O Guardião do Sono Eterno (parte 3 de 3)

A curiosidade martelou minha cabeça até o dia seguinte, quando convenci André a mais uma vez seguirmos o cão. E assim o fizemos. Seguimo-lo novamente e, de forma idêntica à perseguição anterior, o perdemos de vista ao dobrarmos a esquina do cemitério.

– Droga, André! Você o perdeu de novo.

– Eu?! Você praticamente me obriga a vir nesta sua missão idiota e agora vem me dizer que eu perdi o cão de vista.

– Está bem, nós o perdemos. Mas agora vamos ter que encontrá-lo. De hoje não passa. Eu tenho que saber o que anda acontecendo aqui. Então, vamos logo entrar nesse cemitério.

– Enlouqueceu foi?! Se o senhor Pedro nos pegar aí dentro de novo, ele nos enterra vivos junto com os defuntos.

– Covarde!

Fui logo subindo pelos portões e, em seguida, meio relutante, André me acompanhou.

O cemitério estava ainda mais escuro que na noite anterior. O céu estava encoberto. Mais uma vez caminhamos pelas alamedas sombrias do São Bento em direção à sepultura do velho Epitáfio. Tremíamos muito; O frio agravado pela tensão do medo deixava nossas mãos congeladas; o vento parecia vir direto na espinha, arrepiando todo o corpo. Chegamos ao túmulo. Estava igualmente com a terra removida. O mau-cheiro era horroroso.

– Quem faria uma coisa dessas, André? Tudo bem que o velho Epitáfio não era “o homem mais amado do mundo”, mas fazer algo assim é desprezível.

Meu amigo mal conseguia se mexer, estava atônico. Quando olhei sua fisionomia apavorada, senti-me culpado. Eu sentia que tinha ido longe demais.

– Vamos embora, André! Já chega disto.

– É assim? – Com um tom de irritação – Você me força a vir numa missão suicida, me convence a pular o muro de um cemitério no escuro de uma noite nublada, me faz vir até uma catacumba aberta que fede mais que o enxofre do inferno e agora me vem dizer que acabou, que vamos embora sem descobrir nada. Não! Nós vamos ficar aqui e vamos encontrar aquele cão.

Nesse mesmo instante ouvimos um rosnado aterrorizante por trás de nós. Viramos bem devagar. Era Duque. Seus olhos assemelhavam-se a duas bolas de fogo. Meu grito ficou entalado na garganta enquanto eu fitava apavoradamente suas presas à mostra e sua saliva escorrendo entre elas. Ele rosnava alto e se aproximava de nós devagar, tentando nos acuar.

– Nós vamos morrer aqui. Pelo amor de Deus, o que vamos fazer, Júlio?

Eu não conseguia falar nada, não conseguia pensar em nada, só naquele bicho enorme nos encurralando ali naquela cova. Quanto mais ele se aproximava, mais nós recuávamos a caminho do buraco.

– Júlio...

Tentei segurar André, mas ele acabou caindo na tumba. E eu era o próximo. Já estava à beira de encontrá-lo dentro da catacumba quando ouvi um assobio. No mesmo minuto, Duque retrocedeu, olhou em direção à origem do silvo e saiu correndo até sumir na escuridão. Eu respirei aliviado por um minuto. O nó que entalara na minha garganta soltou-se e eu fui ao socorro do meu amigo.

– André? – Agachei estendendo minha mão a ele – Segura em mim.

Ele estava dentro do caixão. A chuva começou a intensificar-se e a lama aos poucos ia escorrendo para dentro da abertura tumular. André tentava erguer-se segurando em meu braço. O fedor era quase insuportável. Enfim, consegui puxá-lo. Completamente banhado pelo tijuco fétido, ele saiu do buraco.

Passamos alguns instantes parados ali na chuva, em silêncio, olhando um para o outro, ofegantes. Eu estava de cócoras, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e André, sentado às margens da poça que se formava.

– O corpo do velho Epitáfio não está no...

– Eu sei, eu vi. – Interrompi a fala de André – Meu Deus! Quem será que chamou o Duque?

A chuva não dava trégua.

– Não, Júlio! Não pode ser, mano. É impossível. Todo mundo viu o caixão. E pelo fedor que está aqui, com certeza havia um corpo dentro desta cova.

– É? E onde estará esse corpo?

– Droga! O que nós faremos agora?

Sentia meu coração pulsar na minha laringe, eu tremia de frio e de medo. Éramos crianças ainda. Não conseguíamos pensar no que fazer diante daquela situação.

Epitáfio sempre fora um velho muito sombrio. Alguns moleques da vizinhança espalhavam histórias de que o tinham visto, por várias vezes, fazer coisas estranhas com bichos, diziam ser rituais macabros. Gatos, esquilos, morcegos, as histórias eram as mais variadas.

Outra história bastante famosa era sobre Duque. E esta não era propagada somente por crianças. Os moradores mais antigos do bairro eram os principais dissipadores dela. Qualquer pessoa que tenha ido morar no bairro, chegou lá após o velho. Tais pessoas afirmavam que desde que foram para Pinheirais, Epitáfio já teria o cão, e isso havia mais de quarenta anos. Alguns eram céticos e duvidavam que fosse o mesmo animal. Outros acreditavam em qualquer coisa e tinham certeza que o cachorro teria sido dado ao velho pelo próprio capeta, por isso teria vivido tanto. Contudo, o fato é que a história era muito estranha e estávamos André e eu completamente molhados debaixo de um dilúvio, dentro de um cemitério sinistro e, para piorar, com o tal cachorro “do inferno” como companhia.

– André, nós precisamos sair daqui agora.

E já íamos mesmo, entretanto, quando nos levantamos pensando em ir embora, fomos surpreendidos por uma figura humana, escondida à penumbra de um dos salgueiros, do outro lado da alameda. Aquilo era medonho. O nosso pânico dobrou naquela hora.

– Que diabos é aquilo, Júlio?

– Quem é que está aí? Senhor Pedro, é o senhor? Quem está aí? Meu Deus, André! E agora?

– Ele vem vindo, Júlio. Ele vem para cá.

O vulto saía da penumbra e vinha para o nosso lado. O clarão dos relâmpagos nos permitia vê-lo nitidamente.

– Meu Deus do céu! André, é... – Engasguei – É ele, André.

O terror nos tomou por completo naquele instante. Estávamos desesperados. A face aterradora do vulto descobriu-se do véu escuro e a agonia se completara.

– Ai, André! É o... É o velho Epitáfio. Meu Deus!

Enquanto ele atravessava a alameda, os lampejos iluminavam seu rosto pálido e putrefato. Ele caminhava vagarosamente em nossa direção.

André e eu não esperamos ele chegar à outra margem da via. Corremos cada um para um lado. Saí em disparada, desesperadamente, pelas vielas do cemitério e entre covas e mausoléus. Eu estava tão atordoado que só me dei conta de que meu amigo não me seguiu depois de correr por centenas de metros. Olhei para os lados na esperança de encontrá-lo, porém a única coisa que eu via era sepulturas e árvores velhas, circundadas pelo crepúsculo, rasgado por raios e regado pela chuva.

Fiquei a girar em torno do meu próprio eixo, olhando para os lados e gritando por André. Estava tudo alagado e a chuva ficava cada vez mais intensa. Meu campo de visão reduzira-se drasticamente a ponto de eu não mais conseguir enxergar além de um palmo à frente. Foi uma tensão tão agonizante que eu não suportei, desabei em prantos e gritos de desespero.

– André? – Eu gritava com toda a força – André? Pelo amor de Deus, responde!

Eu estava fraquejando. Minhas forças escorriam de mim junto com a água. Choro. Medo. Frio. Estava a ponto de um colapso. Caí de joelhos no chão, cabisbaixo, sem esperanças. Eu era um garoto de onze anos que tinha a certeza da morte em mim.

– Não... – Um berro de agonia – Meu Deus, não! Ah... – Era a voz de André.

– Caramba! Ele está em apuros.

A aflição de meu amigo reacendeu minha coragem. Levantei-me e comecei a correr em direção aos gritos.

– Espera, André! Eu estou indo.

Eu segui alucinadamente, tentando enxergar em meio às gotas grossas que caiam. Estava difícil.

– Ai! – Tropecei e caí.

Fui ver em que eu tinha tropeçado. Foi em André. Ele estava desacordado ao chão. Dei-lhe alguns sacolejos e tapas a fim de despertá-lo. Funcionou.

– Júlio, cadê o velho e o cão?

– Não sei. Desde que nos separamos não os vi mais.

– Estavam me perseguindo. Corri o máximo que pude, até que esbarrei em alguma coisa e não me lembro de mais nada, só de você me sacudindo.

A chuva aos poucos foi cessando e a lua cheia começara a aparecer. As coisas ficavam mais nítidas. Mais uma vez ajudei André a se erguer.

– Júlio, e se isto for um pesadelo?

– Só se nós dois estivermos sonhando a mesma coisa. Quer um beliscão para ter certeza?

Tentamos descobrir onde estávamos, porém havíamos adentrado muito e não conhecíamos aquele trecho do cemitério.

– E agora, Júlio? Como é que a gente sai daqui?

Naquela hora, o que eu mais queria era ter uma resposta positiva para o meu parceiro, mas a realidade é que estávamos perdidos em um labirinto escuro e funesto. A única vantagem que tínhamos era o estio.

Começamos a vagar pela escuridão da necrópole em busca da saída. Caminhamos sempre pelas vielas, primeiro porque por elas seria mais provável encontramos o que queríamos e segundo, pelo meio das sepulturas poderíamos nos defrontar com algum fantasma ou zumbi. Após andarmos mais alguns minutos encontramos o muro. Não sabíamos que parte do cemitério era aquela, a parede era altíssima e não dava para ver o outro lado. Minha idéia era seguir o muro, assim acabaríamos encontrando os portões.

– Mas Júlio, nós vamos ter que passar entre os túmulos.

– É o jeito André. Senão, ficaremos a noite inteira aqui dentro.

– Minha mãe deve estar louca atrás de mim agora.

Conversávamos caminhando por entre os jazigos, só assim esquecíamos um pouco de onde estávamos e de tudo o que havia acontecido.

– Júlio?

– Que foi?

– Afundei meu pé em uma catacumba.

Enquanto eu o ajudava, uma rasga-mortalha passou grasnando sobre nós.

– Caramba! Isso é mau agouro, André.

Apressadamente saímos correndo dali.

Um pouco mais adiante ouvimos uns ruídos. Pensamos em retornar, entretanto, estávamos cansados demais para isso. Resolvemos então enfrentar e ver de onde vinha o barulho. Seguíamos nos escondendo nos mausoléus até que avistamos quem o emitia.

– Nossa! – Sussurrei – É o Duque.

– O quê ele está fazendo?

O cão devorava um bicho que se debatia enquanto tinha suas vísceras arrancadas.

– Vamos sair daqui. – Cochichei mais uma vez.

Não deu tempo. Subitamente fomos arremessados ao solo, aos pés de Duque.

– Tenho outras presas para nós, meu amigo. – Era o velho Epitáfio. – Esses dois moleques enxeridos vão se arrepender de virem nos estorvar em nosso refúgio póstumo.

Mais uma vez estávamos encurralados e agora não teria escapatória. Aquele defunto fedido e apodrecido estava vindo para cima de nós. André começou a vomitar e eu não conseguia sequer me mexer, fiquei em estado de choque. Minha espinha congelou completamente.

– Eu comerei o coração de um e Duque, o do outro. – Falou o morto, dando pequenas risadas estridentes.

– Pelo amor de Deus, Júlio! Nós vamos morrer.

Eu nem conseguia me mover nem falar.

– Por favor, senhor... Epitáfio, pelo amor... de Deus, não nos... devore! Nós suplicamos, tenha... misericórdia! Por... favor! Por favor! – André chorava, soluçava e suplicava.

– Cale a boca, seu idiota! – O som da voz do velho ecoou dentro de minha cabeça, como badalos – Todas as noites meu fiel guardião vem me despertar do meu sono de morte, trazendo-me vítimas para serem imoladas. Eu arranco seus corações, ofereço em sacrifício ao senhor dos infernos e os devoro, assim tenho permissão para ficar neste mundo, mesmo tendo morrido há mais de quarenta anos. Há algumas semanas meu corpo começou a apodrecer, então tive que simular uma morte para as pessoas não perceberem. Mas vocês, moleques enxeridos, tinham que bisbilhotar, não é? Serão sacrificados por isso. – Rindo novamente.

Mal o velho terminou de falar, eu comecei a reagir. Peguei André pelo braço e disse-lhe:

– Levanta e corre!

Parecíamos duas corsas fugindo de seu predador. Com todas as forças, até as que não tínhamos, corremos para sobreviver. Sentíamos o cão quase agarrar nossos calcanhares. Pulamos lápides, saltamos sobre catacumbas abertas e aquela fera infernal a nos perseguir.

– Ah não! Ele está vindo. Corre, André!

– Estou correndo. Estou correndo.

Alucinadamente tentávamos escapar de um destino cruel que nos esperava nas mãos apodrecidas daquele morto-vivo.

– Júlio... O portão... O portão...

Avistar os portões, para nós, foi como uma visão do Elísio.

– Nós vamos conseguir. Vamos conseguir.

Ao chegarmos à saída, algo inusitado aconteceu, esbarramos bem de frente com alguém. Era o vigia.

– O que vocês fazem aqui de novo?

– Socorro, senhor Pedro, o cachorro está...

– Que cachorro, meninos?

Ao olharmos para trás não vimos mais o Duque. Parecia ter sido tragado pela terra.

– De que vocês estão falando?

– André e eu estávamos sendo perseguidos pelo cachorro do senhor Epitáfio, mas quando encontramos o senhor, ele desapareceu.

– Desapareceu? Quem vai desaparecer daqui são vocês dois. Sumam e não me voltem mais aqui!

Senhor Pedro abriu os portões e nos enxotou de lá. Nunca, em toda a minha vida, me senti tão bem em ser expulso de um lugar. Eu jamais voltei àquele cemitério. Duque também não voltara mais ao casarão. Creio que Calisto se esquecera dele, pois nunca me veio cobrar o pedido feito. Aparentemente tudo estava muito bem. Aparentemente. A história do velho Epitáfio, até hoje, povoa a minha mente todas as noites antes de eu dormir e os meus pesadelos mais cruéis enquanto durmo.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 17/01/2011
Reeditado em 17/01/2011
Código do texto: T2733975
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