Espelhos (parte 2)

Vi uma vela acesa em meio à escuridão, ela estava refletida no espelho. De repente, um grito agudo, ensurdecedor, fizera-me cair de joelhos ao chão, tentando tapar os ouvidos para não ouvir; tentativa inútil, o grito era dentro de minha cabeça. Algo então fora atirado contra o espelho, fazendo-o se partir em minúsculos pedaços. Acordei no mesmo instante. Era uma linda manhã de domingo.

Levantei um tanto incomodado pelo sonho que tive, porém não deixaria que isso atrapalhasse os meus planos para aquele dia. Peguei uma mochila velha que eu costumava usar e coloquei alguns jogos dentro. Pus também um espelho que ficava em meu quarto.

Tomei o café, despedi-me de minha mãe e saí às pressas.

No caminho para a casa de Tito havia um velho poço em que as pessoas costumavam jogar moedas e fazer pedidos. Eu tinha o mesmo costume sempre que passava por ele. Tirei uma moeda do bolso, fiz o meu pedido e a atirei na água. Diziam para não olhar enquanto a moeda caía, pois dava má sorte e o pedido se realizaria ao contrário. Eu acabei, involuntariamente, dando uma espiada na moeda caindo e vi minha imagem ficar turva no toque com a água...

Quando cheguei à casa de meu colega, sua recepção não fora tão rude quanto a do dia anterior. Ainda que ele não se mostrasse sorridente, fora ao menos cordial.

– Para quê a mochila? – Ele parecia curioso.

– São alguns jogos de tabuleiro, tudo bem?

– Legal. – Foi a primeira vez que o escutei dizendo essa palavra.

Emília também veio dar-me as boas-vindas. Logo após, Tito e eu subimos para o quarto e ela foi para a cozinha.

No quarto, sentamos no tapete, que ficava entre a cama e a cômoda. Ali começamos a jogar. Brincar com Tito não fora tão ruim como eu imaginava que seria. Ele era bom com jogos de tabuleiro, melhor que eu até. Mesmo ganhando, seu semblante continuava sério.

Após algum tempo me vencendo, ele levantou e foi ao banheiro do corredor. Enquanto isso, eu observava sem piscar a marca na parede. O porquê de não haver mais um espelho ali me atiçava a curiosidade. Sem pensar, tomei a mochila, tirei o que eu havia levado e o pendurei sobre a cômoda. Senti um vento frio em minha espinha nesse momento. Um arrepio incomum que me envolvera em temor.

Pouco tempo depois, meu colega voltou. O que se seguiu fizera-me arrepender de minhas atitudes impensadas.

Tito entrou no quarto e parou de costas para a cômoda. Vi sua imagem refletida, pela primeira vez. Ele ficara de cabeça baixa e olhos fechados. Seus punhos, cerrados, apontavam para o chão. Ele tremia. Em sua expressão, a agonia, o terror...

– Por que você fez isso? – Ele murmurou em desespero – Por quê? – Gritou enfurecido.

De súbito o dia escureceu e o quarto ficara tomado pelas sombras. No espelho, o inconcebível, as paredes ardiam em fogo. Eu caí sentado ao chão, em pânico. Gritos atormentados se ouviam por todos os lados. Tito virou-se para seu reflexo e olhou fixamente para mim através dele. O mal olhava para mim naquele instante e um sorriso demoníaco estampava-se em seu rosto.

– Bem-vindo ao inferno!

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 20/01/2011
Reeditado em 21/01/2011
Código do texto: T2741829
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.