Espelhos (parte 1)

Na rua do poço, já quase terminado o bairro, havia poucas casas. A última delas contrastava com as demais, era um sobrado antigo, com a pintura gasta pelo tempo e um jardim muito mal cuidado na frente. Lá morava Tito, um garoto de doze anos e de estatura abaixo da média, magro, meio pálido e de olhos fundos. Viviam na casa ele e uma tia que o criava.

Tito nunca falava com ninguém, por isso não tinha amigos. Certa vez tentei fazer amizade, mas foi em vão, ele não respondera ao meu “oi”. Olhou-me friamente por um segundo e seguiu. Depois disso não tentei mais tê-lo como amigo, pelo menos não até eu e ele, obrigatoriamente, formarmos dupla para o trabalho de ciências da escola.

– Cara, querendo ou não, você agora vai ter que falar comigo. – Eu disse rindo, virando para trás, sentado à carteira.

– É. – Respondeu-me seco.

Após a aula, combinamos onde iríamos fazer o trabalho e, por exigência dele, decidimos que seria em sua casa.

Eu tinha muita curiosidade sobre Tito. Seus pais desapareceram quando ele tinha cinco anos, sem deixar pistas, sem qualquer rastro. Desde então, Emília, irmã de sua mãe, fora morar em Pinheirais no intuito de cuidá-lo. Ela ainda era jovem, mas não aparentava gozar de boa saúde. Mostrava-se ser uma boa pessoa. Apesar de às vezes meio apagado, mantinha sempre um sorriso no rosto. Sua delicadeza no trato com as pessoas agradava a todos no bairro.

Ao contrário da tia, Tito jamais fora visto sorrindo. No sábado pela manhã, dia combinado, quando bati a aldrava de sua porta, ele me atendera com um ar repulsivo, como se me quisesse enxotar dali. Mas tínhamos um trabalho a fazer, então ele precisou me convidar a entrar.

A casa era escura, empoeirada... Havia pouca mobília. Tito pediu para eu sentar e esperar um pouco enquanto ele terminava de arrumar o quarto. Após alguns minutos de espera, Emília passou pela sala, cumprimentou-me e convidou para o almoço. Não querendo ser indelicado, aceitei.

– Quem disse que o quero almoçando aqui?! – Tito, transtornado, esbravejava ao descer as escadas – Iríamos apenas fazer um trabalho, não combinamos nada de almoço.

– Tito! – Repreendeu a tia – Eu o convidei e ele irá almoçar conosco.

– Não quero incomodar. – Tentei me sair.

– Não é incomodo algum. Apenas esse rapazinho precisa aprender bons modos. – Completou Emília.

O quarto de Tito era ainda mais sombrio que o restante da casa. Mesmo com as janelas abertas, uma estranha penumbra insistia no lugar. Havia a cama, uma cômoda e um guarda-roupa velhos, paredes acinzentadas, sem pôsteres nem qualquer outro adorno próprio da nossa idade. Acima da cômoda havia uma marca mais clara na parede, como se o lugar tivesse passado muito tempo coberto por um espelho ou quadro.

– O que está olhando? – Tito percebeu que eu não parava de olhar para a parede marcada.

– O que havia ali?

– Nada que fosse da sua conta.

Ao terminarmos o trabalho, Emília nos chamou para o almoço. Percebi algo estranho também à mesa: talheres, pratos e copos de plástico, sendo que os copos eram tampados e com canudos. Mesmo eu estando inquieto e querendo fazer perguntas, contive minha ansiedade e fiquei calado durante quase toda a refeição.

– O almoço estava uma delícia, dona Emília. – Meu elogio não fora somente uma gentileza.

– Não me chame de “dona”, faz com que eu pareça mais velha do já sou. – Pediu-me sorrindo.

Quando saí da mesa, fui ao banheiro. E, enquanto lavava as mãos, mais uma coisa chamou minha atenção: na parede, acima da pia, havia também uma marca, de onde provavelmente fora tirado outro espelho.

Saí do banheiro um tanto intrigado. Eu queria saber por que não havia espelhos na casa. E ainda mais, eu queria saber por que nada naquela casa refletia imagens: Talheres, pratos e copos de plástico, janelas sem vidros... Eles não tinham sequer televisor.

– O que teria acontecido aqui? – Eu não conseguia parar de me perguntar.

Emília veio a mim e pediu para eu tentar fazer com que Tito brincasse. Brincar com ele não era uma idéia que me agradasse muito, mas eu estava curioso por demais. Eu precisava saber por que os espelhos foram banidos daquela casa.

Depois de eu muito insistir, meu colega decidiu esboçar o que para ele seria uma brincadeira. Passamos duas horas no quarto dele olhando uma coleção de selos velhos que foram de seu pai. Ele me contou a história de cada um daqueles selos e eu já estava quase dormindo, quando Emília me chamou.

– Sua mãe ligou, Júlio. Ela disse que já é hora de ir para casa.

– Graças a Deus! – Pensei aliviado.

Fui embora, mas fiquei de voltar no dia seguinte. É evidente que o meu intuito em voltar não era o de “brincar” com Tito, mas eu seria capaz desse sacrifício só para ir à casa dele novamente. Ir à casa dele novamente levando um espelhinho de bolso, é claro.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 18/01/2011
Reeditado em 23/03/2012
Código do texto: T2735951
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