O Guardião do Sono Eterno (parte 1 de 3)

Ainda hoje, mais de vinte anos depois, tenho calafrios quando me lembro da face funesta do velho Epitáfio dentro do caixão. Quando ele morreu ninguém chorou, pelo contrário, os garotos do bairro quase fizeram uma festa em comemoração. É que ele não era muito cordial com os moleques que deixavam a bola cair em seu jardim da frente. O único parente presente ao funeral era um sobrinho distante que atendia por Calisto e aparentava ser tão idoso quanto o finado. Ele herdara o velho casarão e todos os pertences do tio.

Havia, porém, alguém que certamente sentiu o falecimento de Epitáfio, seu cão – e provavelmente único amigo – Duque. Só se soube da morte do velho porque naquele sábado, perto da meia-noite, suposto horário do óbito, o cachorro começou a urrar, e urrou tão alto que todo o bairro ouviu e se espantou. Para muitos, os urros “pareciam os gritos do anjo da morte”. Aquele vira-lata, durante muitos anos, fora a única companhia do falecido. O tal sobrinho também ficara com o animal.

Calisto aparentava uns “trocentos” anos de idade, era alto e esguio, de pele quase tão pálida quanto a do defunto, tinha um narigão pontudo com enormes fios brancos saindo pelas narinas. Da mesma cor eram os cabelos de sua cabeça, uma cabeleira considerável com entradas bem acentuadas. Para ser mais direto, o homem tinha um ar completamente sinistro, que se intensificava com aquele terno preto meio acinzentado pelos vários anos de uso.

Após a morte do velho, Calisto fora morar no casarão. Os garotos da vizinhança, por algum tempo, puderam brincar em paz, já que o herdeiro, diferentemente do tio, não soltava o cachorro atrás de quem deixava a bola cair no jardim. Por falar no Duque, não se via mais o animal perseguindo ninguém. Para dizer a verdade, quase não o víamos mais pela rua. Só era visto pela manhã, voltando para casa, e à tardinha, beirando a noite, saindo de lá.

Geralmente, quando o sol quebrava no fim da tarde, eu e os outros moleques dos Pinheirais costumávamos bater um racha no terreno baldio que havia na frente do casarão. Certa vez, no calor da animação do jogo, sem querer chutei a bola com uma forcinha a mais e ela acabou caindo no jardim do Calisto. Ele nunca havia reclamado dos demais garotos, então resolvi pular a mureta e pegar a bola. Para minha surpresa e terror, ao chegar do outro lado, fiquei cara a cara com aquela figura tenebrosa de pé, à penumbra do antigo carvalho.

– O senhor me assustou, senhor Calisto. – Eu estava quase paralisado.

– Veio buscar isto? – Ele estava com a bola debaixo do braço esquerdo – Ela esmagou meu canteiro de cravos.

– Desculpe-me senhor, eu não tive a intenção de...

– Tenho certeza que não. – Interrompendo minhas desculpas – Eu também não tenho intenção de furar sua bola, mas... quero que você faça algo para mim.

Eu sentia meu coração pulsar na minha garganta, quase saltando pela boca, e minhas pernas não paravam de tremer. A voz grave e rouca dele soava aos meus ouvidos como o rugido de um bicho feroz prestes a me devorar. Eu fiquei tentando imaginar o que diabos ele teria a me pedir.

– Pode falar, senhor.

– Duque tem saído de casa todos os dias no mesmo horário, já quase noite, e só volta pela manhã. Não sei o que há de errado com esse bicho. Ele sai sem jantar e quando chega, segue direto para o canto da sala. Não late, não rosna, não come, só fica deitado o dia inteiro ao pé da poltrona esperando a maldita hora de sair de novo.

– Ele deve estar sentindo a falta do dono, senhor.

– O dono dele agora sou eu. Ele vai ter que se acostumar. Quero que você o siga quando ele sair de casa e descubra o que há de errado. – Devolvendo a bola – Posso contar com sua ajuda, garoto? – Perguntou como quem desse uma ordem.

Apavorado, respondi positivamente com a cabeça e com um “sim” meio gago. Saí dali às pressas com minha bola.

No campinho, encontrei todos atônicos olhando para mim. Um silêncio fúnebre nos tomou naquele instante. Todos viram a cena de longe, por cima da mureta, e queriam saber o que havia sido conversado no jardim do casarão, só não conseguiam perguntar. O medo calava-lhes a curiosidade.

– Vamos jogar, pessoal? – Quebrei o silêncio finalmente.

– Júlio, o que você tanto conversava com o velho Calisto? – André não conseguiu conter a vontade de perguntar.

– Nada demais. – Respondi – Ele só reclamou das flores que a bola esmagou e pediu para que eu tomasse mais cuidado.

Até hoje não entendo por que não contei de imediato o verdadeiro pedido que Calisto me fizera. Apenas naquele momento achei melhor não contar. Continuamos jogando e ninguém mais falou no assunto.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 17/01/2011
Reeditado em 17/01/2011
Código do texto: T2733955
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