O décimo terceiro andar

O DÉCIMO TERCEIRO ANDAR

Conto dedicado à: Júlio Dosan, João Murillo, Jonathan e todos aqueles que acompanham meus textos

O homem chegou sob uma chuva torrencial. Vestia um casaco preto com capuz de modo que o homem uniformizado na guarita do prédio de apartamentos não pode reconhecê-lo como nenhum dos moradores. Não era bom sinal. Sobretudo naquela hora tardia da noite.

Os monitores sobre o balcão mostravam imagens de diversos locais do prédio. A garagem, a rua e os andares. E também mostrava – sem qualquer motivo aparente – a câmera do décimo terceiro andar. Não havia ninguém morando nos cinco apartamentos desse andar de modo que a câmera ali era totalmente inútil. Motivo pelo qual o porteiro evitava a todo custo olhar para o monitor que mostrava aquele andar. Não que ele fosse supersticioso e imaginasse fantasmas caminhando por ali arrastando correntes em um ruído infernal, mas era escuro demais e opressor demais. Uma vez tentara desligar aquele monitor, mas não conseguira. E quando perguntou ao arrogante do síndico, ele se recusou a responder dizendo que não era da conta dele e que apenas fizesse seu trabalho.

Paulo – pois era isto que estava escrito no crachá de sua blusa de gola alta –, descansou a caneca de cappuccino próximo ao monitor que mostrava a garagem e levantou-se pronto para o que desse e viesse. Não era a primeira vez que pedintes apareciam ali naquela hora da noite. Às vezes – raramente – Paulo guardava algumas moedas e esperava que algum deles aparecesse, mas naquela noite particularmente ele não estava de bom humor. Tinha feito uma consulta no dia anterior e descobrira que estava com uma alta concentração de nicotina nos pulmões – o que não era nenhuma surpresa se tratando dos três marços de cigarros que fumava por dia.

O estranho homem caminhava suntuosamente sobre a rua encharcada. Nesse meio tempo Paulo estudou-o metodicamente. Queixava-se de não poder portar uma arma de fogo. Achava absurdo um porteiro noturno não ter nada com que se defender. Na vez que reclamou ao síndico do prédio recebeu apenas um sarcástico “Demita-se se não estiver gostando” – teve vontade de esmurrar o metido a besta, mas respirou fundo e voltou para o seu posto. Ele tinha uma filha para criar e o seu histórico escolar com apenas a oitava série completa não lhe ajudava a arrumar bons empregos.

– Deseja algo, amigo? – perguntou ele, quando o estranho aproximou-se próximo o bastante. De seu rosto, Paulo via apenas um queixo pontudo com um cavanhaque cerrado. Os lábios eram finos e comprimidos como se o homem estivesse com uma baita vontade de defecar. Paulo reprimiu o riso. Se não estivesse tão tenso, provavelmente teria feito uma piada. Essa era sua técnica para quebrar os momentos de constrangimento que passava com as pessoas. Apelar para o humor. Mas aquele estranho não parecia que apreciaria uma piada.

– Gostaria de alugar um apartamento – anunciou o estranho com uma voz áspera e arrastada.

Paulo não compreendeu o que o estranho homem disse então se curvou no balcão de pedra na sua frente e forçou a visão através do vidro embaçado pela chuva.

– Como? Não entendi nada.

O homem repetiu, porém mais uma vez Paulo não entendeu e começou a se irritar profundamente com aquilo. Começou a achar que se tratava de um mendigo. Repreendeu-se por pelo menos ter dado atenção àquela figura ao invés de enxotá-la de uma vez.

– Olha aqui, cara – começou ele, deixando de lado seu tom amistoso de antes e passando para o trabalhador-que-precisa-sustentar-uma-filha – Não estou com muita paciência agora se tratando do horário. Se você quer alguma coisa volte pela manhã.

O homem ficou em silêncio. Não disse nada e não moveu um músculo. Paulo esperou. Quando viu que o estranho não aparentava a intenção de se expressar de forma alguma ele sentou-se em sua poltrona, abriu a revista de esportes que folheava e ignorou completamente o homem.

Contudo, antes que pudesse ler a primeira linha o homem bateu contra o vidro da guarita. Aquilo fora demais. Paulo levantou-se empurrando a poltrona com força e se preparando para ir lá fora esmurrar aquele vagabundo. Valeria a pena molhar seu uniforme tão bem passado por sua esposa. Valeria sim.

– Olha aqui, seu... – emudeceu-se. Os olhos arregalaram. Para onde diabos teria ido o homem?

Paulo debruçou-se sobre o balcão e olhou para fora. O homem tinha simplesmente evaporado! Aquilo não era possível. Ele não demorara nem meio segundo para se levantar assim que o infeliz batera no vidro. Ele enfiou a mão sob o balcão e puxou uma barra de ferro. Bem, não era uma arma, mas daria um jeito no bastardo. Com a barra escondida atrás das costas Paulo colocou cuidadosamente a mão na maçaneta da porta e girou-a bem devagarzinho. Sentiu-a girar sob sua mão então empurrou a porta metálica de supetão. A porta bateu contra a outra extremidade da guarita com um baque. Paulo saiu para a chuva com a barra erguida acima da cabeça. Olhou para o fim da rua onde alguns carros estavam estacionados. Mas nem sinal do homem.

O prédio de apartamentos ficava defronte a um matagal. Só podia ter sido ali que o vagabundo se embrenhara. A chuva já molhara os cabelos crespos de Paulo e seus ombros. Que noite estava tendo.

– Estou aqui, filho-da-puta – falou, não muito alto – Basta vim.

Girou nos calcanhares para voltar a guarita, mas parou petrificado. O homem materializara-se em sua frente. Paulo podia ver que ele sorria escarnecendo dele. Sem pensar nas consequências Paulo investiu contra o homem e golpeou-o na lateral da cabeça. Pôde ouvir um som de algo se estraçalhando, mas não era um som comum. Era semelhante a um galho que se partisse.

– Você pediu isso! – bradou ele, ofegante pela tensão do momento – Eu disse para ir embora!

O homem riu. Abriu os braços e sua roupa simplesmente caiu. Não era um homem. Era... uma espécie de inseto gigante. Parecia um besouro aos olhos de Paulo, mas ao mesmo tempo se parecia com uma daquelas asquerosas baratas D água que ele vira mais cedo na enxurrada. As pinças da criatura se moviam ritmadamente produzindo um som agudo e gasturante. A criatura moveu sua cabeça enorme e estralou-a.

– Que demônio é você?! – indagou Paulo totalmente incrédulo – Oh, Meu Jesus... Vou acabar com você!

Ele irrompeu sobre o monstro, mas a criatura foi mais ágil e desviou-se. No momento seguinte, numa velocidade nada natural, cravou as enormes e afiadas pinças no pescoço de Paulo. Paulo gritou golpeando a barra contra o corpo da criatura, porém sua força estava se esvaecendo gradativamente. Fechou os olhos e apagou. Quando os abriu de novo, estava sentado em sua poltrona. Ele olhou para os lados de olhos arregalados e de forma frenética. Levantou-se e olhou para fora da guarita. A chuva tinha amainado. A rua estava deserta.

– Deus do Céu... – balbuciou ele, enquanto deixava que o corpo caísse de volta à poltrona. Passou o dorso da mão na testa suada e exalou aliviado.

Havia sido um pesadelo. Estava cansado demais. Olhou para os monitores. A garagem. Os andares. E o andar décimo terceiro ao qual não havia inquilinos. A escuridão de sempre no corredor mal iluminado. Ele pegou a caneca de cappuccino pela metade e virou-a de um gole. Ao colocar-la sobre o balcão, de soslaio, teve a impressão que vira algo semelhante a um besouro esgueirar-se pelo corredor escuro do décimo terceiro andar.

Fim.

Bruno Pereira.

08/12/2010.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 10/12/2010
Reeditado em 11/05/2012
Código do texto: T2663630
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