequena trouxa que se desfaz numa luminosa explosão. Monsenhor e Josias ficam atordoados, mas Carlos, com as garras, cobre os olhos. Elias corre, recuperados os lobisomens Monsenhor e Josias saem no seu encalço. O lobisomem Carlos fita Samuel, que procura proteger a mulher-lobo.

- Venha, lobão. Desafia Samuel a criatura que rosna a sua frente. O lobisomem avança. Samuel desfere-lhe um golpe com um bastão em seu ombro esquerdo. A criatura infernal urra de dor e no ombro atingido fica uma profunda queimadura. “Isso é prata, gostou do sabor?” o lobisomem uiva furiosamente. Samuel, segurando a mulher-lobo pelas mãos, corre. Atrás deles segue a fera.

Elias é cercado pelas duas outras criaturas. Eles andam em círculos ao seu redor. Então Elias desfere certeiros golpes com seu bastão de prata. Feridos os lobisomens urram. Elias volta a correr.

Samuel e a mulher-lobo correm para dentro da floresta. Atrás segue o lobisomem Carlos. Com um salto coloca-se a frente de Samuel. Seus olhos vermelhos parecem chamas. Furiosamente a fera tenta atingir Samuel com suas garras. O jovem com habilidade sobre humana desvia dos golpes. A fera urra de ira e dor quando Samuel acerta-lhe novamente com o bastão de prata. Mas o lobisomem é rápido e num movimento preciso consegue retirar das mãos de Samuel o bastão. Um sorriso sombrio e maléfico surge na face da fera.

Elias, ofegante, retém os passos e encara as criaturas demoníacas que se aproximam. Elas também detêm os passos. Por algum motivo desconfiam daquele homem. Feito animais farejam o ar.

- O que há? Não estão com fome? Vamos, venham, seus monstros, venham me pegar. Elias, corajosamente, desafia as feras. Os lobisomens rosnam ameaçadoramente.

Samuel é arremessado contra uma arvore. Atordoado vislumbra o lobisomem aproximar-se. Então a mulher-lobo salta sobre a fera. Ela se debate, mas é facilmente dominada pelo lobisomem. A garra da fera aperta a sua garganta, a mulher-lobo sufocada perde os sentidos. A besta-fera deixa o corpo da vitima cair ao solo.

O lobisomem Josias urra e em seguida salta sobre Elias. Mas antes que toque na vitima é surpreende por uma rede. Envolvido por correias de couro a besta-fera vai ao chão. O lobisomem urra e debate-se, no entanto não consegue libertar-se.

- Pode ficar calminho aí, meu caro! Esta rede está sob encantamento e nada, absolutamente nada, do que fizer irá libertá-lo. Fala Elias. Outro lobisomem fita-o com fúria e rosnando avança.

O lobisomem volve o olhar na direção de Samuel, mas é surpreendido por um golpe certeiro em seu focinho. A besta-fera urra de dor e antes que retome o equilíbrio recebe novos golpes. Samuel ataca-o com o bastão de prata, transformar-se no instrumento da fúria. Ele golpeia a fera como se quisesse arrancar-lhe a pele ou rasgar-lhe o peito. A fera cai inconsciente. Só então Samuel sente a forte dor na mão direita, observa os dedos e o dorso inchados.

Ignorando a própria dor Samuel aproxima-se da mulher-lobo. Ofegante ela move o olhar em sua direção. Os belos olhos claros da irmã Tereza irradiam alegria, seus lábios contorcem num sorriso ao vê-lo. Lentamente os olhos se fecham para o mundo e o seu sorriso se desfaz, a chama da vida se apaga. Samuel sente-se triste e uma dor maior que a da mão invade seu coração.

Elias não se move, apenas encara o monstro a sua frente. O lobisomem avança veloz. Mas a poucos metros de Elias a fera cai num fosso e uma rede, igual a que envolveu o outro lobisomem, também o envolve. Urra, agita-se e tenta livrar-se, no entanto logo percebe que é inútil. Do alto Elias o observa em silêncio.

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Os primeiros raios da manhã caem sobre os irmãos Elias e Samuel que fitam as três carroças a sua frente. Cada um dos veículos carrega um compartimento metálico prateado que reluz sob a claridade da manhã.

- Bom dia, meus filhos. Saúda o pequeno homem calvo ao aproximar-se.

- Bom dia, padre José. Responde os irmãos uníssonos.

- O que houve com a sua mão Samuel? Indaga padre José.

- Me feri quando lutava com o lobisomem. Responde.

- Deixe-me vê-la. Então com cuidado paternal o padre pega a mão de Samuel e aplica-lhe uma pomada aromática, a qual retira do alforje que sempre trás a tira colo. Em seguida a envolve com ataduras e uma tala de madeira. “Pronto! Graças ao bom Deus, não está quebrada. Em alguns dias ela estará boa novamente”. Fala o padre.

- O que são essas carroças? Indaga Elias.

- São celas para os lobisomens. Aí dentro eles não retornarão a forma humana. Para isso tínhamos que encarcerá-los antes do raiar do sol. Há, em pontos estratégicos, entradas de ar, o que garante que chegarão vivos até a presença de sua excelência o Bispo Almeida. Responde padre José atando o último nó no pulso de Samuel.

- Essas celas são fortes o bastante para detê-los? Indaga Samuel.

- Laterais e piso é forrada com placas de prata e reforçada com barras de aço. Se por acaso tentarem fugir tocarão a prata, o que lhes causará um desconforto; se conseguirem fugir, algo praticamente impossível, os guardas estão armados com dardos de prata e tem ordem de alvejá-los. Dessa forma seguiremos numa tranqüila viagem até a capital. Mas agora me contem o que aconteceu aqui.

- Como havíamos informado a vossa excelência, o bispo Almeida, ao investigar na biblioteca os livros que frei Ângelo leu, constatamos que somente o padre Carlos havia lido os mesmos livros, isso cinco anos antes. Fala Elias.

- Nessa mesma época os camponeses relatam que viram um enorme lobo a rondar a vila. Desde então, em noites de lua cheia, tornou-se comum encontrar ovelhas e pessoas mortas. Acrescenta Samuel.

- Que livros são esses? Indaga padre José.

- São livros sobre ocultismo e criaturas demoníacas. Em todos há menção sobre como se tornar lobisomem. Responde Elias.

- Qual seria o interesse de Carlos e Ângelo sobre esse tema?

- Padre José, cada um tinha objetivo diferente: o padre Carlos, sujeito ambicioso e sem escrúpulos, talvez por ódio ou pura maldade, procurava uma forma de tornar-se uma besta fera. Responde Elias

- Eu acredito que o fato de ver, ao longo do tempo seus companheiros conquistando cargo e prestigio dentro da santa igreja, o tenha motivado. Então, ele pesquisa e encontra a fórmula adequada, a qual é: em noite de lua cheia, colocar as próprias roupas sobre a trilha do lobo, amarrar as pontas, urinar em cima, depois rolar sobre elas, recitar o encantamento e esperar. Foi assim que o padre Carlos tornou-se lobisomem. Acrescenta Samuel.

- E frei Ângelo? Indaga o pequeno padre.

- O bondoso frei queria encontrar a cura. Responde Samuel.

- Cura? Estão dizendo que o frei também era uma besta fera?

- Sim! Encontramos nos relatórios sobre os ataques que somente frei Ângelo e o noviço Josias sobreviveram para contar história. Presumo que foi aí que eles foram contaminados por Carlos. Encontramos outras anotações dele falando sobre o incidente. Nessas anotações ele pede perdão a Deus e roga por uma cura para a maldição que lhe impuseram, a qual ele não nomeia qual seja. Responde Elias

- No entanto, a única semelhança entre o frei e padre Carlos é que ambos eram conscientes dos seus atos, quando na forma de lobisomem. O frei deixou alguns relatos que, pelos detalhes, suponhamos que seja quando estava transformado. Nas linhas que escreveu ficou evidente que tentou conter a fera. Já o padre Carlos demonstrou para nós que se encantou com o poder do monstro e que se deliciava com as maldades. Por isso, acreditamos que jamais o frei tenha atacado um ser humano. Fala Samuel. “O frei buscava a cura para ele e para a irmã Teresa, apesar, que a freira sofria de licantropia, uma doença incurável”.

- Irmã Teresa sofria de licantropia? Indaga o padre José.

- Sim! Em noite de lua cheia ela, sob o dominio da doença, acreditava que era um lobo e fugia do convento perambulando pela floresta. Numa dessas fugas o frei a encontrou e a reconheceu. Desse momento em diante ele passou protegê-la, de acordo com as pistas que encontramos. Carlos queria exercer controle total sobre os outros lobisomens. Como frei Angelo escapou do seu domínio procurou feri-lo perseguindo irmã Teresa. Naquela noite os dois entraram em confronto e frei Angelo sucumbiu. Fala Elias.

- Que triste história! Que Deus em sua infinita bondade os receba em sua glória. O clérigo faz o sinal da cruz. “Vocês falaram sobre todos, mas quanto ao Monsenhor não mencionaram nada, Carlos também o contaminou?”.

- Não. O caso de Monsenhor é diferente. Verificando seus registros descobrimos que ele é o oitavo filho e caçula. Ele possui sete irmãs e , de acordo com a lenda, nessas circunstâncias a criança se torna lobisomem. Até chegar ao mosteiro ele jamais havia se transformado. Talvez, devido à proximidade com outro lobisomem, tenha desencadeado a maldição que lhe persegue. Responde Samuel.

- Certamente ele ficou confuso e abalado com ocorrido. Nesse estado foi fácil para Carlos o dominar. Acrescenta Elias.

- Graças a Deus tudo terminou bem e vocês cumpriram com louvor a missão. Sua Eminência os parabeniza e me encumbiu de lhes entregar isso. Padre José retira do alforge um saco de moedas. “Há um adicional que acrescentamos pelos riscos que correram”.

- Somos gratos! Quando precisarem sabem como nós encontrarem. Fala Elias.

- Padre poderia me responder uma pergunta? Indaga Samuel.

- Claro!

- Porquê manter estas criaturas infernais vivas?

- Meu filho, eles são representantes da Santa Igreja e mesmo assim transformaram-se em bestas feras. Como pastores do Todo Poderoso temos que proteger o seu rebanho. Oque aconteceu no mosteiro São Sebastião não pode acontecer novamente em nenhum outro lugar. Por isso temos que estudar o caso. Agora, se me permitem, tenho uma longa viagem pela frente. Que Deus os abençoe.

- Amém. Respondem unissino os irmãos. O pequeno clérigo toma assento numa das carroças. O comboio segue rumo ao oeste.

- Para onde iremos? Indaga Samuel ao irmão mais velho.

- Para casa. Responde Elias. Então ambos montam em seus cavalos e seguem em direção ao leste.

Sannyon
Enviado por Sannyon em 16/10/2010
Código do texto: T2560631
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