Espelhos (parte 3 - final)

– Você jamais sairá daqui!

Apesar de aterrorizado, levantei-me e corri em direção à porta, mas ela bateu contra mim e eu caí novamente.

Ao chão, eu chorava desesperado. Foi quando olhei diretamente para o rosto de Tito; não era o mesmo do espelho. Ele estava paralisado, como se estivesse em transe. A voz do demônio ecoava em minha cabeça, mas eu não conseguia entender o que dizia. Pareciam maldições, proferidas em línguas que eu desconhecia.

Mais uma vez levantei. Corri ao encontro do meu colega, segurei em seus ombros e, sacudindo-o, tentei acordá-lo.

– Não vê que é inútil?! – Contrapôs o demônio com risadas macabras – Ele é meu.

– É o que vamos ver! – Retruquei.

Com uma coragem que eu não tinha, em segundos, agarrei o espelho e o estilhacei sobre Tito. Ele desabou no chão, ferido pelos cacos.

– Onde ele está? – Despertou atordoado.

– Quebrei o espelho; o demônio se foi agora.

– Não, não foi. – Afirmou com um receio aparente.

Foi então que me dei conta de que as trevas permaneciam. Havia um facho luminoso vindo do corredor. Ajudei meu amigo a se levantar e, de pé, num breve relato, ele me explicou o que estava acontecendo.

Quando Tito tinha cinco anos, estava brincado próximo ao velho poço. Num descuido de seus pais, ele acabou subindo sobre as bordas. Foi quando o viu pela primeira vez, o demônio, refletido em sua imagem no fundo daquele buraco, com o mesmo sorriso medonho e a mesma voz de perdição, chamando ao seu encontro. Tito caiu na água.

Após o ocorrido, Tito começara a ficar estranho; se escondia das pessoas; ficava quase o dia inteiro em silêncio. Certo dia, seus pais perceberam um repúdio estranho dele ao próprio reflexo. O puseram então diante de um espelho para observarem sua reação. Ele afirmou que depois disso, só lembrava-se de acordar no hospital, cheio de cortes pelo corpo. Nunca mais seus pais foram vistos.

Resolvemos sair do quarto e ver de onde vinha a luz. Gritos angustiados eram ouvidos. Pareciam almas queimando, clamando por misericórdia. A luz que víamos era muito fraca, quase apagada. Começamos a descer as escadas.

– Emília? – Chamei.

Um grito mais violento se ouviu. Parecia alguém em agonia intensa. Era um homem. Podíamos ouvi-lo, porém não conseguíamos vê-lo. Seus gritos e gemidos suplicavam incessantemente para livrá-lo do tormento.

– É meu pai. – Tito desesperou-se a descer as escadas – É meu pai.

Lá em baixo encontramos Emília desacordada ao chão. A luz parecia ainda mais intensa. Os gritos não paravam e um cheiro forte de enxofre alastrava-se por toda a casa.

Depois de alguns instantes ela acordou. Estava desnorteada, confusa...

– Emília, o que aconteceu? – Um de nós perguntou.

– Só lembro que tudo ficou escuro e comecei a ouvir gritos. Quando tentei subir as escadas, alguma coisa me empurrou contra a parede.

De repente, um riacho de sangue começou a jorrar sob nossos pés; as paredes viraram fornalhas; e almas carbonizadas, ainda em chamas, emergiam do chão ensanguetado, arrastando-se em nossa direção. Nós corremos dali. Seguimos contra a corrente de sangue, queríamos ver de onde ela vinha. Era do porão. Descemos até lá. Havia um guarda-roupa velho, também flamejando. Era o único móvel se consumindo pelo fogo.

– Há um espelho aí dentro. – Disse Emília, apontando para o móvel. – Ele era de minha irmã.

Mesmo apavorado com as chamas, eu iria abrir o guarda-roupa, porém Tito interveio.

– Você não pode fazer isso. – Ele segurou minhas mãos.

– Por quê? – Eu não queria atendê-lo.

– Se você abrir, meu reflexo vai trazê-lo de volta. – Explicou – Você quer mesmo fazer parte desse inferno?

– Já estamos nele. – Empurrei-o e abri o guarda-roupa.

O reflexo era ainda mais aterrador. O demônio surgiu furioso e, por tê-lo atrapalhado no quarto, eu era o motivo de sua fúria. Tito entrara novamente em transe e seguia ao encontro do espelho. Emília e eu seguramo-lo pelos braços.

– Temos que tirá-lo da frente do espelho. – Disse a tia. – Puxe Júlio, puxe!

Quando conseguimos tirá-lo do campo de reflexo do espelho, ele despertou.

– Meus pais estão lá. – Tito chorava – Eu preciso ir buscá-los.

– Você não pode, meu filho, eles não podem sair. – Apelou Emília. – Se você for lá, jamais sairá também.

– Ele é meu! Vocês não vão conseguir tirá-lo de mim. – O demônio esbravejava – Tito, seus pais estão comigo, venha! – Falou com uma voz mais suave.

Tito começou a ouvir a voz de seus pais a chamá-lo. Ele chorava desconsolado, pois entendia que não eram eles. O demônio, ainda mais enfurecido, aumentou a atmosfera de terror que nos envolvia e os mortos-vivos, em chamas, rastejavam em nossos calcanhares. Precisávamos fazer alguma coisa, senão seríamos arrastados para aquele inferno.

– Ele quer a mim, não a vocês. – Disse Tito – Se eu for com ele, vocês ficam livres.

Ao terminar de falar, saiu correndo para o espelho e o demônio o agarrou, levando-o consigo. Tudo começou a tremer violentamente. As portas do guarda-roupa bateram e o teto despedaçava-se em fogo.

Emília e eu assistíamos a tudo completamente estarrecidos. Ela estava em prantos pelo sobrinho. Desolada...

Repentinamente, um vento... Um vento tão forte que nos arremessou para trás. Estava tudo calmo. O dia entrava pelas frestas na parede. Olhando em redor, nada mais se via de incomum.

– Meu Deus! Tito... – Emília não parava de chorar.

Mesmo livres daquele inferno, eu me prendia à culpa pelo quê aconteceu. Fui eu quem levou o espelho; tudo culpa da minha maldita curiosidade.

– Tia Emília?! – Era a voz de Tito chamando, vinha de dentro do guarda-roupa. – Tia?!

Corri e abri as portas. Ele saiu de lá. Nem parecia verdade, mas ele estava bem, como se nada houvesse acontecido. Por algum motivo Tito escapara do demônio, por alguma razão ele se livrara daquele inferno. Foi a alegria de Emília e o fim da minha culpa, pois iria tudo ser como antes.

Com o passar do tempo, as coisas não voltaram bem à normalidade. Na verdade, ficaram bem melhores que antes. Tito passou a entrosar-se mais com as pessoas; a fazer amizades com os outros meninos. O problema com espelhos acabara e já não brincávamos somente com jogos de tabuleiro nem ficávamos olhando selos velhos. Se bem que às vezes me dava saudade disso.

A única coisa de que eu não gostava no novo Tito era de um sorriso sombrio, meio sarcástico, que sempre estava estampado em seu rosto.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 22/01/2011
Reeditado em 06/03/2011
Código do texto: T2745927
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