O leiteiro

Seu nome era Joaquim.

Sua profissão: caminhoneiro, era como gostava de ser chamado, porém quando descobriam qual era a sua carga e a sua rota, virava Joaquim o leiteiro.

“ ora caminhoneiro anda muito mais longe” diziam uns.

“é com certeza sai dos limites de seu município” completavam outros, seguidas das costumeiras, mas não menos irritantes risadas.

Joaquim trabalhava muito. Seu turno era o da noite. Madrugada. Considerava-se um homem sem sorte. Já passara dos 30 e não casara, nem namorada tinha. O povo chegou a pensar que não gostava de mulher, mas sim de homem. Mas como nem namorada e nem namorado apareciam o povo cansou de esperar e passou a rotular Joaquim como o leiteiro solteirão.

Lógico que esse título não agradava nem um pouco a ele, então fazia o que sabia fazer de melhor: deixava pra lá e seguia a vida.

Ao mesmo tempo em que o caminhão cargo sai da estrada asfaltada e entrava na estrada de terra começa a chover leve. Eram 2 da madrugada e era a ultima propriedade que Joaquim recolheria o leite, 12 km na estrada ladeada por plantação de milho já embonecado.

Esse percurso era sempre o mais demorado, um tanto pelo tédio do lugar. Era lindo; o verde do milho era ressaltado pela luz do caminhão e a flor amarelada no topo parecia um tapete. Tudo o que via era a estrada iluminada pela luz, lindo sim, mas maçante. Era a granja dos pecks, propriedade familiar como todas ali, a produção não ultrapassava os 200 litros/dia, o que era bastante para aquela região.

Joaquim levantou os olhos e só viu o negro.

- sem estrelas- disse ele para si mesmo em uma tentativa de espantar o tédio- e pelo jeito esse chuvisco continuará por toda noite.

Uma pequena entrada cortou a plantação de milho ao lado esquerdo. Joaquim sabia que estava aproximadamente na metade do percurso. Aquela estrada lateral levava á casa da viúva Carnavalis. Ela morava só. Todos a chamavam de velha excêntrica. Quase nunca era vista. Muitos falavam que depois da morte de seu marido ela ficou louca. Mas Joaquim também sabia que apesar de ser chamada de velha ela não alcançava os 50 anos. Era o que Joaquim sabia pelas fofocas. Ele nunca a vira.

Os pensamentos de Joaquim abandonaram a viúva excêntrica e voltaram-se para a estrada. Queria logo pegar a carga da granja dos pecks, para poder voltar ao laticínio e descarregar os 5 mil litros de leite, para enfim começar a rota final, quando antes fizesse antes estaria em casa. Colocou a mão no câmbio, pisou na embreagem, mas a terceira marcha não engatava. Tentou então pôr a primeira e nada, nem mesmo o ré. Não importava o que fizesse não saia do ponto morto.

Frustrado ele soca o volante e olha a estrada á frente iluminada pelos faróis. Teria de andar no mínimo 5 km ate a granja dos pecks que era a casa mais próxima.

- espere- disse ele a si mesmo- tem a casa da viúva!

Então como geralmente acontece veio aquela vozinha interior que diz contra:

-como chegarei em uma casa ás 3 da madrugada onde só á uma mulher?!

A chuva e a estrada ladeada atiçaram a sua imaginação, dezenas de filmes de terror brotaram em sua mente.

- a casa da viúva é mais perto.

Cada vez que tentava não pensar em filmes de terror mais cenas violentas e assustadoras dominavam sua mente. Ele falou:

-deixe de bobagem homem! Essas coisas só existem na TV! E nem um assassino estaria andando uma hora dessas na chuva em meio ao milharal, longe de tudo. Só um louco ou um idiota como um “leiteiro”.

O simples fato de ter pronunciado leiteiro jogou sua moral na lama.

- não seja covarde!

Dito isso tomou a decisão de enfrentar a chuva e o medo, medo esse que ele não admitia apesar de estar pulsando em suas veias, não iria assustar uma viúva. Iria até a granja dos pecks lá eles tinham um celular ligado á uma antena.

Pegou no trinco da porta já temendo a chuva fria, mas antes que abrisse a porta ouviu um baque. O caminhão mexeu-se levemente. Joaquim assustou-se, seu coração disparou. Afinal o que poderia ser? Pegou o seu celular, sem sinal isso ele já sabia mas, poderia funcionar como uma lanterna fraca. Antes que pudesse abrir a porta vê o rosto de uma fera á observá-lo. Pressas amareladas enormes saiam de sua boca, pêlos negros ressaltavam seus olhos azuis tomados de uma raiva primitiva. Sua respiração condensava na janela do caminhão. Joaquim não conseguiu gritar, não conseguiu pensar, não conseguiu fazer nada, a não ser continuar fitando a criatura. Duraram apenas alguns segundos, para Joaquim o tempo pareceu parar.

Três garras rasgaram a lateral da porta como se fosse papel, passando a poucos centímetros da perna de Joaquim que agora começava a tremer. Seu primeiro pensamento fora: “irei morrer aqui!”

Sentia seu coração saltitar. Uma onda alucinante de adrenalina jorra pelo seu corpo, quando percebera estava gritando:

- ÁH MEU DEUS! SOCORRO!

Logo seguiu aquela vozinha irritante:

“socorro? Acorda! São 3 da madrugada e você esta no meio do nada, então á não ser que esse monstro ai mesmo, resolver lhe socorrer, o que dificilmente acontecerá, você já era.”

Agora a criatura com uma segunda investida arranca a porta. Ela rosnou revelando suas pressas, estava pronta para atacar.

Joaquim só fechou os olhos e esperou que fosse rápido, sem dor.

Um estouro ensurdecer corta-lhe os pensamentos. Sente algo lhe cortando o rosto, em seguida um uivo assustador. Reabre os olhos e á criatura não está mais lá. Seu colo e a poltrona do carona estão repletos de cacos de vidro. Leva sua mão ate seu semblante e constata que está cortado.

Uma voz feminina invade seus ouvidos:

- Ei ! EI!

Levanta os olhos e vê que a janela do caroneiro já não existe mais. Parada com uma arma esta uma mulher magra, cabelos castanhos, olhos castanhos, cerca de 40 anos.

- Ei!- falou ela novamente- você ira ficar bem. Está me ouvindo?

Joaquim com os olhos esbugalhados continua sem reação ate receber o impacto da mão da mulher em seu rosto já ferido.

- acorda babaca! Venha comigo se não quer virar o lanche da madrugada de alguma criatura!

Ele pula para fora do caminhão afundando os pés na lama. A mulher o fita e fala:

- sou Inguelore,m as pode me chamar de Lore.

-Joaquim. O que era...era...

-era um lobisomem e eu não o matei, o que significa que está andando por ai mais furioso do que antes.

-achei que essas coisas não existissem.

-é o que a maioria pensa.

-meu caminhão quebrou...

Lore o interrompe:

-eu o levarei ate a casa dos pecks. Poderá chamar ajuda.

-iremos caminhar nessa estrada deserta com aquela coisa solta e furiosa?!

Lore sorri, afasta uma mecha do cabelo molhado e fala:

-não.

Ele sente-se mais aliviado seu semblante de tensão se desfaz por um momento, ate Lori completar:

-iremos pelo meio do milharal.

Ela parece se divertir com a reação de Joaquim. Deixa escapar um riso e fala:

-é mais seguro. Lobisomens caçam onde passam mais pessoas, isso é na estrada.

As folhas do milharal batiam incessantemente contra o rosto de Joaquim lhe causando dor. A chuva continuava a cair, mas agora já não importava mais, pois não havia pedaço seco ou que não tremia de frio em Joaquim. Andava desajeitado olhando Lore em sua frente. Estava tão molhado quando ele, mas ela parecia estar bem à-vontade, andava como se estivesse em um supermercado, seco e bem iluminado.

Pensou no interior de seu caminhão e lhe pareceu muito confortável. Seus sapatos cheios de água puxavam seus pés para baixo e a terra molhada recusava-se a solta-los. Ele fala:

- falta muito, estou...

Lore o interrompe com um levantar de mão. Para. abaixa-se. Joaquim imediatamente faz o mesmo.

Andando devagar um homem de pele azulada, no lugar dos cabelos havia um tipo de palha, seus olhos eram brancos, parecia cego. Joaquim piscou varias vezes para ter certeza do que estava á sua frente. Lore tirou um pó branco de seu bolso e o jogou na criatura.

Joaquim sentiu um cheiro fortíssimo de cloro.

Quando o pó acertou o rosto da criatura essa gemeu e levou ambas as mãos á ele. Lore tirou uma adaga da bota que com agilidade e precisão cortou a garganta da criatura que caiu ao chão. Ela continuou a cortar, quando cortou o ultimo pedaço de carne que prendia a cabeça ao corpo esse virou pó.

Lore ficou parada como se ainda segurasse a cabeça da criatura. Pequenas gotas de um sangue negro ainda pingavam de sua adaga juntando-se ao pó que a chuva molhava, misturando-se á terra molhada, tornado-se parte dessa.

Lore olhando para Joaquim agachado imóvel fala:

- Era um “chamador de pragas”, estragam as colheitas, sempre trazendo lagartas e insetos sugadores de seiva.- ela olhou para o céu deixando a chuva lhe lavar o rosto, depois de alguns segundos continuou:

- hoje é uma boa noite para caçá-los. A chuva corta o seu poder. Insetos não gostam de chuva.

-achei que estava atrás do lobisomem.

- hoje não. Hoje é noite de caçar os “chamadores de pragas” e garantir uma boa safra. Já pode levantar-se.

Já em pé Joaquim pergunta:

-onde aprendeu a caçar monstros?

-meu marido- sua voz agora tinha outro tom o tom de uma saudade doce.

Pela primeira vez naquela noite Joaquim reparou nos olhos castanhos, nos lábios finos, na água da chuva que escorria por sua pele colando sua blusa em seus seios pequenos, era sem duvida uma bela mulher. Lore sem perceber o olhar de Joaquim continuou a falar absorta em lembranças:

-ele era do outro lado, me ensinou tudo. Era um homem bom.

-outro lado? Outro lado de quê.

-outro lado desse mundo- disse ela fitando os olhos de Joaquim- ele atravessou a porta que liga os mundos, quase ninguém consegue isso.

- há algumas horas atrás nem imaginava que coisas assim pudessem existir, agora vejo um mundo novo se abrindo na minha frente.

Desviando o olhar Lore aponta para fora do milharal e fala:

- lá está.

Logo após uma pequena plantação de batata doce uma casa. Ouve latidos de cães.

- a casa dos pecks. Pode ir.

Mas Joaquim, não queria ir. Apesar do medo, da chuva, do frio e das dores nos pés, não queria sair do lado daquela mulher, e só agora percebera isso. Ele falou:

-não se preocupe não contarei a ninguém sobre...

Lore ri e o interrompe:

- mas pode contar! Pode falar tudo, não é segredo.

- e você continuará caçando?

- claro.

-gostaria de saber mais sobre esses chamadores de pragas e lobisomens.

-se quiser, poderei lhe contar, é bom às vezes ter alguém para conversar. Pode vir uma tarde na minha casa.

-e onde é?

- Você passa todo dia pela entrada que conduz á minha casa.

Ele pensou um pouco e com espanto fala:

-você é a viúva?!

-sim, acho que todos me chamam de viúva excêntrica que é um modo refinada para dizer esquisita. Agora vá. Aqueles cachorros não estão latindo assim por nossa causa, aquele lobisomem ainda deve estar rondando por aqui.

Joaquim foi. Usou o telefone. Logo vieram rebocar seu caminhão. A chuva só cessou quando amanheceu e mesmo assim o dia permaneceu fechado, prometendo mais chuva para a noite.

Joaquim não conseguia parar de pensar em Lori, e no mundo que antes era tão simples tão tedioso agora era algo novo. O que ele mais queria era ver inguelore carnavalis novamente, mas por hora deveria pensar em uma explicação pela janela quebrada e a falta de uma porta.

Quando estava chegando em casa passou por vários adolescentes que dirigiam-se para a escola. Ele ouviu um deles perguntar:

- esse aí não é o leiteiro?

O outro respondeu:

-sim, aquele leiteiro solteirão.

Pela primeira vez Joaquim não sentiu vergonha, não sentiu raiva e também não pensou deixa pra lá, só o que fez foi dar um sorriso e pensar:

“sei coisas e vi coisas que matariam todos vocês de medo. Mijariam nas calças! Todos vocês!”

E por fim disse para si mesmo:

- não á nada de errado em ser leiteiro e solteiro. Um leiteiro solteirão e uma velha viúva excêntrica! Que dupla.

E deu uma gargalhada, chamando a atenção dos adolescentes.

valmi
Enviado por valmi em 06/02/2011
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